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O direito ao bem viver como projeto de vida coletivo no contexto do constitucionalismo

2. O CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO COMO NOVO PROJETO

2.2 O DIREITO AO BEM VIVER NAS RECENTES CONSTITUIÇÕES ANDINAS

2.2.1 O direito ao bem viver como projeto de vida coletivo no contexto do constitucionalismo

O bem viver constitui parte essencial das culturas milenares das sociedades indígenas deste continente, como um conceito que ultrapassa a linguagem e se constitui em uma referência filosófica. Consiste, então, em um verdadeiro projeto de vida, pautado no respeito à diversidade, na convivência, na harmonia com os outros seres humanos, com animais não humanos, com a flora e outros componentes dos espaços naturais, enfim, em uma aceitação e valorização da vida em todas as suas formas, e na luta pela garantia de sua durabilidade.

O sentido de direito a um projeto de vida que se pretende aqui atribuir é aquele reconhecido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, vinculado à liberdade, ou seja, ao direito de cada pessoa escolher seu próprio destino, de modo que o dano causado a esse projeto existencial afeta o próprio sentido espiritual da vida, conforme considerado pela Corte no caso Loayaza Tamayo versus Peru260.

Isto se torna claro especialmente nos casos de violação dos direitos de comunidades indígenas261, que possuem uma forte ligação com as terras que tradicionalmente ocupam. Afinal, esses são os espaços onde são desenvolvidos seus hábitos, seus ritos, suas crenças. O direito de permanecer em suas propriedades ancestrais possibilita que mantenham viva a sua identidade através da memória.

Outro ponto a ser destacado com relação ao que está envolvido no direito a um projeto de vida é a sua relação com o próprio direito à vida. Apreende-se dos julgados da Corte Interamericana que o direito à vida não pode continuar sendo entendido como uma mera proibição da privação arbitrária da vida física. Afirma-se a necessidade de alargar essa noção, de modo a perceber que devem ser evitadas circunstâncias que de outras formas podem

260 COSTA RICA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Loayaza Tamayo versus Peru. Sentença

proferida em 27 nov. 1998, p. 55. Disponível em: <www.corteidh.or.cr>. Acesso em 28 set. 2011.

261

Outras comunidades tradicionais não-indígenas também possuem uma identidade cultural fortemente vinculada à noção de pertencimento ao território que ocupam. Cita-se aqui o caso da comunidade Moiwana versus Suriname, em que a Corte Interamericana afirmou que houve violação por parte do Estado não só a um projeto de vida dos membros dessa comunidade, mas a um projeto de pós-vida, e reconheceu a existência de um dano espiritual, ocasionado pelo destino dos restos mortais das vítimas do massacre à comunidade, falta de cumprimento dos ritos fúnebres, falta de sepultura adequada, o que desorganizou as antigas relações harmoniosas dos membros da comunidade com seus mortos, e gerou nos membros da comunidade um estado de vulnerabilidade. Cf. COSTA RICA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso comunidade Moiwana versus Suriname. Sentença proferida em 15 jun. 2005. p. 116-119. Disponível em: <www.corteidh.or.cr>. Acesso em 28 set. 2011.

conduzir à morte, especialmente no caso de pessoas consideradas mais vulneráveis, como os povos indígenas.

Nesses casos, antes de perder a vida no sentido físico, a violação aos seus direitos faz com que a vida perca o sentido, devido à impossibilidade de desenvolver um projeto de vida próprio, culturalmente diferenciado, e procurar um sentido para sua própria existência, como indicou a Corte na sentença proferida em 17 de junho de 2005, no caso comunidade indígena Yakye Axa versus Paraguai262.

Sessarego263 salienta que frustrar, total ou parcialmente, o projeto existencial de uma pessoa é o pior dos danos que se pode causar ao ser humano, pois representa a quebra das expectativas pessoais, a impossibilidade de levar adiante o destino que havia traçado a si mesmo. A consequência para esse dano, em certos casos, é a perda de sentido que a vítima havia outorgado à sua vida.

E, se isto é assim quando se trata de dano a um projeto de vida individual, quão mais difícil será mensurar e reparar o dano a um projeto de vida coletivo, nos casos em que, tratando-se de todo um povo, frustra-se o projeto existencial dessas pessoas.

Nos casos de violação a um projeto de vida de povos e comunidades tradicionais, notadamente indígenas, este projeto é coletivo, e, portanto, não se esgota no tempo; antes, projeta-se para o futuro, em uma continuidade infinita. Em tais casos, a perda de sentido é muito grave, pois se estende a toda a comunidade. É importante que o projeto de vida coletivo, traçado por um determinado povo, não seja obstado e até mesmo que o Estado garanta a sua realização. Intervenções externas que obstem a concretização desse projeto de vida comunitário produzem danos espirituais que são irreversíveis e que não podem ser reparados.

O projeto de vida coletivo dos povos indígenas envolve inter-relações entre todos os aspectos da vida, e o território é o local onde se desenvolvem tais relações. A consideração dos direitos dos povos indígenas, especialmente no que se refere à livre determinação dos destinos traçados para sua coletividade, passam pelo redimensionamento da ideia de propriedade, a fim de abranger um conceito de territorialidade.

262

COSTA RICA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso comunidade indígena Yakye Axa versus Paraguai. Sentença proferida em 17 jun. 2005. p. 121. Disponível em: <www.corteidh.or.cr>. Acesso em 28 set. 2011.

263

SESSAREGO, Carlos Fernández. El “daño al proyecto de vida” en la doctrina y la jurisprudencia contemporáneas. In: Revista de responsabilidad civil y seguros: publicación mensual de doctrina, jurisprudencia y legislación. n. 10, 2010, p 09.

Assim, para Martínez de Bringas, enquanto o direito ocidental compreende o conceito de propriedade a partir das “possibilidades de outorga do direito civil”, o conceito de território nos sistemas normativos indígenas é construído em uma relação intrínseca com o conceito de povo, a partir das “possibilidades de outorga de direitos políticos públicos”, notadamente a autonomia. A propriedade coletiva indígena, portanto, não supõe copropriedade, mas, de maneira simultânea, uma consideração individual, comunitária e supracomunitária, compreendendo direitos das antigas e das futuras gerações264.

Martínez de Bringas ressalta que, de modo diverso da concepção ocidental de propriedade, a territorialidade indígena nunca é absoluta ou exclusiva, por envolver um conjunto de mediações que atuam como restrições ou limitações. Então, sob uma perspectiva intercultural, a propriedade indígena abrange uma base material de territorialidade, um espaço sociocultural e um espaço político e geográfico265.

Deve-se enfatizar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconhece haver uma lógica intercultural na compreensão do território indígena, por existir uma tradição comunitária sobre uma forma comunal da propriedade coletiva da terra, cuja propriedade não está centrada em um indivíduo, mas na comunidade.

Assim, a Corte ressalta a importância para a própria existência dos povos indígenas que eles vivam livremente em seus territórios, visto que a estreita relação com a terra é base fundamental de sua cultura, sua vida espiritual, sua integridade e sua sobrevivência econômica. Não se trata, portanto, de uma questão de posse ou produção, mas, como afirma a Corte, de “um elemento material e espiritual do qual gozam plenamente, inclusive para preservar seu legado cultural e transmiti-lo às gerações futuras” 266.

A percepção de que o conceito de propriedade não é somente aquele relacionado à propriedade privada do direito moderno ocidental é de grande relevância para compreender as relações dos povos indígenas com seus territórios. A partir daí, é possível compreender a ideia de propriedade intercultural, como aquela que permite a coexistência e inter-relação entre as diversas culturas de um país, a fim de gerir democraticamente seu conjunto de territórios e recursos naturais.

264

MATÍNEZ DE BRINGAS, Asier. La desconstrucción del concepto de propiedad: una aproximación intercultural a los derechos territoriales indígenas. Utopía y Praxis Latinoamericana, n. 45, abr.-jun. 2009, p. 19.

265 Ibidem, p. 20-21. 266

COSTA RICA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Comunidad Mayagna (Sumo) Awas Tingni

versus Nicaragua. Sentença proferida em 31 ago. 2001. Disponível em: <www.corteidh.or.cr>. Acesso em 22 jul.

Nesse sentido, Tapia Mealla considera que um modelo de propriedade no qual determinados territórios correspondem a determinados povos, ou a só um povo e cultura, reconhece direitos inclusive prévios à colonização, mas não estabelece critérios mais amplos de configuração do comum. Para o autor, uma maior democratização implica em uma “decisão coletiva e generalizada de todas as culturas e povos”, a fim de conceber que a “propriedade de todos os territórios e espaços é de todos os povos e culturas” 267

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É possível compreender que a configuração da propriedade é parte essencial do projeto de vida coletivo dos povos indígenas, visto que suas implicações se projetam para além da existência física, abrangendo, também, aspectos culturais e espirituais.

Sumak kawsay, suma qamaña, teko porã, tratam de um projeto de existência pautado

em outras relações com a natureza e com os outros, que não aquela relação estabelecida por uma cultura ocidentalizada, homogeneizada e colonizada. Traduzem, enfim, a retomada de um caminho e um novo horizonte de construção de uma vida plena, em harmonia com a natureza e tudo o que a compõe, a fim de concretizar um projeto de existência coletivo e duradouro.

2.3 A NATUREZA COMO SUJEITO DE DIREITOS: O GIRO BIOCÊNTRICO E A