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CAPÍTULO 1 O PROBLEMA DA LEITURA

1.2 PERSPECTIVAS FORMATIVAS NA ÓTICA DO DIREITO A LER

1.2.5 Leitura e conhecimento

Para início do debate, busco apoio no pensamento de Constantino Bértolo (2014) que compreende que ler é um processo extremamente complexo, ensejando quatro dimensões dis- tintas, porém complementares e visceralmente imbricadas: textual, autobiográfico, metaliterá- rio e o ideológico.

A primeira é a dimensão da textualidade. Aqui se encontra a ideia da referencialidade, o histórico dos valores semânticos cristalizados de uma língua se apresentam ao leitor que interage com texto a partir do seu nível de intelecção. O sujeito que não tem domínio razoável deste primeiro nível vai ter prejuízo quando acessar as outras três dimensões da leitura.

A dimensão autobiográfica da leitura, por sua vez, convoca as experiências do sujeito leitor para se manifestarem na interpretação do texto literário. Claro que os contextos socioe- conômico e cultural têm que ser levado em consideração, pois é desse universo que será lega- do o valor das “palavras que constituem texto, as ações que se constroem com essas palavras e com as que se constrói a trama narrativa, e os valores que se revelam por meio das palavras e ações” (p. 19).

O trabalho metaliterário – a terceira dimensão – articula a quantidade de textos que a obra pode suscitar, um sujeito capaz de fazer uma série de associações intertextuais em uma obra viabiliza várias interpretações que tornam rica a leitura. Exemplo: um leitor experimen- tado diante de um conto como No moinho, de Eça de Queirós, pode associar imediatamente ao enredo do romance O primo Basílio, do mesmo escritor, dialogará com a cultura francesa através dos romances Madame Bovary, de Gustave Flaubert e A mulher de trinta anos, de Honoré de Balzac ou até mesmo acrescentar os clássicos russos como Anna Karenina, de Le- on Tolstoi e O eterno marido, de Fiódor Dostoiévski na sua leitura.

A última dimensão é a ideológica, que conforma as estruturas de pensamentos que re- presentam e produzem o mundo, de certa maneira está ligada ao nível autobiográfico, já que reúne as experiências de vivências do leitor em determinada comunidade. Certamente, este lugar tem seus valores: religiosos, políticos, sociais, familiares, interditos, que são reconheci- dos na obra literária fazendo com que o leitor reconheça que Vidas secas, de Graciliano Ra- mos trata dos retirantes do Nordeste, mas amplia de forma global o drama do homem destituí- do de tudo. De acordo com sua ideologia, poderá ir mais longe, como rechaçar a divisão da sociedade em classes ou denunciar os latifúndios que servem para animalizar os homens.

De certa maneira, o sucesso da leitura, o produto da leitura, são resultados dessas qua- tro dimensões. Quanto mais ampla estas dimensões, qualquer uma delas, quanto mais houver sinergia entre elas, maior será a densidade da leitura, maior sua abertura.

Do contrário, as possibilidades de leitura diminuem, pois, quanto mais frágil for o co- nhecimento dos recursos linguísticos da língua, também menor será o leque de possibilidades intertextuais do leitor, assim como pouca capacidade de percepção do mundo que o cerca, isto

é, se a percepção ideológica do sujeito for “inocente” frente às relações do mundo, tal qual apresente posturas epistemológicas fechadas, menores serão as aptidões para produzir signifi- cados em um texto literário.

Dos quatro processos arrolados por Bértolo (2014), três apontam para a necessidade de formação. Na humanidade, o homem tem a possibilidade de formar-se ou ser formado pelos outros homens, é justamente aí que reside o conhecimento de boa qualidade que deveria ser assegurado na prática para todos.

Então, a literatura procura pelo conhecimento? Mesmo na dimensão autobiográfica, em alguma medida o homem busca o conhecimento, pois precisa beber na fonte dos outros para ampliar suas informações e conviver de forma mais harmônica em sociedade. Só saberá se tem pouco conhecimento sobre as leis que constituem um texto, do mesmo modo que será capaz de associar uma rede de tessitura literária a outras ou compreender os valores políticos da sociedade, aprendendo com outras experiências dos outros homens. Assim, a linguagem literária se apresenta como uma das maneiras de se buscar conhecimento.

É preciso maior elucidação da relação entre a leitura e o conhecimento, até porque es- tamos diante de um paradoxo de séculos: se a obra literária tem a sua raiz na ficção (fingir, inventar) – uma das razões para o poeta não ter assento na cidade ideal de Platão - por outro lado, o conhecer parece estar associado intimamente à razão. Não seriam, então, caminhos díspares?

A arte é, pelo menos na cultura ocidental contemporânea, a expressão defini- tiva do desejo de construir outro mundo. Este processo de construção de ou- tro mundo supõe uma espécie de voltar-se para própria vida e indagar a con- dição humana. A arte é, nesse sentido, admiração. A arte é contemplação da vida. (BRITTO, 2003, p. 111).

Ao que parece, a arte caminha na contramão da filosofia, ciência, história, política, que se pautam pelo menos teoricamente no mais alto grau de objetividade, já o campo artístico se pauta pela subjetividade. Mas, independentemente disso, estes cinco campos especulam a existência do homem.

Porém, no sistema capitalista a arte foi transformada em mais um objeto de consumo, com isso, há a necessidade de possuir recursos financeiros para desfrutar este bem cultural, em um sistema em que o máximo de tempo é destinado para desenvolver o trabalho que ga- ranta a sobrevivência, resta pouco dinheiro para provar da arte e também pouco tempo para a fruição da mesma.

De forma enganosa, a arte se faz presente na vida das pessoas. Boa parcela da socie- dade é capaz de proferir nomes e obras de pintores, escultores, músicos, assim como, de lite- ratos renomados, entretanto, ver, tatear, escutar e ler estes produtos humanos é privilégio da minoria. A ordem pragmática da existência afasta as pessoas do conhecimento através do de- leite artístico, os bens de natureza literária são percebidos como fuga da realidade, distancia- mento da labuta e da ordem caótica do mundo, onde não se pode perder tempo com atividades supérfluas sem fins lucrativos.

Os trabalhadores, a gente comum, precisam usar o máximo de tempo nas suas tarefas para garantir a sobrevivência, por isso, a obra de arte chega a maioria das pessoas de forma “mastigada” como entretenimento, brincadeira, diversão livre, lazer descompromissado com a realidade, pois ler boa literatura exige: retiro social, solidão, paciência, aquisição da obra e principalmente tempo para leitura, releitura, maturação de informações.

É por isso que para o senso comum ler literatura é tarefa para intelectual, pessoas ri- cas, nerds. Esses clichês são construídos historicamente na sociedade para alienar as pessoas que passam a ver o mundo como pronto, com poucas condições de indagar a sua própria exis- tência e os mistérios da vida.

Britto (2012, p. 132) sustenta que

A arte, por fim, se faz no pleno espanto de viver. Mais que indagar, mostra a condição da existência humana, não em sua forma imediata, mas em todas as suas formas possíveis. Se a experiência do fazer científico se pauta pela ten- tativa de controlar a subjetividade, a arte alimenta-se dessa mesma subjetivi- dade e só se realiza em função dela.

Então, é possível questionar quem é o homem, assim também qual é a sua razão de existir através da literatura. Se este bem cultural ficar restrito apenas aos aristocratas, talvez Platão tenha razão ao afirmar que o poeta lida com o falso. Entretanto, se a arte literária per- tencer a uma sociedade sem classes, estaremos todos diante de uma forma rebelde de ver a vida através do exercício da subjetividade.