• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 FORMADORES, LEITORES E LUGARES DE LEITURA

2.3 OS PERSONAGENS

2.3.1 Zair Henrique Santos

Primeiramente, costuro os pontos da minha vida, alfinetados pelo universo da leitura para melhor compreensão e conhecimento do formador Zair Henrique Santos. Nesta simples autobiografia, atenho-me ao que foi marcante em termos de leitura na minha formação pesso- al e intelectual.

Os livros chegaram à minha vida pela leitura teatralizada que meu avô fazia de clássi- cos juvenis e pela valorização que minha avó atribuía ao objeto livro em nossa casa, ainda que didático ou bíblico. Ela sempre acreditou que os livros podiam mudar minha vida, chegava a selecionar os bons e os maus, doía-me a proibição, já que eram os gibis de que gostava tanto.

Nos primeiros anos escolares, meu contato com a leitura foi pelo livro didático. Ainda lembro das Cartilhas Caminho Suave e Português Dinâmico, onde conheci textos marcantes como A carta e o Índio, de Francisco Viana, A velhinha contrabandista, de Stanislaw Ponte Preta, Ou isto ou aquilo e O último andar, de Cecília Meireles. Porém, nesta época, a maioria da leitura literária que fazia era em casa, com os livros dos meus tios.

A sétima série do ensino fundamental foi-me marcante. Apareceu em minha vida um professor diferente, talvez o primeiro da minha vida que não tivesse apenas o magistério e os estudos adicionais, pedia semestralmente para ler um livro da série vagalume. Li Tonico e depois Tonico e Carniça, de José Rezende Filho e Assis Brasil, Marcial escravo e guerreiro e

Sangue na Raia. Devido à imprevisibilidade do professor, fazíamos saraus de leitura por conta

própria por medo de reprovação. Aluno mediano em português e matemática, repeti o oitavo ano e ganhei a leitura de mais dois infantojuvenis: A ilha perdida, de Maria José Dupré, e o

A circulação de livros literários era restrita em minha cidade, e o alto preço também contribuía para a falta de boas leituras. A biblioteca da escola era local de castigo. A novidade ficava por conta do livro didático, comprado no início do ano, para o qual havia todo um ritu- al: encapava-se, não se viravam as páginas pela parte inferior para não criar “orelhas”, a mão esquerda ficava embaixo do livro e a mão direita em cima, não se podia grifar (as tarefas eram feitas no caderno de exercício). Eu folheava as páginas do livro didático e consumia os textos.

No ensino médio, o contato com a literatura seguiu restrito. Recebia explicação dos períodos literários, da vida dos autores, da história da literatura, mas não experimentava a leitura literária. Parece que começávamos a desaprender a ler em sala de aula antes mesmo de aprender a ler. Nesse tempo, li apenas um livro completo de literatura recomendado pelo pro- fessor – O Ateneu, de Raul Pompéia. Não tive preocupação com a leitura em si do enredo do romance, tampouco com as entrelinhas do texto, porque o objetivo era preencher uma ficha de leitura. Entretanto, este mesmo professor apresentou-me vários clássicos da literatura (Irace-

ma, A moreninha, Lucíola, Dom Casmurro, O Cortiço, Memórias de um Sargento de Milí- cias, O seminarista, O missionário), o que fez com me interessasse pela leitura, pois inventa-

va debates, perguntas sobre a obra. Não era interesse pelo conhecimento: as aulas do profes- sor ocorriam nos três últimos tempos da sexta-feira, e eu e os colegas fazíamos de tudo para prolongar a aula e irritar os demais que queriam ir embora, assim, o professor se empolgava com as perguntas e, respondendo-as, liberava-nos apenas no limite do tempo.

A maioria das minhas notas ruins do ensino médio foi em Língua Portuguesa. Não en- tendia e não gostava de escrever, minha paixão era por Física, Matemática, Geografia e Histó- ria. Infelizmente, ou felizmente, quando se publicou o edital do vestibular em Santarém, não havia tempo para me preparar. Na obrigação de passar, devido a pressões familiares, resolvi fazer Letras.

Recebi conselhos, antes de entrar para a Universidade, de antigos professores e de amigos que já estudavam faculdade e de outros que não sabiam do que se tratava. Lembrava constantemente da situação do menino Sérgio, quando escuta de seu pai: vais encontrar o

mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta.7 Eram tantas as possibili- dades que me embolavam o juízo. Apesar dos conselhos, durante um ano e meio não conse- guia me encontrar e reprovei seguidamente em Linguística e Língua Portuguesa. Só aí tive a noção de quão fraco fora o ensino médio que havia cursado.

A mudança veio quando fui convidado para um projeto de coletas de narrativas orais (IFNOPAP)8. Tornei-me leitor voraz de romances, de crítica literária, de teoria literária. Mais tarde, fui selecionado como bolsista de iniciação científica pela professora Anna Christina Bentes9, o que fez com que me voltasse totalmente para o curso. Depois, vieram outras ativi- dades acadêmicas, como a monitoria de Literatura Portuguesa, bolsista de alfabetização com base Linguística. Nesse tempo, já dividia as atividades acadêmicas com aulas em curso pré- vestibulares de literatura.

Depois de formado, fui por três anos professor de ensino médio e comecei a perceber a precariedade do ensino público no Pará. Esses anos de magistério na rede pública foram mar- cados pela repetição das metodologias boas e ruins de meus mestres do ensino médio e da Universidade. Passava romances para os alunos lerem, contentava-me com a ficha de leitura, pedia para encenarem romances. Apossava-me do livro didático com respostas prontas e saía pregando a verdade como se estivesse com a Bíblia na mão. Não valorizava as leituras dos alunos. Além disso, sentia prazer em reprovar os pobres diabos: formulava cinco provas dife- rentes para impedir a cola. Fiz fama de mau para muitos e, para outros, de um bom professor. A concepção que predominava era de que professor bom era aquele que não tinha pena em reprovar, não faltava às aulas, fazia leituras de preparação.

Comecei a carreira do magistério superior em 1999, lecionando Literatura Brasileira na Universidade Federal do Pará. Minha experiência era a de três anos em sala de aula no ensino médio. Quanto à formação acadêmica, tinha apenas especialização em produção textu- al. Foram anos de aprendizagem e de coragem em lecionar em várias cidades do estado do Pará, encontrando alunos já graduados com muita experiência em leitura, ainda que a grande maioria fosse desprovida de conhecimento crítico.

É percebível neste relato que as coisas aconteceram quase por acaso na minha carreira profissional. Não tinha formação solidificada, estudei com material xerocado que dificilmente trazia toda a obra, a internet mal estava chegando, e o Campus da UFPA de Santarém dispu- nha de uma biblioteca paupérrima. Além disso, não fui um aluno que se dedicasse com afinco ao curso como outros colegas de classe. Minha dedicação individual e vontade de conseguir adquirir um conhecimento mínimo do curso me possibilitaram ser aprovado em um concurso público de uma instituição de curso superior.

8 IFNOPAP (O Imaginário nas Formas Narrativas Orais e Populares da Amazônia Paraense) é o maior projeto

integrado da Universidade Federal do Pará, tem como objetivo recolher narrativas de populares com a intenção de preservar a cultura popular das lendas, mitos e causos do Pará.

9Atualmente, é professora do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas. Durante a

década de 1990, atuou na Universidade Federal do Pará e foi uma das responsáveis pela implantação de pesqui- sas na instituição voltadas para a linguística textual.

Foi com as turmas Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério ( FUNDEF), nos Municípios de Belterra e Curuá, depois de três anos de atuação no magistério superior, que as dificuldades de leitura e escrita vieram definitivamente à tona. O desafio, agora, era tornar professores leigos das redes estaduais e municipais professores-profissionais. Como qualificá-los, se não tinham experiência básica com leitura e escrita? Esses alunos-professores repetiam práticas pedagógicas do antigo curso de Magistério das décadas de 1970 e 1980. Diante dessa situação, tive a convicção de que os projetos pedagógicos de Letras e Pedagogia não correspondiam aos anseios de grande parcela da sociedade amazônica.

No Mestrado, realizado em 2003 a 2005, desenvolvi estudos sobre o imaginário das narrativas orais da Amazônia paraense10. Na ocasião, fiz várias visitas às comunidades do Rio Arapiuns para coletas de dados. Há mais de dez anos, não voltava à aldeia indígena onde nas- ci e vivi boa parte da infância. Pude observar que, apesar da chegada da modernidade – luz elétrica, transporte motorizado, mecanização da agricultura – a população daquela Região ainda era vítima das Organizações Não Governamentais (ONGs) mal-intencionadas, da explo- ração desenfreada das florestas, da grilagem de terras, da perda da identidade, do trabalho escravo, das desapropriações quase legais.

Tudo isso me pareceu reforçado pela ausência de professores para educar criticamente: havia – e há – negação do Estado de prover cursos de ensino médio às comunidades tradicio- nais do Arapiuns, o que acelerava – e segue acelerando – o êxodo rural. E o mais grave de todos os problemas era que grande parte daquela população são analfabetas funcionais, facili- tando a dominação e a substituição da economia sustentável pela ganância financeira. Diante do quadro de miséria do lugar em que nasci, senti-me na obrigação de assumir um compro- misso social com minha região.

No ano de 2009, foi sancionada a Lei nº 12.085 criando a UFOPA, que assiste essa re- gião estratégica da Amazônia, tendo como um dos seus objetivos a produção de conhecimen- tos e formação de recursos humanos de nível superior. Como já mencionado, fiz concurso para a UFPA em 1999 na disciplina Literatura Brasileira, mas, devido à falta de professores, atuei em várias disciplinas dos Cursos de Letras e da Pedagogia durante dez anos, com a cria- ção da nova Universidade os professores do Campus de Santarém da UFPA foram transferi- dos para a UFOPA.

10 Cursei Mestrado na Universidade Federal do Pará em Letras: Linguística e Teoria Literária e desenvolvi o

trabalho. Dalcídio Jurandir: uma leitura do imaginário popular na obra Três casas e um rio. Dissertação de Mestrado, Centro de Letras e Artes, Belém, PA: UFPA, 2006. Fui orientado pela Dra. Marli Tereza Furtado.

A partir de março de 2011, comecei a desenvolver atividades no LELIT (ler literatura, aprender e viver) projeto desenvolvido com recursos do programa Novo Talentos. O trabalho iniciou com vinte professores das redes municipais e estaduais de ensino e, logo nos primeiros encontros, veio a revelação pela fala dos professores: o ato de ler era confundido com o de oralizar. A leitura era interpretada com decodificação ou percebida como atividade secundá- ria, a biblioteca significava apenas um espaço que se visita. Tudo isso aparecia em uma turma formada por professores e bibliotecários que atuavam no ensino público há mais de dez anos e que já haviam participado de vários cursos de formação na área da leitura.

A coordenação desse projeto é do professor Dr. Luiz Percival Leme Britto11, pesquisa- dor experiente na área da educação, linguística, alfabetização e leitura, inclusive com passa- gem pela Presidência da Associação de Leitura do Brasil (ALB), grupo com atuação histórica e marcante no Brasil no campo da leitura.

Esse projeto tem sido inovador no campo da pesquisa, ensino e extensão no que tange à leitura. Antes, as atividades na região Oeste do Pará, desenvolvidas no campo da literatura, eram esporádicas. Eram organizadas pelas Secretárias Municipais de Educação, Secretaria de Estado de Educação ou ONGs que coordenavam atividades para algumas comunidades. Atu- almente, o LELIT tem partido de dentro da UFOPA, traz o carimbo de uma Universidade ino- vadora e propõe estudos e pesquisas. Em cinco encontros anuais já realizados contamos com a presença de autores e pesquisadores de destaque, como Nilma Lacerda, Marina Colasanti, Graça Lima, Paulo Nunes, Elizabeth Serra, Silvia Castrillon, Josse Fares, Norma Sandra.

Além disso, o grupo desenvolve atividades de saraus literários, encontros semestrais para debater e ler obra de autores de literatura, pesquisas sobre bibliotecas comunitárias, esco- lares, públicas. Outra atividade relevante do LELIT é o apoio aos cursos de Pedagogia e Le- tras na formação de professores, disponibilizando uma biblioteca de aproximadamente 5000 livros de literatura.

Uma das primeiras ações da UFOPA foi aderir ao PARFOR e abrir turmas de licencia- tura em sete campi na região Oeste do Pará. Terminada a 1ª etapa, em junho de 2010, o deses- pero dos professores que ministravam aulas nesses cursos era geral: as turmas não acompa- nhavam os trabalhos, por não apresentarem níveis suficientes de alfabetismo, minicursos, ofi- cinas e cursos foram executados na tentativa de sanar esse problema. Sabemos, contudo, que o leitor se forma ao longo da vida, e não em encontros emergenciais.

11 Luiz Percival Leme Britto é professor da Universidade Federal do Oeste do Pará desde abril de 2010, onde

atua junto aos Programas de Educação e de Letras; coordena o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) e o LELIT- Grupo de estudo pesquisa e intervenção em Literatura Infantil e escola. É membro do Mo- vimento por um Brasil Literário e professor de referência da Olimpíada de Língua Portuguesa, no estado do Pará.

Ministrei aulas de diferentes disciplinas nos Municípios de Itaituba, Óbidos, Oriximi- ná, Alenquer e Monte Alegre, mas constatei que a situação de falta de conhecimento básico em leitura e escrita estava presente em todos os campi da UFOPA.

Essa situação, e também devido ao tema da leitura se fazer presente no projeto LELIT, nas disciplinas de Linguística e Letramento e Literatura infantojuvenil, em todos os espaços em que eu atuava me levou a estudar sobre formação de leitores. Interessei-me pelo alunado do PARFOR, a maioria já era professor com mais de cinco anos em sala de aula formando leitores. Durante quatro anos, convivi com o trabalho precário das formações aceleradas, mi- nistrando disciplinas relâmpagos e com a sensação de que “tirava leite de pedra” na área da leitura e da escrita. Porém, nem tudo era caos, alguns professores narravam práticas de ler de sucesso em suas comunidades, o que me aguçou a vontade de conhecer as atividades de levar a ler desenvolvidas na zona rural dos Municípios de Monte Alegre e Prainha. Qual é a relação dos professores com a literatura ao longo de sua vida e na sua formação? Qual é o acervo de livros que os professores dispõem para ensinar a ler? Existem bibliotecas nas escolas? Que práticas de leitura circulam nas comunidades? São alguns dos questionamentos que começa- ram a ser respondidos nos TCCs dos dezesseis alunos que orientei em 2014.

A partir de agora me sinto como o herói grego Teseu, não pela sua força ou pelo signi- ficado de seu nome ou sua coragem, mas por me sentir um homem perdido que precisa dos fios de Ariadne (escrita) para penetrar nos labirintos da vida de seis professores e saber encon- trar o caminho de volta.

Tentarei usar para escrever sobre essas vidas a habilidade da mulher que faz o ponto de cruz registrado no livro Manual de tapeçaria, de Nilma Gonçalves Lacerda (2006, p. 10)

Ponto de cruz: A mulher, hábil em negócios de mãos, enfiou a agulha numa casa, traspassou a armadura de entretela, varando o ar num outro espaço. Deu um nó para ter segurança do que ficava amarrado, subiu por outra casa, em diagonal, desceu. Marcara na tela um \. Buscou a ponta correspondente, enfiou metal e linha, saíram linha e metal do outro lado, que abraçaram a ponte que urgia completar. Rutilante, vinho derramado numa tela bege: X. O ponto de cruz.

Os educadores que desenvolveram o trabalho final de curso em duplas foram: Jonada- be de Araújo Garcia junto com Alzenora Ferreira Carvalho das Neves instalaram um Espaço de leitura na Comunidade de Ipanema, onde reside, mas Jonadabe de Araújo mora na Vila de Bom Jesus, Rio Vira Sebo e dista quatro horas de viagem a barco da localidade onde ocorre- ram as atividades pedagógicas.

O segundo trabalho foi produzido por Sandra Elena que mora na cidade de Monte Alegre e construiu um armário para levar os alunos a ler na Vila PA 254 KM 11, distante 70 km da zona urbana de Monte Alegre, naquela Comunidade mora a sua parceira de trabalho acadêmico, a professora Andria Arcanjo da Silva Araújo.

O terceiro TCC foi desenvolvido na Comunidade da CANP, povoado que dista 22 km da zona urbana de Monte Alegre, as atividades de leitura foram desenvolvidas pelas acadêmi- cas Eliana Nascimento de Moraes e Maria Rita Alexandre de Lima Teles, sendo que ambas não moram na comunidade. A primeira é moradora da cidade de Monte Alegre e a outra mora na localidade chamada Açu da Fazenda a 12 km da escola onde foi aplicado o projeto.