• Nenhum resultado encontrado

3. DIÁLOGOS ENTRE O CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO E A

3.1 IDENTIFICANDO ONDE É NECESSÁRIO PROTEGER MELHOR

3.1.1 A referência “dignidade da pessoa humana”

“Dignidade” é um conceito relevante no contexto desta investigação, especialmente porque seu desenvolvimento na cultura ocidental até o estágio atual (com presença marcante nas Constituições ocidentais e em tratados internacionais) permite compreender que valores têm merecido nossa consideração e proteção, e se essa proteção conferida por meio da abordagem da dignidade da pessoa humana é suficiente para alcançar todos os objetivos e compromissos do Estado (ambiental), notadamente quanto à durabilidade da vida. Uma breve retomada de aspectos pontuais das origens do conceito é capaz de subsidiar as considerações teóricas que seguirão.

Bragato aponta que, na cultura arcaica grega, o ser humano tinha como característica marcante a sua inserção em uma totalidade maior, a qual o governava e dirigia: o cosmos. Com o passar do tempo, esse paradigma foi se transformando, e, com os sofistas, inaugura-se o período humanista da filosofia antiga, pois, para a autora, a physis é retirada do centro da especulação filosófica para dar lugar à reflexão sobre o homem, tendo se evidenciado, para os sofistas, uma “irrestrita confiança nos poderes da razão humana” 330

.

330 BRAGATO, Fernanda Frizzo. A definição de pessoa e de dignidade e suas implicações práticas. In: Direitos Fundamentais & Justiça, n. 13, out.-dez. 2010, p. 80.

Assim, o desenvolvimento do conceito de pessoa331 (embora ainda sem desdobramentos ético-jurídicos) pelos gregos influenciou, mais tarde, os pensamentos romano e cristão. Para Barroso, a dignidade da pessoa humana na acepção contemporânea tem sua origem na Bíblia, encontrando como fundamento especialmente a ideia do homem feito à imagem e semelhança de Deus332.

A filosofia humanística, para Gröschner, destaca também a relação entre homem e Deus, não em termos religiosos, mas reconhecendo-o como diferenciado da natureza por sua liberdade de vontade. Tem-se aqui uma dignidade composta de duas vertentes: aquela do Renascimento, que sugere que Deus, enquanto criador do universo, deu às demais criaturas uma natureza estática, enquanto estabeleceu, para o ser humano, uma evolução dinâmica, que se dá segundo seu próprio arbítrio (o do homem), ou seja, enfatizando a liberdade humana; e a do humanismo, por meio da qual o homem nasceu livre para formar a si mesmo segundo sua própria vontade, mas também segundo sua missão333.

Barroso destaca que, ao longo do tempo, o homem ganha cada vez mais centralidade nas discussões, de modo que, com o Iluminismo, a dignidade passa definitivamente do caráter religioso ao filosófico, pautada na razão, na capacidade de valoração moral e na autodeterminação do indivíduo. Após, o autor identifica que ao longo do século XX a referência em estudo passa a ser um objetivo político, no sentido de ser um fim buscado pelo Estado e pela sociedade. Por fim, após o término da Segunda Guerra Mundial, a ideia de dignidade da pessoa humana migra para a esfera jurídica, em decorrência, para o autor, de uma cultura pós-positivista e da inclusão da referência em diferentes documentos internacionais e nas próprias Constituições dos Estados334.

Ao tratar de dignidade humana, o pensamento kantiano deve ser trazido como elemento importante da discussão, por ter influenciado sobremaneira a temática da dignidade. Kant construiu seu pensamento sobre as noções de razão e de dever, e sobre a capacidade do

331 Uma discussão interessante acerca das diferenças conceituais entre pessoa e ser humano, especialmente sob o

aspecto filosófico, desde as origens dos conceitos, é feita em: BRAGATO, Fernanda Frizzo. A definição de pessoa e de dignidade e suas implicações práticas. In: Direitos Fundamentais & Justiça, n. 13, out.-dez. 2010, passim.

332 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: natureza

jurídica, conteúdos mínimos e critérios de aplicação. Versão provisória para debate público, dez. 2010, p. 4. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2010/12/Dignidade_texto-base_11 dez2010.pdf>. Acesso em 14 nov. 2014.

333 GRÖSCHNER, Rolf. La dignidad humana. Tradução de Said Escudero Irra. 2005. p. 68. Disponível em:

<http://portal.uclm.es/portal/page/portal/IDP/Iter%20Criminis%20Documentos/Iter%20Criminis%20N%FAmer o_2/rolf%20groshner.pdf>. Acesso em 09 out. 2014.

indivíduo de dominar suas paixões e identificar, dentro de si mesmo, a conduta correta a ser seguida335.

Assim, para Kant, são conceitos fundamentais a autonomia e a dignidade. Barroso interpreta o pensamento kantiano enfatizando que a dignidade tem por fundamento a autonomia e que, em um mundo em que todos pautem sua conduta pelo imperativo categórico, tudo tem um preço ou uma dignidade. Nessa linha de raciocínio, as coisas que têm preço podem ser substituídas por outras equivalentes, mas haveria algo acima de todo preço, e que não poderia ser substituído; aí estaria presente a dignidade336.

Essa situação, para o pensamento kantiano e tudo o mais que ele influenciou, é específica e singular da pessoa humana. Nessa concepção, todas as coisas (e também toda a vida não-humana, e a natureza em geral) têm preço, enquanto apenas as pessoas têm dignidade. Por isso é que, para a moralidade kantiana, toda pessoa, enquanto ser racional, existe como um fim em si mesmo, não podendo ser considerada meio ou instrumento para fazer cumprir a vontade alheia. As pessoas humanas (e somente elas) possuem, sob essa ótica, um valor absoluto, denominado dignidade.

Tendo sua origem na filosofia, a dignidade humana constitui, primeiramente, um valor, situando-se, portanto, ao lado de outros valores centrais para o Direito, tais como a justiça, a segurança e a solidariedade. Portanto, nesse plano ético é que a dignidade constitui, conforme aponta Barroso, a justificação moral dos direitos humanos e dos direitos fundamentais. Com sua passagem pelo plano político e, principalmente, após sua aproximação do Direito, a dignidade torna-se um conceito jurídico, e não apenas moral ou político. Assim, a dignidade humana, sem deixar de ser um valor moral fundamental, recebe também o status de princípio jurídico; neste ponto, portanto, ela atuaria tanto como justificação moral quanto como fundamento normativo para os direitos fundamentais337.

No que se refere à dignidade na forma como é incorporada nos ordenamentos jurídicos338, Gröschner aponta que a máxima da dignidade na Constituição (alemã) constitui

335

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1995, passim.

336 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: natureza

jurídica, conteúdos mínimos e critérios de aplicação. Versão provisória para debate público, dez. 2010, p. 18. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2010/12/Dignidade_texto-base_11 dez2010.pdf>. Acesso em 14 nov. 2014.

337 Ibidem, p. 10-11. 338

Gröschner trata da dignidade no âmbito da Constituição alemã, que, em seu artigo primeiro, parágrafo primeiro, estabelece que a dignidade humana é inviolável. Essa construção tem influência sobre muitas outras Constituições promulgadas a partir desse período, inclusive a Constituição Federal brasileira de 1988.

uma ordem liberal, “cujo ponto filosófico consiste em definir a liberdade como liberdade de todos baseada na República, e liberdade de todos os indivíduos baseada na dignidade”. Assim, o autor ressalta que no centro da discussão sobre dignidade está a liberdade como “princípio legitimador e constitucional meta-jurídico do Estado constitucional”, sendo a dignidade constitutiva do sistema liberal da Constituição. Enquanto o Estado constitucional eleva a tese da dignidade a princípio constitucional, está reconhecendo cada indivíduo (pessoa humana) como sujeito “capaz de liberdade e digno de direitos” 339

.

Sarlet destaca que não se trata de sustentar uma equiparação entre as noções de liberdade e dignidade, mas uma intrínseca relação entre elas, visto que a liberdade – e também o reconhecimento e garantia dos direitos de liberdade e dos direitos fundamentais em geral – constitui uma das principais (mas não a única) exigência da dignidade humana340.

Para Barroso, são três os conteúdos essenciais da dignidade: o valor intrínseco, a autonomia e o valor social da pessoa humana341.

O valor intrínseco (ou valor inerente) diz respeito à afirmação da posição especial no mundo. É o que faz o ser humano ser reconhecido como um valor que não tem preço e o que o distinguiria dos demais seres vivos e das coisas. O autor entende que, no plano jurídico, o valor intrínseco da pessoa humana leva à inviolabilidade de sua dignidade, estando, portanto, na origem de diversos direitos fundamentais, sendo o primeiro deles o direito à vida.

A autonomia está ligada à razão e envolve a capacidade de autodeterminação, ou seja, o direito do indivíduo de decidir os rumos de sua vida e desenvolver livremente sua personalidade, tendo o poder de fazer valorações morais e escolhas existenciais sem interferências externas indevidas.

Barroso reforça que, na dimensão jurídica, a autonomia, enquanto elemento da dignidade, é a principal ideia considerada tanto nas Constituições dos Estados nacionais, como nas declarações de direitos internacionais. Em sua dimensão privada, a autonomia está vinculada aos direitos individuais, especialmente à liberdade e seu conteúdo essencial. Como

339 GRÖSCHNER, Rolf. La dignidade humana. Tradução de Said Escudero Irra. 2005. p. 71;78. Disponível em:

<http://portal.uclm.es/portal/page/portal/IDP/Iter%20Criminis%20Documentos/Iter%20Criminis%20N%FAmer o_2/rolf%20groshner.pdf>. Acesso em 09 out. 2014.

340

SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. Revista Brasileira de Direito Constitucional, n. 09, jan.-jun. 2007.

341 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: natureza

jurídica, conteúdos mínimos e critérios de aplicação. Versão provisória para debate público, dez. 2010, p. 22-29. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2010/12/Dignidade_texto-base_11 dez2010.pdf>. Acesso em 14 nov. 2014.

autonomia pública, a dignidade se expressaria no plano dos direitos políticos, como direito de participar do processo democrático, influenciando o processo de tomada de decisões.

Por fim, a dignidade enquanto valor comunitário (ou heteronomia) diz respeito ao indivíduo em relação ao grupo, considerando notadamente os valores comuns da sociedade para alcançar uma vida com dignidade. Nesta vertente, o componente central da dignidade não seria a liberdade, mas a própria ideia de dignidade é que moldaria o conteúdo e os limites do exercício e da compreensão de liberdade.

Para Barroso, é nesta terceira vertente que se encontra situada uma dimensão ecológica da dignidade, abrangendo aspectos da proteção ambiental e da proteção dos animais não- humanos.

Nesse ponto, julgamos relevante apresentar a abordagem proposta por Sarlet, no sentido de apresentar o que o autor denomina de dimensões da dignidade (humana). O autor identifica, no conceito de dignidade humana, as dimensões ontológica (embora não necessariamente biológica) e comunitária ou relacional (no sentido do reconhecimento pelo outro como igual em dignidade e direitos). Aponta também que a dignidade da pessoa humana é, ao mesmo tempo, limite e tarefa dos poderes estatais e da comunidade em geral, apontando, então, para as dimensões defensiva e prestacional da dignidade342.

Sarlet entende que o conceito de dignidade da pessoa humana é abrangente e difícil de ter seu conteúdo determinado. Ainda assim, a partir de certos parâmetros (os quais foram brevemente apresentados neste tópico), é possível estabelecer uma definição inicial, que deverá ganhar melhor forma conforme as especificidades de cada caso concreto.

Assim, Sarlet propõe como ponto de partida para a construção de um conceito que a dignidade humana consiste na “qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade” e implica em um “complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável”, promovendo sua participação ativa e corresponsável “nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos” 343

.

342 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão

jurídico-constitucional necessária e possível. Revista Brasileira de Direito Constitucional, n. 09, jan.-jun. 2007, p. 378.

A esse conceito de dignidade humana desenvolvido por Sarlet, o autor, em conjunto com Fensterseifer, faz a consideração, em seus trabalhos posteriores, que às dimensões tradicionais da dignidade deve ser acrescida uma dimensão ecológica, por ser a qualidade ambiental uma condição para que a vida humana se desenvolva com qualidade e dignidade.

Sob tal abordagem, Sarlet e Fensterseifer consideram haver uma lógica evolutiva nas dimensões da dignidade humana, que se identificam com a perspectiva histórica de evolução dos direitos fundamentais, ligação essa que decorre do fato de que estes representam a própria materialização da dignidade da pessoa humana em cada etapa histórica. Assim, além dos direitos liberais e dos direitos sociais como formadores do conteúdo da dignidade da pessoa humana, também os direitos de solidariedade (e aqui se encontraria inserida a qualidade ambiental) passam a compor o conteúdo da dignidade, acarretando a ampliação de seu âmbito de proteção344.

Ocorre que situar a proteção ambiental como uma das dimensões da dignidade humana é, ainda, vincular a integridade do bem ambiental à satisfação do bem estar e da qualidade de vida humana, ignorando sua proteção ou consideração quando não é colocada em xeque a satisfação das necessidades (presentes ou futuras) da pessoa humana. Ainda constitui, portanto, proteção insuficiente e falha para um sentido completo de proteção do ambiente.

Nesse sentido, Sarlet e Fensterseifer passam a questionar o excessivo antropocentrismo que informa o pensamento kantiano concernente à dignidade, especialmente porque o conceito deve conformar-se a novos valores ecológicos presentes nas relações sociais contemporâneas, que reclamam uma nova concepção ética. Os autores entendem, então, que a vedação à prática de tratamento como um simples meio não deve ser limitada apenas à vida humana, mas deve contemplar também outras formas de vida345.

A partir das referências apresentadas, fica claro que falar em dignidade pressupõe tratar de como a Constituição protege pessoas. No entanto, conforme já demonstrado no decorrer deste trabalho, atribuir proteção integral para que a vida se mantenha e se desenvolva plenamente, assim como proteger relações diferenciadas entre comunidade humana e natureza, pressupõe uma proteção alargada, que não se limite à pessoa humana, ou ao ambiente considerado de maneira isolada. Pressupõe uma ruptura com a forma com que a proteção da pessoa humana é tratada hoje, para o fim de considerar que há outros valores

344 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Algumas notas sobre a dimensão ecológica da

dignidade da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral. Revista da Defensoria Pública da União

(RDU), n. 19, dez. 2009, p. 11. 345 Ibidem, p. 13.

intrínsecos que são relevantes para a proteção da vida (humana e não-humana). No entanto, tal ruptura não pode ser adequadamente trabalhada por meio de valores, categorias ou teorias que apenas confirmam aquilo que se pretende redimensionar.

Assim, pretende-se deixar claro que a proposta desta pesquisa não é, de forma alguma, reduzir a proteção já conquistada para as pessoas. A referência “dignidade” é – e continuará a ser – relevante para proteger direitos fundamentais. A proposta desta investigação é alargar o sentido da proteção constitucional atualmente conferida, de forma a proteger melhor as próprias pessoas em uma perspectiva individual, mas também considerar outros valores relevantes e igualmente dignos de proteção, como a proteção de pessoas sob um aspecto coletivo, agregando uma dimensão cultural, e também protegendo a vida de maneira geral, pois somente por meio da integração entre todos esses elementos será possível conferir um sentido de proteção integral e duradoura.

Para que a pretendida proteção seja possível de ser concretizada, é preciso pensar em outros parâmetros capazes de, ao lado da referência dignidade da pessoa humana, oferecer proteção completa às bases fundamentais da vida. Para tanto, deve-se compreender que a dignidade, embora irradiadora de muitos e importantes direitos fundamentais, não pode ser considerada como fonte de todos os direitos. Não se pode afirmar que todos os direitos derivam dela, ou se resumem a ela, pois fazer essa afirmação seria circunscrever demasiadamente o universo valorativo.

É nesse sentido que Sarlet e Fensterseifer expõem que a Constituição Federal brasileira, em seu art. 1º, III, ao consagrar a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental – e, portanto, fundamento do próprio Estado de Direito –, propõe que é a partir desse valor e princípio que os demais princípios e regras moldam seu conteúdo normativo e axiológico. Para os autores, isso não significa que a dignidade é o único valor que cumpre tal função, e não significa também que todos os direitos fundamentais encontram seu fundamento direto e exclusivo na dignidade da pessoa humana.

Desse modo, se a dignidade humana é, para Sarlet e Fensterseifer, o valor e princípio de maior hierarquia da nossa Constituição, ele o é ao lado do respeito e da proteção da vida. Portanto, no âmbito de um Estado ambiental (ou, para os autores, socioambiental), a dignidade da pessoa humana é tomada como um dos principais, mas não exclusivo, fundamentos e tarefas da comunidade estatal346.

346

SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Algumas notas sobre a dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral. Revista da Defensoria Pública da União

Ressaltamos que, em nossa compreensão, situar o valor “ambiente” somente como dimensão da dignidade da pessoa humana significa ainda compreendê-lo como instrumento para o ser humano e, no plano prático, não apresenta o potencial transformador necessário para alcançar os efeitos pretendidos quanto ao reforço na proteção da vida em todas as suas formas. Pensamos que, em conjunto com a dignidade humana, é preciso considerar a natureza como dotada de valor próprio, em interação e complementaridade com os demais valores.

Na cultura jurídica ocidental, os direitos fundamentais e humanos referem-se sempre ao ser humano, pois somente o homem pode valorar – somente ele pode atribuir valor e, por meio desse valor, proteção jurídica a bens relevantes à sua existência com qualidade e dignidade. Mas, se somente ao homem é dado o poder de valorar, é certo que ele pode valorar elementos do seu entorno; no caso, pode e deve reconhecer valor ao meio ambiente.

Assim, não adentrando no mérito acerca da possibilidade de estender a referência “dignidade” à proteção da vida não-humana, é certo que ao menos uma de suas dimensões é possível de ser reconhecida à natureza e aos seres vivos de maneira geral: o valor intrínseco. Conforme exposto anteriormente, é por meio do reconhecimento do valor intrínseco que se considera algo como digno de consideração e como algo distinto das coisas; como dotado de um valor que não tem preço.

No entanto, não é possível continuar sustentando (como tem sido feito na cultura ocidental) que somente o ser humano guarda uma posição distinta dos demais seres no mundo. E mais: para além do valor de cada ser em si, é preciso perceber o valor que existe no equilíbrio e na harmonia de todo o sistema formado pela grande comunidade da vida347.

A questão do alargamento do âmbito de proteção da dignidade tem sido desenvolvida pelos estudiosos dos direitos dos animais não-humanos e pode contribuir em parte com o debate aqui proposto. Nos termos expostos por Nussbaum, é rejeitada a ideia de que os animais não-humanos são protegidos apenas por questões de compaixão e que o tratamento cruel a esses seres seria vedado por serem considerados indignos (no sentido de que praticar atos de crueldade teria o condão de ferir a própria dignidade da pessoa humana). A autora defende uma ideia de justiça que reconheça o valor intrínseco e a dignidade de animais não- humanos348, sendo que o dever moral de não tratar cruelmente os animais encontra seu

347

Expressão utilizada pela Carta da Terra em seu primeiro princípio fundamental, que trata do respeito e dos cuidados com toda a comunidade viva. COMISSÃO da Carta da Terra. Carta da Terra. Disponível em: <http://www.cartadaterrabrasil.org/prt/text.html>. Acesso em 4 out. 2013.

348 É preciso considerar, no entanto, que a posição sustentada por Nussbaum diz respeito ao reconhecimento da

dignidade em relação a alguns animais não-humanos, considerando que há distinções moralmente relevantes entre todas as formas de vida. Para a autora, o que é relevante para aferir o dano a uma criatura é a sensibilidade, de modo que “o nível de vida é relevante não porque atribui às diferentes espécies um valor diferenciado por si

fundamento não na dignidade ou na compaixão humana, mas na própria dignidade inerente à