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3. DIÁLOGOS ENTRE O CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO E A

3.2 CONSTRUINDO SOLUÇÕES POR MEIO DA INTERAÇÃO ENTRE EXPERIÊNCIAS

3.2.2 Uma proposta de diálogo: a ordem constitucional como instrumento aberto

Um caminho possível para viabilizar o diálogo da experiência brasileira com experiências externas – devendo-se destacar, como importante interlocutor sugerido para tal finalidade, as Constituições do Equador e da Bolívia – leva em consideração, conforme mencionado anteriormente, o uso de algum instrumento que favoreça tal construção. É importante ressaltar que o objetivo de tal interação é que a experiência constitucional nacional possa oferecer melhores níveis de proteção normativa para o direito fundamental ao meio ambiente, além de melhores condições de concretização.

Nesse sentido, o Estado deve oferecer respostas para o desafio de proteção dos direitos fundamentais – e, dentre eles, o direito ao meio ambiente, em uma perspectiva de proteção completa – por meio de um projeto constitucional.

No entanto, esse projeto constitucional não poderá ser levado adiante nos moldes clássicos. Isso porque a Constituição consiste em uma técnica para a proteção de bens fundamentais, devendo, portanto, operar como um veículo de comunicação, a fim de facilitar o alcance dos objetivos e compromissos do Estado (ambiental) de Direito.

Um Estado de Direito que não seja capaz de se relacionar de maneira mais complexa por meio da interação e coordenação de experiências será incapaz de oferecer proteção completa para aqueles bens e valores essenciais para a existência e continuidade de sua comunidade política. Dessa forma, os níveis de proteção que o Estado irá fornecer dependerão da capacidade que esse Estado tem de aprender com outras experiências.

A Constituição ambiental é um processo materialmente aberto à coordenação entre experiências jurídicas. A ideia de constitucionalismo global permite visualizar um arranjo jurídico apto a favorecer o aprendizado e, por meio dele, o aperfeiçoamento das experiências constitucionais – como, no caso, a experiência brasileira.

As ideias-chave para o desenvolvimento de um constitucionalismo global foram expostas na primeira seção desta pesquisa. Ali foram identificadas algumas das tendências do constitucionalismo atual, as quais, por caminhos um pouco diferentes entre si, buscam propor formas de concretização do constitucionalismo global. Conforme esclarecido na primeira seção, a construção teórica vinculada a um constitucionalismo global indica nada mais que alguns valores que, dada a sua relevância, são comuns a todas as ordens jurídicas, motivo pelo qual devem ser objeto de consideração por todas elas e devem ser motivo de diálogo, a fim de encontrar respostas harmônicas e de obter experiências de aprendizado.

Nessa perspectiva, a ordem constitucional é considerada como um instrumento aberto, situado no contexto de uma ordem jurídica global, capaz de interagir e se integrar com a cultura constitucional de outras experiências.

Tal fenômeno independe de considerar a integração de instrumentos internacionais ao plano interno e independe também da discussão sobre a hierarquia de fontes. Isso porque a ordem global deve ser considerada como um projeto cooperativo, que compõe uma arquitetura baseada em rede.

Essa é uma estrutura capaz de aprender com as experiências jurídicas. A necessidade de diálogo e de aprendizado decorre do fato de que o bloco de constitucionalidade – identificado como os bens e valores protegidos pela Constituição e o modo como eles são protegidos – é aberto e permanentemente revisível.

A comunicação entre as experiências jurídicas nos permite pensar além do que nossa experiência tem produzido até então, não porque outros ordenamentos sejam superiores, ou melhores, ou, enfim, que seja possível e adequado estabelecer uma hierarquia entre as experiências jurídicas.

O pretendido reforço nos níveis de proteção conferidos depende, então, de uma ordem jurídica materialmente aberta, ou, em outras palavras, uma ordem jurídica que proponha transnormatividade e sincretismo entre as fontes, e não hierarquia.

Em semelhante contexto, a soberania cede lugar à autonomia. Para que sejam obtidos níveis adequados de proteção, o arranjo jurídico deve levar em consideração uma arquitetura por meio da qual todos os instrumentos à disposição – sejam eles vinculantes ou não, tais como leis, tratados, convenções, dentre outros – dialoguem com a Constituição.

A ideia é que, em uma ordem global, há problemas semelhantes, que exigem cooperação para que cada ordem jurídica, a seu modo, possa oferecer contribuições que levem ao aprimoramento das experiências. Tal comunicação permitiria uma harmonização nas respostas – o que não significa homogeneidade, mas consensos que respeitem a pluralidade de valores e que contribuam para um sentido mais forte de proteção. Verifica-se, portanto, que as Constituições continuam a ter uma função relevante, mas também diferenciada. Devem atuar como veículos de concretização dos valores que realmente importam para o desenvolvimento das pessoas e da vida em geral.

Por meio de um diálogo transnormativo, no contexto de um constitucionalismo global, a ordem constitucional é considerada como um instrumento jurídico aberto, capaz de interagir e de se integrar com outras experiências, permitindo o desdobramento (e a solução) de problemas jurídicos que atravessam os diversos tipos de ordens jurídicas. No que se refere ao

direito do ambiente, a questão de como assegurar a proteção da vida, ou de como agregar o elemento ecológico e oferecer proteção a todas as realidades de maneira integrada, é o problema chave que permeia todas as ordens e que exige aprendizado mútuo para construir soluções coerentes.

Ocorre que, até o momento, a interação da experiência jurídica brasileira tem sido levada a efeito, predominantemente, com ordens jurídicas tradicionais ocidentais, notadamente por meio do direito europeu e de outros que dele decorrem.

O diferencial da construção aqui sugerida está em ressaltar que não precisamos aprender somente com o modelo tradicional europeu. É preciso ter não apenas abertura à aprendizagem constitucional, mas também humildade constitucional, para perceber que há experiências bastante próximas que, apesar de encontrarem sua justificação em outros fundamentos culturais e sociais, são capazes de auxiliar na construção de um outro sentido para a proteção do meio ambiente, de uma maneira muito mais completa e integrativa do que tem se verificado neste momento.

A concretização dos compromissos assumidos pela Constituição pode ser viabilizada, então, a partir da tríade abertura, aprendizado e humildade constitucional. Os três elementos contribuem para o alcance de uma cultura constitucional comprometida com os direitos fundamentais. Tem-se, nesse sentido, a ideia de uma Constituição a serviço da proteção de bens e valores fundamentais, os quais somente poderão ser de fato protegidos frente aos novos riscos existenciais a partir da abertura do ordenamento jurídico à coordenação e ao sincretismo entre as fontes, a fim de proporcionar elementos capazes de proteger as bases naturais da vida.

Portanto, é fundamental que haja não apenas uma conversação entre as ordens, mas um verdadeiro diálogo aberto à reflexão, que evidencie o que precisamos aprender e o que o constitucionalismo latino-americano tem a nos oferecer nesse sentido.

Assim, o constitucionalismo latino-americano colabora para a percepção de que a natureza e a pessoa humana, individual e em coletividade, são um todo indivisível. Da mesma maneira, os direitos devem ser tratados de maneira harmônica e indivisível, pois o equilíbrio de todos os fatores leva a um bem viver, que não coincide com o sentido de dignidade (ocidental).

Para tanto, a ideia de valor intrínseco da pessoa humana é alargada para abranger a vida em todas as suas formas, pois cada forma de vida estabelece relações com a garantia de continuidade das bases naturais da vida.

Além da concepção integrativa de meio ambiente (agregando, inclusive, um aspecto cultural), o constitucionalismo latino-americano contribui, também, no sentido de devolver às minorias étnicas, notadamente aos povos indígenas, seu protagonismo na determinação de seus projetos de vida coletivos. Permite aproximá-los da discussão e reconhecê-los, cada vez mais, como sujeitos de sua identidade, história e futuro. Permite reconhecê-los como verdadeiramente visíveis sob o aspecto da concretização constitucional.

Para alcançar tais resultados, todas as teorias desenvolvidas na primeira seção desta investigação ilustram como é possível estabelecer o diálogo entre experiências diferenciadas, na tentativa de resolver o problema proposto, possibilitando entender como experiências constitucionais com deveres semelhantes oferecem respostas muito diferentes.

Cabe destacar que não é possível fazer uso de teorias duras do direito constitucional para explicar um movimento que não surgiu no direito360. Do mesmo modo, também não é possível entender tais transformações como um processo de construção bastante bem definido, como foi no caso europeu, onde se chegou até a ideia de uma Constituição multinível, ideia esta muito conectada com os movimentos constitucionalistas ocidentais atuais.

Não é esse o caso da América Latina e do movimento constitucionalista que tem se desenvolvido aqui. E é essa a contribuição do Sul para os movimentos constitucionalistas: uma nova maneira de perceber a temática da proteção ambiental, social e cultural e oferecer soluções integrativas sob todos esses aspectos.

É por meio das contribuições do Sul que se propõe um sentido alargado e integrativo para a proteção do meio ambiente constante na Constituição brasileira. Esse é um processo de construção voluntário, por meio do qual se verifica que a norma precisa ter um sentido dinâmico.

Nesse sentido, a Constituição deve ter seu sentido em permanente atualização, para que seja capaz de resolver os conflitos no momento em que eles se apresentem, e com os melhores instrumentos que tiver à sua disposição – portanto, em coordenação com leis, tratados, convenções e todos os demais instrumentos que, juntos, compõem uma arquitetura

360 Entendemos que o constitucionalismo latino-americano é o resultado de um processo, e não o início de um

processo, tal como procuramos demonstrar na segunda seção desta investigação. A capacidade transformadora das Constituições latino-americanas consiste na institucionalização de uma proposta arrancada do sistema. Significa dizer que os grandes pilares do movimento latino-americano são pautados em clamores dos movimentos sociais em toda a América Latina, sendo possível afirmar, então, que as recentes Constituições em estudo são fruto da luta transformadora dos povos. Portanto, bem viver e direitos da natureza são categorias que não surgem como curso natural da “evolução” do movimento constitucionalista ocidental hegemônico, mas são levados à Constituição impulsionados pelos movimentos sociais transformadores, com grande destaque para os povos indígenas, contribuindo para a formação de um novo constitucionalismo.

circular, que favoreça o diálogo com a Constituição. Para tanto, Häberle bem esclarece que a interpretação da Constituição não deve estar restrita aos juízes, por meio de procedimentos formalizados.

Häberle sustenta que em uma sociedade aberta (pluralista), todo aquele que vive a Constituição é um legítimo intérprete, de modo que quem vivencia a norma acaba por interpretá-la ou, ao menos, co-interpretá-la. Para o autor, no processo de interpretação constitucional “estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado como numerus clausus de intérpretes da Constituição” 361.

Os intérpretes – destinatários da norma – são capazes de propor o sentido, preenchendo o âmbito de proteção daquele direito. Por esta forma de hermenêutica constitucional proposta por Häberle, é proporcionada uma mediação entre Estado e sociedade, visto que a interpretação constitucional passa a ser entendida como um evento não exclusivamente estatal.

Häberle entende que a ampliação do círculo de intérpretes é uma consequência da necessidade de integração da realidade no processo de interpretação. Em semelhante perspectiva, Hesse propõe que a Constituição deve se aproximar da realidade, e não ser estática e abstrata. Para Hesse, a norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade; a relação entre essas duas dimensões é, para o autor, de interdependência362.

Da construção acima proposta depreende-se, então, que o Estado deve dizer o direito com a colaboração da sociedade, de modo que o texto (materialmente aberto) esteja disponível à ação dos intérpretes, que devem propor o sentido fazendo uso dos melhores instrumentos à disposição, de modo a obter níveis de proteção melhores.

Por meio dessa abertura da Constituição à ação dos intérpretes, ou seja, de maneira colaborativa com a sociedade e todos os demais interessados, a melhoria da proteção normativa decorre da aproximação entre os valores e objetivos protegidos por disposições da

361 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição:

contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997, p. 13.

362 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. In: HESSE,

Konrad. Temas fundamentais do Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 128. No sentido proposto, o texto constitucional (e a interpretação que se faz dele) deve estar aberto para alterações históricas, de modo que, no procedimento da interpretação constitucional, a Constituição sempre é atualizada. Hesse adverte, entretanto, que essa abertura e amplitude da Constituição “não significa dissolução em uma dinâmica total, na qual a Constituição não estaria em condições de dar à vida da coletividade apoio dirigente”. HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da república federal da Alemanha. Tradução (da 20ª edição alemã) de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 40.

própria Constituição brasileira, e destes com outras experiências normativas. Essa parece ser uma construção relevante para identificar como viabilizar a concretização de um sentido de proteção que está disponível na Constituição brasileira e que depende de que sejam facilitados os processos de aproximação entre os valores e objetivos protegidos pelo artigo 225 e pelo artigo 231, para que, desse modo, uma concepção verdadeiramente integrativa, completa e integral de projetos de vida e de relações culturalmente, socialmente e espiritualmente distintas estabelecidas pelas pessoas para com a natureza sejam protegidas e realizadas por um Estado ambiental e por uma Constituição com tarefas ecológicas363.

O resultado pretendido pode ser favorecido por meio do bem viver e dos direitos da natureza, os quais são elementos marcantes no constitucionalismo latino-americano. Sem que se proponha a realização de “transplantes normativos” para o ordenamento brasileiro, o diálogo com essas disposições consegue potencializar a proteção, o sentido, sendo possível atribuir maior proteção a valores intrinsecamente considerados.

Como foi enfatizado em momentos anteriores nesta investigação, o diálogo aqui proposto pode ser melhor visualizado, no plano prático, por meio da reinterpretação da própria ordem à qual um tribunal está vinculado, a partir da incorporação de sentidos normativos extraídos de outras ordens jurídicas.

Assim, no âmbito do Judiciário, tais construções de sentido são favorecidas com a utilização de referências recíprocas a decisões de tribunais de outros Estados, utilizadas como elementos de construção das razões de decisão. A observação mútua e a abertura ao diálogo e ao aprendizado permitem compreender os próprios limites (o “ponto cego”) e as possibilidades de contribuir para chegar a soluções mais adequadas.

Deve-se destacar que toda proposta de abertura deve ter limites, os quais, neste caso, parecem estar na própria proteção de identidades e de autonomias. Isso porque, em uma ordem aberta, existe o risco de que ela acabe sendo absorvida pelos poderes não-explícitos, dentre os quais, o poder econômico. Portanto, o discurso de abertura, que encontra fundamentos e objetivos diferentes no plano europeu, deve ser trazido com cautela, de modo a evitar consequências negativas para a proteção de identidades.

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AYALA, Patryck de Araújo; RODRIGUES, Eveline de Magalhães Werner. Constitucionalismo e proteção ambiental na América Latina: é possível proteger melhor? In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (orgs.). Direito constitucional ambiental brasileiro. 6. ed. São Paulo: Saraiva, p. 513 (no prelo).