• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1 O PROBLEMA DA LEITURA

1.2 PERSPECTIVAS FORMATIVAS NA ÓTICA DO DIREITO A LER

1.2.3 Leitura e subjetividade

Para discutir a temática de leitura e subjetividade, darei ênfase ao pensamento de al- guns escritores brasileiros que tratam do assunto: leitura literária em palestras, entrevistas, textos críticos. Destaco Ricardo Azevedo, Marina Colasanti, Bartolomeu Campos de Queirós e Ana Maria Machado.

Estes escritores tratam o texto literário de forma plurissignificativa, que abre as portas para o conhecimento, fantasia, viagens por mundos desconhecidos, acúmulo de cultura. Tudo isso seria revelado em uma matéria que prima pelo valor estético, é como diz Ricardo Azeve- do no brilhante artigo Formação de leitores e razões para a Literatura:

O texto literário por definição, pode e deve ser subjetivo; pode inventar pa- lavras; pode transgredir as normas oficiais da Língua; pode criar ritmos ines- perados e explorar sonoridades entre palavras; pode brincar com trocadilhos e duplos sentidos; pode recorrer a metáforas, metonímias, sinédoques e iro- nias; pode ser simbólico; pode ser propositalmente ambíguo e até mesmo obscuro. Tal tipo de discurso tende à plurissignificação, à conotação, almeja que diferentes leitores possam chegar a diferentes interpretações. É possível dizer que quanto mais leituras um texto literário suscitar, maior será sua qua- lidade. (AZEVEDO, 2004, p. 3).

O foco principal desse tipo de leitura está no leitor, pois os significados vão surgir a partir das suas experiências leitoras e existenciais. São projetadas na obra literária as recorda-

ções dos fatos que marcaram o eu em sua trajetória da vida, também vem à tona a inserção social mais genérica do leitor.

No Notícias nº 4, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), de abril de 2014, Marina Colasanti publica um texto intitulado Múltiplas leituras, múltiplos saberes, em que disserta sobre a leitura literária. Esse é um tema recorrente em suas atividades mundo afora e que já fora tratada em palestras, conferências, artigos e no livro Como se fizesse um

cavalo (COLASANTI, 2012).

Sua tese é a seguinte: quem dá sentido ao texto é o sujeito particular chamado de lei- tor. No decorrer do artigo, a escritora procura centrar a discussão nos dois campos já citados: as múltiplas leituras da obra literária e os muitos saberes que ela suscita nos leitores. Sobre o primeiro tema afirma que:

O que dá valor ao livro literário é o conteúdo filosófico, a análise de mundo, o estudo da alma humana que, muitas vezes não está explicitada na história, mas estão por ela contidos. É a leitura do não dito, abre-se com ela, para o leitor, a possibilidade de uma leitura individual, paralela àquela coletiva, mas conduzida por suas necessidades interiores e pelo momento que ele atraves- sa. (COLASANTI, 2014, p. 6).

Marina Colasanti valoriza a subjetividade do leitor, deixando um pouco de lado o que o texto diz literalmente para projetar os significados a partir das experiências acumuladas. Desse modo, de alguma maneira, toda pessoa leria em função de sua singularidade, desde que dê vazão para que o “eu” seja tocado pela sua sensibilidade ou por sua biografia.

Quanto aos muitos saberes que o texto literário suscita, Colasanti (2014, p. 7) referen- da que “se a leitura é múltipla, parece lógico que múltiplos sejam os conhecimentos que extra- ímos dela”. Com isso, cada leitor teria uma leitura particular de uma obra, sem fugir da tessi- tura textual do enredo. Também fica notório em seu argumento que, quanto mais experiên- cias, maiores as possibilidades de atribuir significados.

Outro escritor que contribui para a discussão sobre a leitura literária é Bartolomeu Campos de Queirós. O ficcionista entende o texto literário como uma oferta de leitura aberta, pois a arte da escrita permite a fantasia, a fabulação, possibilitando as projeções de uma subje- tividade quase descontrolada da vida, sendo que a possibilidade de fantasiar colabora de for- ma fundamental para uma vida sadia.

A sociedade é dominada pelo pragmatismo. O último reduto da liberdade seria a esco- la, que, contudo, tem experimentado com mais intensidade nos últimos anos uma prática da leitura voltada quase exclusivamente para fins imediatos, com preferência para desenvolver

atividades pragmáticas. Com isso, ler literatura nas escolas está na contramão do sistema, de acordo com o pensamento de Queirós (2005, p. 160).

Vivo numa sociedade que não encara a fantasia como o mais profundo do ser. Quando nos propomos a expressá-la, estamos trazendo à tona o que há de mais reservado em nós. Daí sentir como difícil é para os processos educa- cionais a aceitação da literatura em seu contexto. A literatura é feita fantasia. A escola, por ser servil, quer transformar a literatura em instrumento peda- gógico, limitado, acanhado, como se o convívio com a fantasia fosse um bem menor.

Para tanto, é necessário que a sociedade volte a apostar na capacidade de fantasiar das pessoas, uma vez que, dedicando tempo a leitura de textos literários, o ser humano aprimora a sensibilidade, fantasia outras realidades, abre as portas da alma para expor os mundos imagi- nários, sem contar que a leitura ajuda as pessoas a suportar as agruras do dia a dia e combate o autoritarismo mesquinho dos homens.

Não bastasse a contribuição riquíssima de Ana Maria Machado para a literatura brasi- leira através dos clássicos: História meio ao contrário, Ponto a ponto, Bisa Bia, bisa Bel, Me-

nina bonita do laço de fita, a autora publicou o livro Silenciosa algazarra – reflexões sobre livro e práticas de leitura (MACHADO, 2011), que reúne artigos, palestras e conferências

que tratam de leitura e literatura.

No artigo A importância da leitura, a autora, como sugere o título, trata de por que se deve levar a ler literatura em nossa sociedade. A exemplo dos outros autores já citados, a es- critora valoriza a subjetividade do leitor, que seria o responsável pelos “passeios” no mundo ficcional. Assim, vai desvelando inúmeras experiências que os homens passam em situações reais ou imaginárias, transformando o leitor em uma pessoa mais tolerante, mais criativa, inte- ligente.

Depois da leitura, o leitor volta a essa realidade transformado. Tal efeito não se consegue apenas com uma atitude passiva, mas com um trabalho mental e imaginário ativo, intenso, por vezes dificultoso: a atividade intelectual que permite a construção imaginária simultânea de outros roteiros possíveis, pa- ralelos ao que está lendo. (MACHADO, 2011, p. 20).

Além de, na esteira de Candido (2011), considerar a literatura um bem civilizatório, Ana Maria Machado defende que a literatura é um bem imaterial que é, por direito, de toda a humanidade. Assim, todos deveriam provar dessa riqueza artística, experimentar a fruição de prosas e poesias. Deve-se aproveitar a opulência da leitura para fazer a voz contra hegemônica à cultura imediatista e utilitária dos objetos artísticos no mundo capitalista.

Observo que não há reflexão aguda sobre faltas de possibilidades para que todos te- nham acesso a esse patrimônio cultural da humanidade. Quando afirmo isto, não estou dizen- do que o ensaio não tenha atingido o fim a que se propôs, apenas quero chamar a atenção para o excesso de protagonismo que o sujeito assume no decorrer de sua vida para se tornar um homem melhor.

Recorro mais uma vez às palavras de Ana Maria Machado para elucidar as razões de ler literatura em um momento de crise mundial, aumento da barbárie e risco da queda do sis- tema democrático no Brasil.

A leitura abre os horizontes mentais e emocionais de uma forma fantástica. Faz nossa inteligência crescer e permite que nossa passagem pelo mundo se- ja mais útil para nós mesmos, nossa família, nossa comunidade, nossa socie- dade, toda a espécie humana. Por um lado, isso colabora para maiores possi- bilidades de sermos felizes. Por outro, ao nos permitir vivenciar experiências que não são nossas, a leitura de literatura nos dá uma estupenda oportunida- de de estar na pele dos outros.

Essa vivência do outro em profundidade, importantíssima, não apenas nos ajuda a não enfrentarmos sozinhos situações existenciais muito difíceis, ao vermos como os diferentes personagens se saíram delas, ou aprendermos com experiências alheias, ainda que imaginárias, na maioria das vezes. Mas também tem um sentido político: é fundamental para a democracia. Permite entender em que cada um de nós é diferente do outro e nos ensina a respeitar essas diferenças. Chegar perto do próximo. (MACHADO, 2011, p. 27). Nesse contexto, a subjetividade dos leitores é a responsável para perceber que a cons- trução de um mundo mais fraterno, com justiça, respeito entre os diferentes, passa pelo exer- cício de entrar em contato com obras que apontem saídas para o clima de desarmonia que acompanha a humanidade. Por tudo isso, é válido ler e incentivar a leitura literária no século XXI.