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2. O CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO COMO NOVO PROJETO

2.3 A NATUREZA COMO SUJEITO DE DIREITOS: O GIRO BIOCÊNTRICO E A

O resgate de saberes e simbologias tradicionais dos povos indígenas nas Constituições equatoriana e boliviana, notadamente por meio do reconhecimento de um direito ao bem viver, é de grande relevância para construir uma outra forma de relacionamento do ser humano com a natureza, diferente daquela projetada pela modernidade, baseada na superexploração do ambiente.

Assim, a própria ideia de bem viver abarca uma dimensão ecológica268, ao trazer como meta outra forma de desenvolvimento, a partir de uma relação mais equitativa com a natureza. Por meio da ideia de bem viver, visualiza-se a indivisibilidade entre os diversos componentes da vida; nessa lógica de harmonia, o ser humano não considera seus direitos de maneira isolada, mas na inter-relação com o outro, que engloba não apenas o elemento humano, mas a vida em geral.

267 TAPIA MEALLA, Luis. La invención del nucleo común. Ciudadanía y gobierno multisocietal. CIDES -

UMSA, Pós-graduação em Ciências do Desenvolvimento, La Paz, Bolívia, 2006, p. 65.

268

Nesse sentido, vale lembrar que a Constituição do Equador insere o direito a um ambiente sadio como seção do capítulo destinado aos direitos do bem viver. Cf. ECUADOR. Constitución del Ecuador. 2008. Disponível em: <http://www.asambleanacional.gov.ec/documentos/constitucion_de_bolsillo.pdf>. Acesso em: 10 abr. 2012.

No terceiro ciclo do constitucionalismo latino-americano, além da interpretação de um sentido mais alargado para a proteção ambiental que decorre das disposições relacionadas ao bem viver, os ordenamentos andinos destinaram, ainda, previsões específicas associadas aos direitos da Natureza ou Pachamama na Constituição do Equador e dos direitos da Mãe Terra na legislação infraconstitucional da Bolívia.

Dessa forma, além do direito a um ambiente sadio e equilibrado, capaz de garantir à população uma vida que vá ao encontro do bem viver269, por meio do qual se declara como de interesse público “a preservação do ambiente, a conservação dos ecossistemas, a biodiversidade e a integridade do patrimônio genético do país, a prevenção do dano ambiental e a recuperação dos espaços naturais degradados”, o Equador fez constar em seu texto constitucional um capítulo específico, também sob o título “Direitos”, voltado aos direitos da natureza270.

Ali é definida a Natureza, ou Pachamama – em referência à sabedoria ancestral indígena –, como o local “onde se reproduz e realiza a vida”. A Constituição equatoriana elenca direitos que são atribuídos à natureza, não enquanto condição para o desenvolvimento digno da pessoa humana, mas enquanto detentora de valor intrínseco. Atribui-se à natureza o direito a que seja respeitada sua existência, à manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, sua estrutura, funções e processos evolutivos, e o direito à restauração – independente da indenização devida a particulares ou a coletividades que sofram efeitos decorrentes de danos ambientais. Há, por fim, a previsão de que a produção, prestação e aproveitamento dos serviços ambientais serão regulados pelo Estado, não sendo suscetíveis de apropriação.

Na Constituição da Bolívia, há uma previsão para o direito ao meio ambiente271, inserido no capítulo que versa sobre os direitos sociais e econômicos, estabelecendo-se ali que as pessoas têm direito “a um meio ambiente saudável, protegido e equilibrado”, sendo que o exercício desse direito deve “permitir aos indivíduos e coletividades das presentes e futuras gerações, além de outros seres vivos, desenvolverem-se de maneira normal e permanente”.

269 Título II – “Derechos”, Capítulo Segundo – “Derechos de Buen Vivir”, Sección Segunda – “Ambiente Sano”,

Art. 14, da Constituição do Equador. Cf. ECUADOR. Constitución del Ecuador. 2008. Disponível em: <http://www.asambleanacional.gov.ec/documentos/constitucion_de_bolsillo.pdf>. Acesso em: 10 abr. 2012.

270 Título II – “Derechos”, Capítulo Sétimo – “Derechos de la naturaleza”, arts. 71 a 74. Ibidem.

271 Primeira parte – “Bases fundamentales del Estado – Derechos, deberes y garantias”, Título II – “Derechos

fundamentales y garantias”, Capítulo Quinto – “Derechos sociales y económicos”, Sección I – “Derecho al médio ambiente”. Cf. BOLIVIA. Constitución política del Estado. 2008. Disponível em: <http://www.justicia.gob.bo/index.php/normativa/normas-nacionales/search_result>. Acesso em: 10 abr. 2012.

Além disso, no título em que são dispostos os deveres dos bolivianos e bolivianas272, as disposições relacionadas ao meio ambiente impõem como deveres: “resguardar, defender e proteger o patrimônio natural, econômico e cultural da Bolívia”; “proteger e defender os recursos naturais e contribuir para seu uso sustentável, para preservar os direitos das futuras gerações”; “proteger e defender um meio ambiente adequado para o desenvolvimento dos seres vivos”.

Destina-se, ainda, um título inteiro para tratar do meio ambiente, recursos naturais, terra e território273, abordando, principalmente, a regulação do Estado sobre os bens ambientais, de forma a assegurar sua “soberania sobre os recursos naturais”, estabelecendo que o patrimônio natural é de interesse público e de caráter estratégico para o desenvolvimento sustentável no país.

Embora no texto constitucional da Bolívia não haja referência específica à atribuição de direitos à natureza, tal como ocorreu no Equador, e ainda que a perspectiva boliviana possa ser considerada vinculada à visão antropocêntrica, dada a previsão de apropriação e industrialização dos recursos naturais, a natureza é abordada, também, sob a perspectiva e terminologia dos povos indígenas em textos infraconstitucionais.

Assim, por meio da Lei nº 71 de 2010 (“Ley de derechos de la Madre Tierra”)274 e da Lei nº 300 de 2012 (“Ley marco de la Madre Tierra y desarollo integral para vivir bien”)275

, protege-se a “Madre Tierra”, a Mãe Terra, o que sugere ser um reforço à concepção de interdependência entre ser humano e natureza, e de indivisibilidade entre elementos ecológicos e culturais. Nesse sentido, a Mãe Terra é definida como “o sistema vivo dinâmico conformado pela comunidade indivisível de todos os sistemas de vida e os seres vivos, inter- relacionados, interdependentes e complementares, que compartilham um destino comum” 276

. A Lei nº 71/2010 reconhece os direitos da Mãe Terra, bem como as obrigações e deveres do Estado e da sociedade para que os referidos direitos sejam concretizados. São estabelecidos ali princípios e definições; há o detalhamento de quais seriam os direitos da

272 Primeira parte – “Bases fundamentales del Estado – Derechos, deberes y garantias”, Título III – “Deberes”,

art. 108. Ibidem.

273 Quarta parte – “Estructura y organización económica del Estado”, Título II – “Medio ambiente, recursos

naturales, tierra y território”. Cf. BOLIVIA. Constitución política del Estado. 2008. Disponível em: <http://www.justicia.gob.bo/index.php/normativa/normas-nacionales/search_result>. Acesso em: 10 abr. 2012.

274

BOLIVIA. Ley nº 71, 21 de diciembre de 2010. Ley de derechos de la Madre Tierra. Disponível em: <http://www.lexivox.org/norms/BO-L-N71.xhtml>. Acesso em: 06 jun. 2013.

275 BOLIVIA. Ley nº 300, 15 de octubre de 2012. Ley marco de la Madre Tierra y desarrollo integral para vivir bien. Disponível em: <http://www.planificacion.gob.bo/sites/folders/marco-legal/Ley%20N%C2%B0%20300%

20MARCO%20DE%20LA%20MADRE%20TIERRA.pdf>. Acesso em: 06 jun. 2013.

Mãe Terra – direito à integridade e à diversidade da vida, à preservação das funcionalidades dos ciclos d’água, à manutenção da qualidade do ar, ao equilíbrio, à restauração e a viver livre de contaminação. E, por fim, são relacionadas as obrigações do Estado – no sentido de desenvolver políticas públicas que evitem a extinção de seres vivos, a alteração dos ciclos e processos que garantam a existência da vida – e da sociedade – tais como defender e respeitar os direitos da Mãe Terra, promover a harmonia dos sistemas de vida, adotar hábitos de consumo e aproveitamento dos recursos naturais de forma compatível com os direitos em questão.

A Lei nº 300 é muito mais extensa e detalhada, tratando não apenas dos direitos da Mãe Terra, mas de sua integração com o regime de bem viver. Ali é exposto, então, o que se entende por desenvolvimento integral para alcançar o bem viver e quais são as bases e estratégias de sua implementação; o rol de princípios, definições, direitos, obrigações e deveres é alargado em relação à lei anterior.

A partir das novas Constituições que marcam este terceiro ciclo de um novo constitucionalismo na América Latina, tem-se referido a um verdadeiro giro biocêntrico nas novas ordens constitucionais. Para compreender em que consiste essa mudança de paradigma e quais as suas implicações para a proteção da natureza, serão feitas algumas considerações acerca do antropocentrismo e do biocentrismo, no âmbito da ética ambiental.

De maneira geral, é possível dizer que os dilemas éticos ambientais consubstanciam-se na dicotomia antropocentrismo versus biocentrismo. Na cultura ocidental, parece estar enraizada a ideia de que a sociedade humana e a natureza são antagônicas e incompatíveis entre si. Nota-se, ao longo da história, a concepção de que a sociedade dita civilizada está à parte da natureza caótica que a circunda277, e que por isso o ser humano deve dominar os elementos naturais.

Em uma continuidade a esse rompimento entre ser humano e natureza, ainda atualmente prevalece na cultura ocidental dominante uma ótica puramente antropocêntrica, a partir da qual a natureza é considerada como um meio para garantir ao ser humano qualidade

277 Nesse sentido, Colchester aponta que, diferentemente das religiões de muitos povos indígenas, na tradição

judaico-cristã foi dado ao homem o domínio sobre a natureza. Desde a Grécia antiga já era perceptível a visão da natureza não domesticada, um mundo selvagem habitado por bárbaros, em contraposição à “cultura racional ordenada pelos homens”. É possível notar essa ideia também na Europa, na Idade Média, no sentido de que o mundo civilizado era rodeado por florestas, que supostamente seriam a morada de feiticeiros e bruxas que retiravam seu poder das forças misteriosas da natureza. Cf. COLCHESTER, Marcus. Resgatando a natureza: comunidades tradicionais e áreas protegidas. In: DIEGUES, Antonio Carlos (org.). Etnoconservação: novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 2000, p. 225.

de vida e bem estar. Conforme explicita Leite278, o antropocentrismo pode ser dividido em duas correntes, quais sejam, o economicocentrismo e o antropocentrismo alargado. Para o autor, a primeira corrente faz com que qualquer consideração sobre a temática ambiental tenha como base o proveito econômico pelo ser humano. Já no chamado antropocentrismo alargado, há certa autonomia do meio ambiente nas discussões, mas sempre considerando sua proteção como garantia de sobrevivência da espécie humana.

Na visão antropocêntrica, a natureza é um conjunto de objetos conhecidos e valorados em função das pessoas e é apenas objeto de direitos, já que estes residem apenas no ser humano279. Gudynas considera que esta postura tem uma visão dualista; isto porque de um lado o ser humano se separa e se considera distinto da natureza, e de outro, é tomado como medida, origem e destino de todos os valores280. Assim, para o autor, a natureza é fragmentada, sendo que alguns elementos são ignorados, enquanto outros se viabilizam, na medida em que são úteis ou afetam as pessoas.

Por sua vez, o biocentrismo, identificado por Leite sob a denominação de ecologia profunda281, não distingue a natureza do próprio ser humano. Não se trata de afastar a busca do bem estar também para o ser humano, em detrimento da natureza, mas de reconhecer o valor intrínseco de todos os seres vivos, estando o ser humano interagindo com os demais elementos, inserido na teia da vida, na concepção de Capra282. Esta visão considera, portanto, a natureza como portadora de valor em si mesmo, ou seja, valor independente de sua utilidade ou benefício, real ou potencial, que possa transmitir ao ser humano283.

Nota-se, então, que, enquanto no antropocentrismo fala-se em proteção do meio ambiente como requisito essencial para a garantia da dignidade da pessoa humana, a ética biocêntrica284 clama por uma proteção da natureza em si mesma, pela manutenção das bases

278

LEITE, José Rubens Morato. Dilemas éticos ambientais e conceituais na formação do Estado Constitucional brasileiro. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (orgs.). Direito constitucional

ambiental brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 137.

279 GUDYNAS, Eduardo. La senda biocêntrica: valores intrínsecos, derechos de la naturaleza y justicia

ecológica. In: Tabula Rasa. Bogotá, n. 13, jul-dez. 2010, p. 48.

280

Ibidem, p. 49.

281 LEITE, José Rubens Morato. Opus citatum, p. 139.

282 CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Culturix,

1996.

283

GUDYNAS, Eduardo. Opus citatum, p. 50.

284 É interessante destacar que, para Ferry, a relação não antropocêntrica com a natureza não encontra lugar no

movimento geral de libertação permanente que caracterizou a história dos Estados Unidos, tais como a emancipação dos negros, das mulheres, das crianças, e até mesmo dos animais não-humanos. Para o autor, a ideia de um direito intrínseco à natureza e aos elementos que a compõem é oposta ao humanismo jurídico dominante no universo liberal moderno. O biocentrismo, para Ferry denominado de ecologia profunda, não se

naturais da vida, com vistas a garantir a durabilidade da vida em todas as suas formas e assegurar a dignidade da vida, que não se restringe à dimensão humana.

Para Ferry, a ecologia profunda baseia-se no holismo, tese filosófica segundo a qual o todo é superior moralmente aos indivíduos, o que significa que, de maneira contrária ao individualismo que caracteriza a modernidade ocidental, é necessário reconhecer que a ecosfera é uma realidade da qual os seres humanos são apenas uma parte; pertencem a ela e dela são totalmente dependentes. Essa é, para a ecologia profunda, a fonte do valor intrínseco da natureza285.

Zaffaroni chama a atenção para o fato de que, por fazer necessariamente uma crítica ao sistema produtivo atual, são muitos os teóricos que se opõem à ecologia profunda, distorcendo o discurso biocêntrico e transformando-o em um discurso anti-humanista286. Ocorre que o ser humano é deslocado do lugar de titular do domínio absoluto sobre a natureza, e a sua integração ao conjunto de interesses de todo o sistema interdependente que compõe a vida na Terra. Tem-se, então, a ampliação do reconhecimento dos sujeitos de direitos e a ruptura com o especismo, que reconhece apenas o ser humano como merecedor e detentor de direitos, inclusive à existência287.

Conforme mencionado em momento anterior, a magnitude das transformações advindas do terceiro ciclo do constitucionalismo latino-americano, especialmente no que se refere à atribuição de uma titularidade de direitos à natureza, fez com que, em maior grau no Equador288, mas também com uma leitura possível na Bolívia289, fosse afirmado o giro biocêntrico dessas novas Constituições.

Nesse sentido, Gudynas enfatiza que, ao reconhecer à natureza direitos que lhe são próprios, independentes de valoração humana, a natureza passa de objeto a sujeito de direitos. Para o autor, um passo intermediário foi tomado em vários locais, quando foram reconhecidos

aproxima de um ambientalismo reformista; seu objetivo é rediscutir os modelos de pensamento convencionais no Ocidente moderno, propondo alternativas. Cf. FERRY, Luc. A nova ordem ecológica: a árvore, o animal e o homem. Tradução de Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009, p. 135.

285 FERRY, Luc. A nova ordem ecológica: a árvore, o animal e o homem. Tradução de Rejane Janowitzer. Rio

de Janeiro: DIFEL, 2009, p. 131.

286 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La Pachamama y el humano. In: ACOSTA, Alberto; MARTÍNEZ, Esperanza. La naturaleza con derechos: de la filosofía a la política. Quito: Abya Yala, 2011, p. 87.

287

Ibidem, p. 87.

288

Cf. MORAES, Germana de Oliveira; FREITAS, Raquel Coelho. O novo constitucionalismo latino-americano e o giro ecocêntrico da Constituição do Equador de 2008: os direitos de Pachamama e o bem viver (sumak

kawsay). In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters (org.). Constitucionalismo latino-americano:

tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013.E ainda: GUDYNAS, Eduardo. La ecología política del giro biocêntrico en la nueva Constitución de Ecuador. Revista de Estudios Sociales, n. 32, p. 34-47, abr. 2009.

direitos aos animais não humanos. A partir de um avanço um pouco maior, a natureza não pode mais ser concebida como conjunto de bens e serviços com valor de uso ou troca, ou como uma extensão dos direitos de propriedade ou posse, seja individual ou coletiva290.

Na concepção de Acosta, a partir das transformações constitucionais oriundas do reconhecimento dos direitos da natureza, o ponto central consiste no resgate do direito à

existência dos próprios seres humanos e de todos os seres vivos. Destaca-se aqui uma relação

complementar entre direitos humanos e direitos da natureza291.

O autor propõe, então, uma distinção relevante, no sentido de que o direito a um ambiente sadio integra, na realidade, os direitos humanos. Os chamados direitos humanos de terceira dimensão, tais como o direito a um ambiente sadio e à qualidade de vida, têm uma essência antropocêntrica. Portanto, devem ser compreendidos à parte dos direitos da natureza292.

Considerar direitos ao meio ambiente, unicamente enquanto condição de manutenção da dignidade humana, restringe as possibilidades de reconhecer a sério os direitos da grande comunidade da vida. É preciso, portanto, passar de uma ótica de desenvolvimento sustentável e de direito ao meio ambiente equilibrado, para a afirmação de direitos da natureza, os quais, por certo, integram o ser humano em seu âmbito de proteção, por prezar pelo equilíbrio da vida e sua continuidade.

Um aspecto relevante observado por Acosta reside na explanação de que a visão biocêntrica da natureza como valor em si mesma, de forma independente aos usos que possa ter para o ser humano, não coincide com a visão de uma natureza intocada. Os direitos da natureza definem a manutenção dos sistemas de vida, ou, em outras palavras, do conjunto da vida. O enfoque, aqui, está nos ecossistemas e na coletividade, não nos indivíduos293.

Ao compreender essa diferenciação entre os direitos da natureza e os direitos humanos, nota-se que, em sua interação, há uma relação de complementaridade, de modo que, conjuntamente, transformam-se em direitos da vida e para a vida294.

290 GUDYNAS, Eduardo. La ecología política del giro biocêntrico en la nueva Constitución de Ecuador. Revista de Estudios Sociales, n. 32, p. 34-47, abr. 2009, p. 38.

291

ACOSTA, Alberto. Los derechos de la naturaleza: una lectura sobre el derecho a la existencia. In: ACOSTA, Alberto; MARTÍNEZ, Esperanza. La naturaleza con derechos: de la filosofía a la política. Quito: Abya Yala, 2011, p. 343.

292

Ibidem, p. 349.

293 Ibidem, p. 354-355. 294 Ibidem, p. 356.

Dentre os efeitos práticos da emergência de direitos da natureza, Gudynas destaca que há um reflexo no modelo de gestão ambiental adotado. Isso porque a perspectiva biocêntrica rompe com a mercantilização da natureza, de forma que a gestão do ambiente não pode ser reduzida a uma forma de economia ambiental, pautada em uma análise de custo-benefício que incorpora variedades ecológicas como indicadores, mas também não significa que tais estudos devam ser abandonados. O autor entende que o giro biocêntrico requer o reconhecimento da pluralidade de valorações sobre a natureza, abrangendo, portanto, propostas multiculturais295. Outro exemplo mencionado por Gudynas, a título de consequência da abordagem biocêntrica296 proposta pelo constitucionalismo latino-americano em seu terceiro ciclo, diz respeito à ruptura com posturas convencionais de conservação em áreas consideradas especialmente protegidas, posturas essas que salientam a riqueza de espécies, a beleza cênica ou o potencial benefício econômico esperado. Como consequência da afirmação de direitos da natureza, há uma igualdade valorativa, de modo que espécies consideradas “feias” ou “desagradáveis”, ou sem valor comercial, devem ser merecedoras de proteção com o mesmo afinco297.

O reconhecimento da natureza enquanto detentora de direitos implica em determinadas questões que merecerão abordagem mais detalhada na seção posterior deste estudo, especialmente no que se refere a contradições e limitações desse modelo, para que ele não se torne incoerente.

No entanto, cabe, desde já, enfatizar que, quando se trata de direitos da natureza, não significa a atribuição de igual consideração ou equivalência entre natureza e ser humano. E mais, a forma como tais direitos serão implementados depende do modo como foi realizada, constitucionalmente, tal atribuição.

Destaca-se uma diferença de abordagem entre os modelos equatoriano e boliviano. O modelo adotado pelo Equador, consistente em reconhecer de maneira explícita no texto constitucional os direitos da natureza, elencando, sob uma redação mais abstrata, os direitos ao respeito integral de sua existência, bem como que sejam mantidos e regenerados seus

295 GUDYNAS, Eduardo. La ecología política del giro biocêntrico en la nueva Constitución de Ecuador. Revista de Estudios Sociales, n. 32, p. 34-47, abr. 2009, p. 42.

296

Vale ressaltar que, para Giraldo, a proposta das novas Constituições do Equador e da Bolívia não quer significar biocentrismo, ecocentrismo ou cosmocentrismo e, sim, “uma trama de relações vazias de todo centro”, de modo que cada elemento possa ser pensado como centro e circunferência ao mesmo tempo. Cf. GIRALDO, Omar Felipe. Utopías en la era de la supervivencia: una interpretación del buen vivir. México: Editorial Itaca; Chapingo, Estado de México: Universidad Autónoma de Chapingo, Departamento de Sociología Rural, 2014, p.