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1. CONSTITUCIONALISMO E A PROTEÇÃO DO AMBIENTE NO ÂMBITO DE

1.3. PENSAR O CONSTITUCIONALISMO A PARTIR DE CONCEITOS PÓS-

Ao tratar das tendências do constitucionalismo atual, no que se refere à construção de uma arquitetura jurídica em rede, capaz de favorecer o diálogo e a troca de experiências, é fundamental destacar que muitos dos conceitos desenvolvidos nesse contexto – especialmente quanto à construção de uma ideia de constitucionalismo global – encontram sua origem e justificação em uma visão construída no âmbito de um pensamento hegemônico (ocidental), considerado por Santos uma forma de pensamento abissal.

Para Santos, fala-se em pensamento abissal para separar, por meio de uma “linha abissal invisível”, a ciência, a filosofia e a teologia, de outras formas de conhecimento julgadas como incompreensíveis e, por isso, invisibilizadas ou desacreditadas179.

A expressão “abissal” é utilizada por Santos para registrar que, no âmbito da ciência e do direito, as divisões levadas a efeito pelas linhas globais eliminam por completo quaisquer realidades situadas no outro lado da linha. Essa negação da presença do outro fundamenta a afirmação da diferença radical que deste lado da linha separa o verdadeiro do falso, o legal e o ilegal. O outro lado da linha compreende uma vasta gama de experiências desperdiçadas180, tornadas invisíveis, assim como seus autores181.

179 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de

saberes. Novos Estudos, nº 79, nov. 2007, p. 74.

180 A ideia de desperdício da experiência é melhor desenvolvida por Santos em: SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Para um novo senso comum: a ciência, o

direito e a política na transição paradigmática. 4. ed. v. 1. São Paulo: Cortez, 2002. Para o autor, a ciência moderna constituiu-se em oposição ao senso comum, afastando (e, assim, desperdiçando) diversas experiências e saberes; no entanto, deve-se ter em conta que a ciência moderna não representa a única explicação da realidade, mas uma resposta possível entre diversas outras. Nessa obra, Santos explica que o colonialismo consiste na ignorância da reciprocidade e na incapacidade de conceber o outro, a não ser como objeto; sendo assim, é necessário desequilibrar o conhecimento em favor da emancipação, revalorizando a solidariedade como forma de saber. É a partir dessa construção teórica que Santos propõe uma nova subjetividade, menos vinculada à identidade e mais à reciprocidade, que deve ser reconhecida à parte do antropocentrismo. Nesse sentido, a natureza, não sendo idêntica a nós, nos é recíproca, na medida em que sua destruição acarreta nossa própria destruição. O conhecimento-emancipação consiste, então, na passagem do colonialismo para a solidariedade.

181 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de

O pensamento abissal guarda intensa relação com o colonialismo, uma vez que, na concepção de Santos, o pensamento moderno ocidental ainda opera mediante linhas abissais utilizadas para “separar o mundo humano do subumano”, em uma lógica em que os princípios de humanidade não são postos em causa por práticas desumanas. Assim, ainda hoje o pensamento e a prática modernos ocidentais (hegemônicos) fazem com que as colônias representem um modelo de exclusão, exatamente como no ciclo colonial182.

O modelo colonialista difundido pelo direito ocidental moderno ainda prevalece atualmente183, por meio de práticas hegemônicas, que ainda impedem a co-presença dos dois lados da linha abissal184. A partir de tal constatação, Mignolo propõe a necessidade de fortalecer o pensamento decolonial, que surge de um diálogo conflitivo, como consequência (resposta) da formação e implantação da matriz colonial de poder185.

A globalização, dependendo do modo como é compreendida, pode ser (frequentemente) considerada como uma forma de colonialismo. Se se pensar em um constitucionalismo global que busque, na verdade, estender (sempre mais) o pensamento jurídico e científico europeu para todas as outras experiências (inclusive não-ocidentais), todas as teorias discutidas na subseção anterior representarão, ainda, uma forma de colonização e de opressão.

Mas, se de modo diverso, essas teorias forem utilizadas para construir pontes aptas a permitir um diálogo de mão dupla, que não afaste as diferenças, mas aprenda com elas a aprimorar as soluções formuladas para problemas que afetam diversas ordens jurídicas, então será possível pensar, de fato, em uma ecologia de saberes aplicada ao constitucionalismo, a partir de uma teoria pós-colonialista.

182 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de

saberes. Novos Estudos, nº 79, nov. 2007, p. 76.

183 Santos entende que as relações desiguais entre Norte e Sul foram constituídas historicamente pelo

colonialismo, sendo que o fim do colonialismo enquanto relação política não acarretou seu fim enquanto relação social. SANTOS, Boaventura de Sousa. Do pós-moderno ao pós-colonial. E para além de um e outro. Conferência de abertura do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Coimbra, set. 2004, p. 8. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/misc/Do_pos-moderno_ao_pos-colonial.pdf>. Acesso em: 24 nov. 2014.

184

SANTOS, Boaventura de Sousa. Descolonizar el saber, reinventar el poder. Montevideo: Ediciones Trilce; Universidad de la República, 2010, p. 36.

185 MIGNOLO, Walter D. El pensamiento decolonial: desprendimiento y apertura: un manifiesto. In: CASTRO-

GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007, p. 27.

Ao falar em “ecologia de saberes”, Santos refere-se ao reconhecimento de uma pluralidade de conhecimentos heterogêneos em interações sustentáveis e dinâmicas186. A ecologia de saberes é uma condição para um pensamento pós-abissal, pois representa co- presença e interconhecimento, reconhecendo a diversidade epistemológica do mundo. Para Santos, então, é possível e necessário fazer um uso contra-hegemônico da ciência moderna, mas isso somente é possível mediante a exploração paralela de seus limites internos e externos. Tal ação faz sentido apenas no âmbito de uma ecologia de saberes, já que, tal como enfatiza Santos, o uso contra-hegemônico da ciência não pode se limitar à própria ciência187.

De modo semelhante ao que ocorre com a ciência moderna, o direito também precisa dialogar com outras experiências e outras fontes de conhecimento, no contexto de uma ecologia de saberes. Em semelhante contexto é que o movimento denominado de constitucionalismo latino-americano será trazido nesta investigação para colaborar com o aperfeiçoamento da proteção oferecida pelas experiências constitucionais, por meio de um constitucionalismo global contra-hegemônico.

Isso porque, ao falar em constitucionalismo global, não se pode esquecer que ele foi construído no âmbito de uma visão que é determinada pela experiência do direito europeu. No entanto, hoje, o constitucionalismo latino-americano (que não nasce no âmbito do movimento constitucional e que constitui um processo de emancipação não somente do direito constitucional, mas uma emancipação ampla) olha para o Sul188.

Não se pode pensar em emancipação sem aprender com o Sul, buscando uma ecologia de saberes, capaz de integrar saberes diferenciados (não somente aqueles consagrados pela cultura ocidental hegemônica). É por isso que, tal como será abordado na seção seguinte, o constitucionalismo latino-americano constitui um rompimento com as estruturas vigentes. Para pensar na perspectiva oferecida pelo constitucionalismo latino-americano, é preciso pensar nos conceitos ora desenvolvidos sob uma perspectiva pós-colonial.

Dessa forma, enfatizamos que a abertura constitucional a experiências externas é essencial para que seja possível oferecer respostas adequadas para problemas cada vez mais

186 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de

saberes. Novos Estudos, nº 79, nov. 2007, p. 71; 85.

187

Ibidem, p. 88.

188

Santos desenvolve a ideia de um pós-colonialismo de oposição com foco nas relações desiguais entre o Norte e o Sul. Assim, por meio da metáfora do Sul, que representa o sofrimento humano causado pelo capitalismo, o autor coloca as relações Norte-Sul no centro da reinvenção da emancipação social. SANTOS, Boaventura de Sousa. Do pós-moderno ao pós-colonial. E para além de um e outro. Conferência de abertura do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Coimbra, set. 2004, p. 17. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/misc/Do_pos-moderno_ao_pos-colonial.pdf>. Acesso em: 24 nov. 2014.

complexos e interconectados. No entanto, essa abertura ao aprendizado constitucional deve dar-se com humildade, a fim de levar em consideração elementos que foram ignorados pelo constitucionalismo tradicional. E é o constitucionalismo latino-americano – que trabalha com perspectivas de proteção da natureza, em uma ecologia de saberes, com um novo conceito de conhecimento – que entendemos ser um relevante interlocutor para auxiliar no movimento de descolonização do constitucionalismo.

2. O CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO COMO NOVO PROJETO