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2. O CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO COMO NOVO PROJETO

2.1 A EMERGÊNCIA DE UM NOVO CONSTITUCIONALISMO NA AMÉRICA LATINA

Após séculos de colonização, exploração e dominação, há autores que entendem que a independência dos países da América Latina, no século XIX, não representou uma ruptura definitiva com relação à Espanha e a Portugal, por considerarem que houve uma continuidade na ordem social, econômica e político-constitucional190.

Wolkmer enfatiza que, na América Latina, a cultura jurídica imposta pelas metrópoles ao longo do período colonial, bem como as instituições jurídicas formadas após o processo de independência, tais como constituições, codificações e tribunais, derivam da tradição legal europeia. E, ainda, na formação da cultura jurídica e do processo de constitucionalização latino-americanos após a independência, é necessário levar em consideração a herança das cartas políticas burguesas e dos princípios iluministas inerentes às declarações de direitos, provenientes, também, da nova modernidade capitalista, de livre mercado, pautada na tolerância e no perfil liberal-individualista191.

Dessa forma, tal qual os moldes do constitucionalismo desenvolvido na Europa e nos Estados Unidos, após a independência das então colônias da América Latina houve uma constitucionalização, primeiramente, nos moldes liberais, no século XIX, seguida, no século XX, por uma tendência de constitucionalização dos direitos sociais192.

Wolkmer chama, ainda, a atenção para o fato de que as até então colônias latino- americanas vivenciavam uma realidade social completamente diversa daquela que levou ao

190 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo e crítica do constitucionalismo na América Latina. In: Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional. Curitiba: Academia Brasileira de Direito Constitucional, p. 145. 191

Ibidem, p. 146.

192 LAGUARDIA, Jorge Mario García. Derechos humanos y proceso constitucional em América Latina. Araucaria, Revista Iberoamericana de Filosofia, Política y Humanidades, n. 17, maio 2007, p. 98; 104.

processo de constitucionalização na Europa e nos Estados Unidos. Disso decorre que, na evolução teórica e na institucionalização formal do Direito latino-americano, as constituições políticas consagravam abstratamente a igualdade formal perante a lei, a independência dos poderes, a soberania popular, a garantia liberal de direitos, uma cidadania culturalmente homogênea e uma condição idealizada de Estado de Direito, enquanto, na prática, as instituições foram marcadas pelo controle centralizado e burocrático do poder oficial, por formas de democracia excludente, por um sistema representativo clientelista e experiências de participação elitistas193.

É relevante enfatizar, no entanto, que, apesar de transparecer que a história das constituições na América Latina seguiu a mesma trajetória daquela construída na Europa, sendo a expressão da vontade das elites, Souza Filho ressalta que há forte presença popular nas constituições latino-americanas194, desde Simón Bolívar. Exemplifica que a Constituição Mexicana de 1917 surgiu de uma revolução camponesa e indígena, destacando que as mudanças constitucionais na América Latina se dão por luta de classes, de modo que esse movimento de camponeses, indígenas e outros grupos consegue impor essas mudanças no sistema de fora para dentro.

Deve-se frisar, ainda, que, apesar do grande destaque que vem sendo dado às recentes constituições latino-americana, tais como as do Equador (2008) e da Bolívia (2009), Souza Filho expõe que a historiografia não relevou as constituições latino-americanas anteriores, que já contavam com a participação popular e não acompanhavam a história europeia. Como inovação das constituições latino-americanas do século XXI, o autor identifica que a forte presença da natureza (e do reconhecimento de direitos a ela) é recente, mas como discurso. Isso porque, lembra Souza Filho, anteriormente a natureza estava integrada à questão social; portanto, já estava presente como proposta195.

Se, para Afonso e Magalhães, a formação e consolidação do Estado dependeu da existência de uma identidade nacional, e, consequentemente, da “imposição de valores comuns que deveriam ser compartilhados pelos diversos grupos étnicos, pelos diversos grupos

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WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo e crítica do constitucionalismo na América Latina. In: Anais do IX

Simpósio Nacional de Direito Constitucional. Curitiba: Academia Brasileira de Direito Constitucional, p. 147. 194 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. Comentários expostos na banca de defesa de dissertação da

discente Eveline de Magalhães Werner Rodrigues, no âmbito do Programa de Pós-graduação em Direito Agroambiental. Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, fev. 2015.

sociais para que todos reconhecessem o poder do Estado” 196, o que se verifica no constitucionalismo latino-americano é uma passagem que vai desde o reconhecimento do multiculturalismo, da noção de pluriculturalidade e interculturalidade, para, enfim, a recente e inovadora afirmação constitucional da condição de plurinacionalidade.

Assim a América Latina tem levado a efeito uma descolonização do poder e da justiça, a partir da ruptura com a matriz eurocêntrica, motivados especialmente pelo contexto de exigibilidade da concretização de políticas eficazes em torno das necessidades fundamentais197.

Para Noguera-Fernández e Criado de Diego, as recentes constituições latino- americanas apresentam tanto rupturas procedimentais como rupturas materiais, em relação ao constitucionalismo europeu. As primeiras refletem-se na exigência de eleição de Assembleias constituintes, de realização de referendos populares, além de outras formas de participação, promovendo um resgate do princípio de soberania popular198.

As rupturas materiais, por sua vez, dizem respeito a um conjunto de inovações que as diferenciam claramente das constituições precedentes, a exemplo da introdução de uma longa carta de direitos, com a indicação de um maior desenvolvimento do conteúdo de cada um deles; da democratização, no âmbito político, do Estado e da sociedade, com a substituição da “representação” pelo “mandato”; e, no âmbito cultural, a atenção aos povos indígenas, enquanto sujeitos coletivos de direitos199.

Nesse sentido, Wolkmer aponta a ocorrência, nas novas constituições, de uma “convergência política intercultural”, tendente a reconhecer direitos materiais e, ao mesmo tempo, viabilizar no plano fático o exercício desses direitos a setores historicamente excluídos do poder decisório200.

Na primeira seção deste trabalho, abordou-se brevemente o neoconstitucionalismo, no âmbito do caminho percorrido pelo constitucionalismo desde suas origens. Deve-se ressaltar que o constitucionalismo latino-americano, aqui tratado, não guarda relação com o

196 AFONSO, Henrique Weil; MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. O Estado Plurinacional da Bolívia e do

Equador: matrizes para uma releitura do direito internacional moderno. In: Anuario Mexicano de Derecho

Internacional. v. XII, 2012, p. 460.

197 WOLKMER, Antonio Carlos; FAGUNDES, Lucas Machado. Tendências contemporâneas do

constitucionalismo latino-americano: Estado plurinacional e pluralismo jurídico. Pensar, v. 16, n. 2, jul.-dez. 2011, p. 378.

198 NOGUERA-FERNÁNDEZ, Albert; CRIADO DE DIEGO, Marcos. La Constitución colombiana de 1991

como punto de inicio del nuevo constitucionalismo en América Latina, Revista Estudios Socio-Jurídicos, n. 13, 2011, p. 18.

199 Ibidem, p. 29-43.

movimento neoconstitucionalista. Este, buscando condicionar a atuação do Estado a partir de certos fins e objetivos estabelecidos constitucionalmente, fundamenta-se na análise da dimensão positiva da Constituição, para a qual não é necessária a análise da legitimidade democrática; dessa forma, o neoconstitucionalismo seria uma teoria do direito, e não uma teoria da constituição201.

De modo diverso, o novo constitucionalismo latino-americano preocupa-se não apenas com a dimensão jurídica da Constituição, mas, notadamente, com sua legitimidade democrática. Enfatiza-se a fundamentação da Constituição, ou, em outras palavras, sua legitimidade, que é, antes de tudo, extrajurídica. A legitimidade202 exigida por esse novo constitucionalismo não está restrita à comprovação de observância do procedimento constituinte adequado, mas defende que o conteúdo da Constituição deve ser coerente com sua fundamentação democrática, ou seja, deve ser capaz de gerar mecanismos que assegurem a participação política dos cidadãos203.

Antes de passar a expor os diferentes ciclos do constitucionalismo latino-americano, é importante fazer referência à questão do multiculturalismo e uma breve menção a diferenças terminológicas em relação ao pluriculturalismo e à interculturalidade, uma vez que tais conceitos estão intrinsecamente relacionados à passagem por cada ciclo; mais à frente, serão abordadas, também, as especificidades da plurinacionalidade no âmbito do constitucionalismo latino-americano.

A esse respeito, Walsh esclarece que o prefixo “multi” tem suas raízes em países ocidentais e aponta para uma coleção de culturas singulares sem relação entre elas, havendo o marco de uma cultura dominante204; de modo diverso, o prefixo “pluri” indica uma convivência de culturas em um mesmo espaço territorial. Para a autora, a interculturalidade é

201 VICIANO, Roberto; MARTÍNEZ, Rúben. Aspectos generales del nuevo constitucionalismo latino-

americano. In: Corte Constitucional de Ecuador para el período de transición. El nuevo constitucionalismo en

América Latina. Quito, Corte Constitucional del Ecuador, 2010, p. 17.

202 Santos e Avritzer enfatizam a existência de uma concepção hegemónica de democracia, a qual concentra o

debate democrático no processo eleitoral das democracias, com foco no aspecto procedimental, e propõem soluções minimalistas para o problema da participação, o que, para os autores, limita a democracia a formas complementares de hegemonia. Nesse sentido, o constitucionalismo latino-americano insere-se no contexto das concepções não-hegemônicas de democracia, especialmente considerando que, para ser plural, a política tem de contar com o assentimento da pluralidade de atores existentes nas sociedades contemporâneas, em processos racionais de discussão e deliberação. SANTOS, Boaventura de Sousa; AVRITZER, Leonardo. Para ampliar o cânone democrático. SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 43-53.

203 VICIANO, Roberto; MARTÍNEZ, Rúben. Opus citatum, p. 18-19. 204

WALSH, Catherine. Interculturalidad, plurinacionalidad y decolonialidad: las insurgencias político- epistémicas de refundar el Estado. In: Tabula rasa. n. 9, 2008, p. 140. Disponível em <http://www.scielo.org.co/pdf/tara/n9/n9a09.pdf>. Acesso em: 17 abr. 2012.

um conceito mais amplo, que indica “um processo e projeto social e político dirigido à construção de sociedades, relações e condições de vida novas e distintas” 205

.

Sánchez Cámara esclarece que o multiculturalismo pode ser compreendido como fato e como teoria. Na condição de fato, refere-se a situações ligadas às migrações e à convivência, na mesma sociedade, de pessoas e grupos originários de civilizações diferentes em vários graus. No segundo sentido, o multiculturalismo deveria ser entendido como uma dentre as soluções possíveis para os problemas gerados pela convivência entre pessoas e grupos de diferentes culturas; essa solução propugnaria a coexistência entre eles, mantendo, cada um, suas próprias pautas culturais e sociais206.

Apesar da grande diversidade de culturas em quase todos os países do mundo, Bonilla Maldonado salienta que os teóricos ocidentais não têm discutido problemas relativos ao multiculturalismo, não levando em conta os interesses das minorias culturais, ou minimizando a importância que a cultura tem, inclusive em questões políticas. No entanto, é um engano considerar que as diferenças são insignificantes perante os demais elementos culturais compartilhados; esse pressuposto, aliás, foi a fonte de políticas governamentais destinadas à assimilação forçada, ou à eliminação da diversidade cultural207.

Nota-se que, em suas diferentes teorias, a ideia de multiculturalismo208 pressupõe coexistência, mas não interação. A interculturalidade, de modo diferenciado, guarda relação com uma ideia de cultura compartilhada, sendo que, conforme Santos, as sociedades criam formas de convivência intercultural de maneira específica209.

A partir dos elementos históricos indicados, quanto ao contexto de lutas e clamores que motivou um movimento constitucional semelhante em diversos países na América Latina e culminou com a profunda modificação nas Constituições do Equador e da Bolívia, é

205 WALSH, Catherine. Interculturalidad, plurinacionalidad y decolonialidad: las insurgencias político-

epistémicas de refundar el Estado. In: Tabula rasa. n. 9, 2008, p. 140. Disponível em <http://www.scielo.org.co/pdf/tara/n9/n9a09.pdf>. Acesso em: 17 abr. 2012.

206 SÁNCHEZ CÁMARA, Ignacio. El multiculturalismo como hecho y como solución a un problema. Persona y derecho, n. 49, 2003, p. 163.

207 BONILLA MALDONADO, Daniel. La constitución multicultural. Bogotá: Siglo del Hombre Editores;

Universidad de los Andes – Faculdad de Derecho; Pontificia Universidad Javeriana – Instituto Pensar, 2006, p. 11.

208

Para uma leitura acerca do multiculturalismo no contexto do liberalismo, partindo da coexistência de mais de uma nação dentro de um determinado Estado e da necessidade de reconhecimento de direitos diferenciados às minorias culturais, ver: KYMLICKA, Will. Ciudadanía multicultural: una teoría liberal de los derechos de las minorías. Tradução de Carme Castells Auleda. Barcelona: Paidós, 2010, p. 13.

209 SANTOS, Boaventura de Sousa. La reinvención del Estado y el Estado Plurinacional. Santa Cruz de la

possível perceber, de maneira mais detalhada, que, no decorrer das últimas décadas, algumas das características que marcam tal movimento podem ser agrupadas.

Assim, Yrigoyen Fajardo identifica na América Latina, desde a década de 1980, três ciclos de reformas constitucionais, executando transformações em aspectos que se referem, principalmente, ao reconhecimento da diversidade cultural e dos direitos dos povos indígenas. Tais mudanças, para a autora, são relevantes a ponto de reconfigurar a relação entre esses povos e o Estado, o que impacta sobre a própria configuração deste210.

Para Wolkmer, o primeiro ciclo constitui-se como social e descentralizador, sendo marcado pelas Constituições brasileira (1988) e colombiana (1991). O segundo ciclo, caracterizado como participativo, popular e pluralista, tem sua representação central na Constituição venezuelana (1999). E, por fim, o terceiro ciclo é representado pelas recentes Constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009), expressando um constitucionalismo plurinacional comunitário. Este último ciclo não se identifica com um paradigma universal e único de Estado de Direito, mas coexiste com experiências interculturais e com práticas de um “pluralismo igualitário jurisdicional”, pautado na convivência de instâncias legais diversas em igual hierarquia211.

Com alguns traços diferenciados, Yrigoyen Fajardo entende o primeiro ciclo, compreendido entre 1982 e 1988, como um constitucionalismo multicultural; o segundo, estendendo-se de 1989 a 2005, como um constitucionalismo pluricultural; e o terceiro, de 2006 a 2009, representativo de um constitucionalismo plurinacional. A autora indica que os três ciclos questionam, de maneira progressiva, os elementos centrais da configuração dos Estados latino-americanos212.

De modo diverso dos dois autores supramencionados, Noguera-Fernández e Criado de Diego não fazem constar a Constituição brasileira enquanto participante dos ciclos do constitucionalismo latino-americano. Consideram que os principais expoentes desse movimento são as Constituições do Equador (1998 e 2008), da Venezuela (1999) e da Bolívia (2009); as primeiras rupturas, porém, teriam sido iniciadas, na visão do autor, pela

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YRIGOYEN FAJARDO, Raquel Z. El horizonte del constitucionalismo pluralista: del multiculturalismo a la descolonización. In: GARAVITO, César Rodríguez (coord.). El derecho en América Latina: un mapa para el

pensamiento jurídico del siglo XXI. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2011, p. 138.

211 WOLKMER, Antonio Carlos; FAGUNDES, Lucas Machado. Tendências contemporâneas do

constitucionalismo latino-americano: Estado plurinacional e pluralismo jurídico. Pensar, v. 16, n. 2, jul.-dez. 2011, p. 403-404.

Constituição da Colômbia (1991), a qual viria a influenciar fortemente o desenvolvimento dos textos posteriores213.

A partir da exposição de Yrigoyen Fajardo, serão detalhados os ciclos do novo constitucionalismo, a fim de que seja possível compreender suas principais características e inovações.

O primeiro ciclo de reformas constitucionais foi marcado pelo surgimento do multiculturalismo e pelas novas demandas indígenas. As Constituições, nessa fase, instituem o conceito de diversidade cultural, o reconhecimento da configuração multicultural e multilíngue da sociedade, o direito à identidade cultural (que se afigura como individual e coletivo) e alguns direitos indígenas específicos; não fazem, no entanto, um reconhecimento explícito do pluralismo jurídico214.

Em sua análise, a autora considera as constituições americanas, de maneira geral, para exemplificar o contexto de transformações constitucionais a partir da década de 1980. Assim, aponta que a Constituição do Canadá (1982) inicia o processo, com o reconhecimento de sua herança multicultural e os direitos dos aborígenes. Na América Central, a Guatemala (1985), em sua Constituição, reconhece a configuração multiétnica, multicultural e multilíngue do país, o direito à identidade cultural, bem como direitos específicos para grupos étnicos e comunidades indígenas; a Nicarágua reconhece a natureza multiétnica do povo, bem como os direitos culturais, linguísticos e territoriais das comunidades étnicas do Atlântico. A Constituição do Brasil (1988), antecedendo a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre direitos indígenas, já faz aproximações em relação a tal documento, motivo pelo qual encontra-se no limiar do segundo ciclo215.

Passando ao segundo ciclo do novo constitucionalismo na América Latina, tem-se aqui as Constituições afirmando o direito, tanto individual como coletivo, à identidade e diversidade cultural, e desenvolvendo melhor os conceitos de nação multiétnica e multicultural, bem como de Estado pluricultural. A grande marca deste segundo ciclo é a inserção de fórmulas que permitam a afirmação e o desenvolvimento do pluralismo

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NOGUERA-FERNÁNDEZ, Albert; CRIADO DE DIEGO, Marcos. La Constitución colombiana de 1991 como punto de inicio del nuevo constitucionalismo en América Latina, Revista Estudios Socio-Jurídicos, n. 13, 2011, p. 18.

214 YRIGOYEN FAJARDO, Raquel Z. El horizonte del constitucionalismo pluralista: del multiculturalismo a la

descolonización. In: GARAVITO, César Rodríguez (coord.). El derecho en América Latina: un mapa para el

pensamiento jurídico del siglo XXI. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2011, p. 140-141. 215 Ibidem, p. 140.

jurídico216. Assim, as Constituições deste ciclo reconhecem as autoridades indígenas, com suas normas, procedimentos e funções jurisdicionais.

Para explicar o sentido do pluralismo jurídico, deve-se lembrar que os Estados liberais do século XIX se configuraram sob o princípio do monismo jurídico, reconhecendo a existência de um único sistema jurídico dentro de um Estado e uma lei geral para todos os cidadãos217. Dessa forma, o monismo jurídico imperou em quase todo o mundo, ignorando a cultura, religião, língua e tradições de diversos povos habitantes de um determinado Estado, convivendo no mesmo território e se relacionando com outros habitantes, por fazerem também parte desse todo218.

Rompendo com o monismo na produção do Direito, a base do constitucionalismo latino-americano, especialmente a partir de seu segundo ciclo, é o pluralismo jurídico, especialmente considerando as jurisdições indígenas. Wolkmer salienta que “o espaço do pluralismo jurídico é onde nasce a juridicidade alternativa”. Assim, o Estado não é mais o único lugar de desenvolvimento do poder político, e nem a fonte exclusiva da produção do Direito219.

O pluralismo jurídico não se refere, portanto, apenas aos direitos dos povos indígenas. Seu significado é maior, abrangendo todo sistema normativo criado por um grupo social que, ao longo da história, tenha estabelecido regras próprias que regulam sua convivência social e com as quais resolvem seus conflitos220.

Como construção de um conceito, Velasteguí Ayala apresenta o pluralismo jurídico como “a coexistência de sistemas jurídicos diversos dentro de um mesmo campo social, o qual questiona a visão etnocêntrica do direito ocidental”, visão esta que lhe atribui o papel de referência única e legítima de Direito pelo positivismo jurídico221.

216 Contudo, deve-se destacar que, simultaneamente ao reconhecimento de direitos indígenas nas Constituições,

houve a adoção de abordagens neoliberais, de forma que a consequência prática, em alguns Estados, foi a neutralização dos novos direitos conquistados. YRIGOYEN FAJARDO, Raquel Z. El horizonte del constitucionalismo pluralista: del multiculturalismo a la descolonización. In: GARAVITO, César Rodríguez (coord.). El derecho en América Latina: un mapa para el pensamiento jurídico del siglo XXI. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2011, p. 142.

217 Ibidem, p. 138. 218

VELASTEGUÍ AYALA, Ximena. Reconocimiento de la pluralidad jurídica en el Ecuador. Sus implicaciones y retos para las comunidades, pueblos y nacionalidades indígenas. p. 2. Disponível em: <http://www.juridicas.unam.mx/wccl/ponencias/7/126.pdf>. Acesso em: 13 maio 2014.

219 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3. ed. São

Paulo: Editora Alfa Ômega, 2001, p. 203.

220 VELASTEGUÍ AYALA, Ximena. Opus citatum, p. 2. 221 Ibidem, p. 3.

O contexto que favoreceu o reconhecimento do pluralismo jurídico, para Yrigoyen Fajardo, decorreu de diversos fatores, sendo os principais a demanda indígena de reconhecimento de um direito próprio, o desenvolvimento do Direito Internacional sobre os direitos indígenas – notadamente, por meio da Convenção 169 da OIT –, a expansão do discurso do multiculturalismo e as reformas estruturais do Estado e da justiça222.

Para ilustrar o segundo ciclo, tem-se, na América Central e na América do Sul, as Constituições da Colômbia (1991), do México (1992), do Paraguai (1992), da Bolívia (1994), da Argentina (1994), do Equador (reformas de 1996 e codificação de 1998) e da Venezuela (1999)223.

A passagem do segundo ao terceiro ciclo representa uma transição da interculturalidade para a plurinacionalidade. Santos esclarece que o objetivo na ideia de plurinacionalidade não é somente o consenso, mas também o reconhecimento das diferenças, de “outra forma de cooperação nacional com unidade na diversidade” 224

.

A esse respeito, Clavero destaca que o reconhecimento da diversidade cultural de um Estado pode ocorrer de diversas formas, inclusive por meio de reformas (ou emendas) na Constituição. No entanto, para que um Estado se reconheça como plurinacional, é necessária