• Nenhum resultado encontrado

1. CONSTITUCIONALISMO E A PROTEÇÃO DO AMBIENTE NO ÂMBITO DE

1.1 A PROTEÇÃO DA NATUREZA NA CONSTITUIÇÃO AMBIENTAL BRASILEIRA

1.2.3 Tendências do constitucionalismo na atualidade: arquitetura constitucional em rede e

1.2.3.4 O transconstitucionalismo

Em relação às tendências do constitucionalismo apontadas até o momento, Neves entende tratarem-se de situações em que se manifesta uma ideia de constituição transversal, por meio da qual ocorre o entrelaçamento entre o direito e a política, ou, no caso das constituições civis parciais de Teubner, o entrelaçamento entre direito e outros sistemas sociais. Em sua construção acerca do transconstitucionalismo, porém, Neves esclarece que seu objeto reside em, dentro de um mesmo sistema da sociedade mundial – o direito –, analisar as formas como se relacionam ordens jurídicas diversas154.

A argumentação desenvolvida por Neves parte da afirmação de que as ordens estatais, internacionais, supranacionais, transnacionais e locais são incapazes de oferecer, de modo

150 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre

a historicidade constitucional. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2008, p. 269-271.

151

Ibidem, p. 272.

152 HÄBERLE, Peter. Verfassungslehre als Kulturwissenshaft, 1996, apud CANOTILHO, Joaquim José Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed.

Coimbra: Almedina, 2008, p. 273.

153 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Opus citatum, p. 274.

isolado, respostas adequadas para os problemas normativos da sociedade mundial, especialmente no que se refere a direitos fundamentais e direitos humanos155. Isto porque todo ponto de vista tem limitações, as quais podem ser atenuadas ou sanadas pelo acréscimo do ponto de vista de outro observador, de modo que um mesmo objeto, avaliado sob ângulos diferenciados, pode ser compreendido de maneira mais completa e coerente.

Assim, a constituição não deve ser deixada de lado como critério de compreensão da ordem jurídica estatal. Pode, no entanto, entrelaçar-se com outros níveis normativos, sendo permanentemente reconstruída, por meio da interpretação e aplicação por parte de seus concretizadores156. Para desenvolver uma discussão ligada ao transconstitucionalismo, o essencial é notar que os problemas constitucionais surgem em diversas ordens jurídicas e exigem soluções fundadas no entrelaçamento entre essas várias ordens157.

A respeito da necessária abertura à conversação com outras ordens jurídicas, Neves frisa que a fragmentação dos problemas constitucionais permaneceria desestruturada, caso as ordens jurídicas pretendessem enfrentá-los isoladamente. É certo que o transconstitucionalismo não tem o condão de levar a uma unidade constitucional do sistema jurídico mundial, mas pode fornecer respostas relevantes por meio do diálogo transconstitucional158.

Neves aponta que as relações entre ordens jurídicas diferenciadas não são algo novo, pois já acontecem, pelo menos, desde o Tratado de Westfália, em 1648, ao prever que a incorporação de normas internacionais no direito interno ocorrem por meio do instituto da ratificação. No entanto, o autor ressalta que uma característica nova no entrelaçamento entre uma pluralidade de ordens jurídicas na sociedade atual “é a sua relativa independência das formas de intermediação política mediante tratados jurídico-internacionais e legislação estatal” 159

.

Ayala expõe que, para a proposta do transconstitucionalismo, a ordem constitucional é considerada um instrumento jurídico aberto, situado em uma ordem jurídica global, sendo, então, “capaz de interagir e de se integrar com a cultura constitucional de outras experiências,

155 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 131. 156 Ibidem, p. 295.

157

Ibidem, p. 121.

158 Ibidem, p. 122. 159 Ibidem, p. 116.

independentemente de se considerar fenômenos de integração convencional de instrumentos internacionais na ordem interna” 160.

Dessa forma, o transconstitucionalismo implica em relações de observação e aprendizado mútuo, sem haver primazia de uma das ordens. Neves aponta ainda que as “pontes de transição” entre as ordens jurídicas não mais se desenvolvem (somente) por meio de celebração de tratados e sua posterior ratificação161, como já dito acima, mas, em grande parte, são construídas diretamente a partir dos juízes ou tribunais.

O autor deixa claro que sua análise não trata de um constitucionalismo internacional, transnacional, supranacional, estatal ou local. O conceito aponta, antes, para o desdobramento de problemas jurídicos que atravessam os diversos tipos de ordens jurídicas. Isso porque um problema transconstitucional implica uma questão que envolve tribunais estatais, internacionais, supranacionais, transnacionais (arbitrais), bem como instituições jurídicas locais nativas, na busca de uma solução162.

Essa conversação ou diálogo163 entre Cortes, proposto por Neves, pode se desenvolver em vários níveis. A primeira possibilidade seria o transconstitucionalismo entre direito internacional público e direito estatal. Para a finalidade deste trabalho, este tipo de interação é de grande relevância, notadamente no que diz respeito à relação entre o Sistema Interamericano de Direitos Humanos e as ordens constitucionais dos Estados signatários da Convenção Americana sobre Direitos Humanos164.

Outra possibilidade reside no transconstitucionalismo entre direito supranacional e direito estatal, consistentes na relação entre os membros de uma ordem jurídica comunitária e a ordem jurídica de seus Estados-membros. Quando se considera um conceito restrito de supranacionalidade, enquanto “organização fundada em tratado que atribui, para os seus próprios órgãos, competências de natureza legislativa, administrativa e jurisdicional abrangente no âmbito pessoal, material, territorial, temporal e de validade, com força

160 AYALA, Patryck de Araújo. Direito fundamental ao ambiente, mínimo existencial ecológico e proibição de

retrocesso na ordem constitucional brasileira. In: Revista dos Tribunais, v. 901, nov. 2010, p. 59.

161

NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 117.

162 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo, con especial referencia a la experiencia latinoamericana. In:

BOGDANDY, Armin Von; MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer; ANTONIAZZI, Mariela Morales (coords.). La

justicia constitucional y su internacionalización: ¿Hacia un ius constitucionale commune en America Latina? v.

2. México: Universidad Autonoma del México, 2010, p. 717.

163 É importante trazer aqui a advertência de Neves, no sentido de que a referida conversação “não deve levar a

uma ideia de cooperação permanente entre ordens jurídicas, pois são freqüentes os conflitos entre perspectivas jurídicas diversas”. Cf. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 117.

vinculante direta para os cidadãos e órgãos dos Estados-membros”, Neves afirma que a União Europeia consiste na única experiência de supranacionalismo165.

De maneira mais frequente e, de certa forma, mais proveitosa para os objetivos aqui propostos, tem-se a possibilidade de um transconstitucionalismo entre ordens jurídicas estatais. Tal forma de interação ocorre não somente mediante a migração de legislação e doutrina de uma ordem para outra, mas por meio de referências recíprocas a decisões de tribunais de outros Estados. Desse modo, ocorre um “entrecruzamento de problemas” que exigem um “diálogo constitucional no nível jurisdicional”. As decisões de outras cortes constitucionais são invocadas não apenas como exercício retórico, mas verdadeiramente como elementos de construção das razões da decisão166.

Há ainda a possibilidade de transconstitucionalismo entre ordens jurídicas estatais e transnacionais, compreendidas estas como “ordens normativas que são construídas primariamente não por Estados ou a partir de Estados, mas sim por atores ou organizações privados ou quase públicos” 167

.

A quinta possibilidade exposta por Neves trata de um transconstitucionalismo entre ordens jurídicas estatais e ordens locais extraestatais, e neste ponto a experiência latino- americana é rica, por ter diversos exemplos de problemas jurídicos decorrentes do entrelaçamento entre ordens normativas nativas e ordens constitucionais dos Estados, sendo que a questão deve ser enfrentada a partir de um “modelo de integração constitucional da pluralidade” 168

.

Neves entende que, nestes casos, é desenvolvido um “transconstitucionalismo unilateral” de tolerância e de aprendizado, visto que tais instituições não se enquadram no modelo reflexivo de constitucionalismo. Dessa forma, a simples outorga unilateral de direitos humanos aos membros dos povos originários seria contrária ao transconstitucionalismo, não devendo ser excluído o desenvolvimento de institutos alternativos capazes de viabilizar um diálogo construtivo com essas ordens diferenciadas, as quais baseiam-se milenarmente no território dos respectivos Estados169.

165 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 152. 166 Ibidem, p. 166-167.

167

Ibidem, p. 187.

168 Ibidem, p. 217. 169 Ibidem, p. 217.

E, ainda, o transconstitucionalismo pode se desenvolver entre o direito supranacional e o internacional, na medida em que as competências constitucionais originariamente estatais passam a pertencer a órgãos ou entidades supraestatais e interestatais170.

Além das formas até o momento apresentadas, Neves identifica que, em regra, o transconstitucionalismo tende a envolver duas ou mais ordens jurídicas, sejam da mesma espécie ou não. Tal cenário aponta para o que o autor denomina de “sistema jurídico mundial de níveis múltiplos”. Neves faz a ressalva de que, com a expressão “níveis”, não pretende remeter a um sentido de hierarquia e divisão do trabalho, embora entenda que Pernice utiliza a mesma expressão para remeter exatamente a esse sentido hierárquico171, quando aborda o constitucionalismo multinível.

Deve-se destacar que nem todo entrelaçamento de ordens jurídicas acontece entre tribunais. Afinal, Neves destaca que, por vezes, há a simples incorporação de determinadas normas de uma outra ordem, sem que haja intermediação de qualquer tribunal. E, ainda, pode acontecer uma reinterpretação da própria ordem à qual um determinado tribunal está vinculado, ocasionada pela incorporação de sentidos normativos extraídos de outras ordens jurídicas172.

Quando se fala em transconstitucionalismo, não há estrutura hierárquica entre as ordens jurídicas. O que existe é a “incorporação recíproca de conteúdos”, que implica em uma “releitura de sentido à luz da ordem receptora” 173

. Há, então, uma reconstrução de sentido, a partir da desconstrução do outro (leia-se: da ordem jurídica que está sendo levada em conta), e também uma autodesconstrução.

Neves aponta que, nas interações entre as cortes constitucionais, estas citam-se umas às outras, não como precedentes, mas como argumentos de persuasão. Para o autor, “em termos de racionalidade transversal, as cortes dispõem-se a um aprendizado construtivo com outras cortes e vinculam-se às decisões dessas” 174.

O transconstitucionalismo pressupõe, assim, que diversas ordens jurídicas entrelaçadas, buscando solução para um problema-caso constitucional que lhes seja relevante, devem procurar estabelecer formas transversais de articulação, por meio da observação

170 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 229. 171 Ibidem, p. 235-236.

172

Ibidem, p. 118.

173 Ibidem, p. 118. 174 Ibidem, p. 119.

mútua, a fim de compreender os próprios limites e possibilidades de contribuir para chegar à solução175.

Ayala explicita melhor a importância de examinar as experiências jurídicas externas sob a ótica do transconstitucionalismo, ao fazer notar que, em tal contexto, a ordem constitucional de um Estado nacional é compreendida como “a manifestação da ordem jurídica de um constitucionalismo global, capaz de permitir a resolução de conflitos através da troca, e da integração de experiências que não decorrem da produção normativa local” 176

. Nota-se, então, que as novas tendências do constitucionalismo apontam para a necessidade de uma abertura a experiências externas, seja no âmbito do próprio direito, seja por meio do acoplamento com a política, ou mesmo com outros sistemas da sociedade mundial.

Isso porque, como destaca Ayala, a falta de abertura torna o projeto de modernidade incompatível com necessidades de complexidade177, de modo que o Estado de Direito, bem como as constituições nacionais, não podem ser compreendidos como exclusivos ou suficientes por si, devendo, antes, ser percebidos como ponto de partida.

Dessa forma, para tratar dos temas relativos à proteção do ambiente, é que podemos falar em uma internormatividade constitucional ambiental, que resulta de um contato, ao nível constitucional, entre ordenamentos jurídicos nacionais, gerando, como resultado, novos

standards, ou seja, padrões jurídicos que correspondam a níveis mínimos de proteção

constitucional do meio ambiente178.

Nesta situação específica, a importância do diálogo e troca de experiências não se restringe à fixação de níveis mínimos de proteção do ambiente, mas, especialmente, busca estudar a forma como é compreendido o conceito de proteção da natureza, de modo que o resultado de um direito fundamental ao meio ambiente não alcance apenas a proteção de elementos naturais, mas obtenha proteção sob uma perspectiva integradora e indivisível, em relação aos elementos sociais, econômicos, culturais e ambientais.

175

NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 297.

176 AYALA, Patryck de Araújo. Direito fundamental ao ambiente, mínimo existencial ecológico e proibição de

retrocesso na ordem constitucional brasileira. In: Revista dos Tribunais, v. 901, nov. 2010, p. 59.

177

AYALA, Patryck de Araújo. Devido processo ambiental e o direito fundamental ao meio ambiente. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 40.

178 ARAGÃO, Alexandra. A Constituição recombinante: uma proposta de reinterpretação interjusfundamental da

Constituição brasileira inspirada por standards europeus (e brasileiros). In: BENJAMIN, Antonio Herman; LEITE, José Rubens Morato (org.). Anais do 19º Congresso Brasileiro de Direito Ambiental, 9º Congresso de

Direito Ambiental das Línguas Portuguesa e Espanhola, 9º Congresso de Estudantes de Direito Ambiental. São

Apenas em coordenação com outros atores, será possível visualizar caminhos para oferecer respostas satisfatórias aos novos papéis que devem ser assumidos pelo Estado, notadamente por meio da concretização e ressignificação de sua Constituição, em um cenário desafiador, que coloca à prova a própria ideia de projeto de sociedade que a humanidade deseja.

1.3. PENSAR O CONSTITUCIONALISMO A PARTIR DE CONCEITOS PÓS-