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CAPÍTULO 1 O PROBLEMA DA LEITURA

1.3 A LEITURA COMO PRÁTICA SOCIAL

O campo da leitura tem sido abordado sob diversas lupas teóricas. A História Cultural tem feito profícuas pesquisas sobre a história do livro e a história da leitura como prática cul- tural. Roger Chartier é um dos principais representantes dessa linha de pensamento, sua con-

tribuição gira em torno da quadra: práticas e uso de leituras, comunidades de leitores (expres- são de Stanley Fish), representação e apropriação.

No presente trabalho, vou me ater à discussão das práticas de leitura e comunidade de leitores.

Ao contrário de alguns investigadores, Chartier não está interessado nas leituras indi- viduais, mas sim nas leituras sociais. Para isso, compreende que a leitura se determina em função dos modos de representação da cultura em cada texto e em cada lugar, sendo os senti- dos possíveis de um texto aqueles que conformam na história deste lugar e desta situação. Portanto, a leitura nunca é individual, todas as leituras individuais, de certa maneira, resultam desse concurso de fatores: “a leitura é sempre uma prática encarnada por gestos, espaços e hábitos”. (CAVALLO e CHARTIER, 1998, p. 6).

Assim, estudar as possibilidades e limites das ações de levar a ler com foco na cons- trução de espaços de leitura em lugares distantes perpassa pelo entendimento de que a produ- ção de sentido da leitura é resultante dos processos sociais, históricos, culturais nessa deter- minada comunidade de leitores, pois os lugares não são fixos e as transformações dos espaços apontam outras possibilidades de leitura:

Para cada uma das ‘comunidades de interpretação assim identificadas, a re- lação com o escrito efetua-se com técnicas, gestos e memórias de ser. A lei- tura não é apenas uma operação intelectual abstrata: ela é uso do corpo, ins- crição dentro de um espaço, relação consigo mesma ou com os outros”. (CAVALLO e CHARTIER, 1998, p. 8).

Diante disso, o entendimento de leitura é estendido, pois esta ação não é fixa no tempo ou no espaço, os hábitos, gestos, tipo de impresso e lugares se transformam dentro do grupo social que ganham formas distintas, em contextos diferentes, os sentidos da leitura passam a ser compreendidos de várias formas, já que “a leitura é, por definição, rebelde e vadia” (CHARTIER, 1999, p. 7).

Por outro lado, é salutar esclarecer que a ideia de comunidade de leitores desenvolvida por Chartier não é a simples reunião de pessoas em um lugar, mas fundamentalmente o con- junto de procedimentos e relações de estruturações sociais que constroem as interpretações possíveis que se estabelecem no âmbito de uma comunidade de leitores, as quais podem ser até únicas em certo tempo ou podem ser várias.

Uma história das maneiras de ler deve identificar as disposições específicas que distinguem as comunidades de leitores e as tradições de leitura. Essa abordagem pressupõe o reconhecimento de várias séries de contraste; em primeiro lugar, entre as competências de leitura. A clivagem entre alfabeti-

zados e analfabetos, essencial mas grosseira, não esgota as diferenças em re- lação ao escrito. Aqueles que são capazes de ler textos não o fazem da mes- ma maneira, e há uma grande diferença entre os letrados talentosos e os lei- tores menos hábeis, obrigados a oralizar o que leem para poder compreender, ou que só sentem à vontade com algumas formas textuais ou tipográficas. Há contraste, igualmente, entre as normas e as convenções de leitura que defi- nem, para cada comunidade de leitores, os usos legítimos do livro, as manei- ras de ler, os instrumentos e procedimentos de interpretação. Contraste, en- fim, encontramos entre os diversos interesses e expectativas com os quais di- ferentes grupos de leitores investem a prática de leitura. Dessas determina- ções que governam as práticas dependem as maneiras pelas quais os textos podem ser lidos – e lidos diferentemente por leitores que não dispõem das mesmas ferramentas intelectuais, e que mantêm uma mesma relação com o escrito. (CHARTIER, 1999, p. 13).

Outro pensamento enriquecedor que ajuda a entender leitura, desenvolvido por Char- tier (1999, p. 17), é o seguinte:

Deve se lembrar que não há texto fora do suporte que o dá a ler (ou ouvir), e sublinhar o fato de que não existe a compreensão de um texto, qualquer que ele seja, que não dependa das formas através das quais ele atinge o seu leitor. Desse modo, além de procurar entender os agentes envolvidos nas práticas de leitura, é necessário considerar os lugares em que a leitura acontece. Estes espaços funcionam como um corpo organizado de cultura que passam a inculcar nos usuários as formas de cultura das comunidades de leitores em cada período histórico. Isso porque esses lugares são marcados pelo cenário determinado, com uma também determinada circulação de impressos, presença ou a ausência de bibliotecas escolares, de internet, de livrarias e de outras formas de ascender ao texto.

Caberia destacar ainda a escola, muitas vezes – especialmente em países periféricos, como é o caso do Brasil –, é a única instituição responsável pelo desenvolvimento do conhe- cimento formal, e que não oferta o mínimo de livros para a comunidade assistida por ela de- senvolver a leitura, até porque, como chama a atenção Chartier (1999, p. 69) “reunir todo o patrimônio escrito da humanidade em um lugar único configura-se, todavia, uma tarefa im- possível”.

Apesar de o “mundo viver” uma revolução eletrônica no campo da escrita e da leitura, que, em consequência, faz com que também as práticas de leitura se transformem, ainda há espaço para o impresso e as práticas tradicionais. A biblioteca com todos os livros da humani- dade continua sendo uma miragem. Mais uma vez, referencio-me em Chartier (2002, p. 119- 120), quando afirma que:

Em primeiro lugar, é preciso lembrar com insistência que a conversão ele- trônica de todos os textos, cuja existência não começa com a informática, não deve absolutamente significar a relegação. O esquecimento ou, que é pi- or, a destruição dos manuscritos ou dos impressos que antes lhe haviam ser- vido de suporte. Mais do que nunca, talvez, uma das tarefas essenciais das bibliotecas é coletar, proteger, recensear e tornar acessíveis os objetos escri- tos do passado.

Em muitas comunidades brasileiras, a vivência com material impresso e a realização de práticas de leitura sistemáticas ocorrem quase que exclusivamente no espaço escolar. Daí a necessidade de o professor conhecer as práticas de leitura e entender que os sentidos da leitura estão relacionados aos aspectos socioculturais da comunidade de leitores, reconhecendo que os sentidos e as interpretações variam no tempo histórico e que, por isso, um texto terá inevi- tavelmente significados diferentes em contextos sociais diferentes, da mesma forma que a identidade de uma comunidade de leitores será o que determina o valor e as formas de leitura de um livro.