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5. OS ESCRITORES DA SERRA GAÚCHA: ANÁLISE DAS ENTREVISTAS

5.2 As entrevistas: escritores no sistema literário da Serra Gaúcha

5.2.3 A literatura e a vida social

5.2.3.3 A literatura na vida social da Serra

Muitos escritores acreditam que a literatura está centralizada apenas em Caxias do Sul, e outros pensam que ela está difundida em todas as partes da região. Para os escritores dos municípios menores, como São Marcos, Antônio Prado e Cotiporã, a literatura está centralizada em Caxias do Sul. Eles justificam o posicionamento, afirmando que nesta cidade há diversos eventos literários, inclusive uma grande feira do livro municipal. Eles também afirmam que Caxias do Sul é o ponto de referência para todos os escritores da Serra, é onde eles encontram outros escritores e amigos que compartilham os mesmos gostos literários.

Apesar de Caxias do Sul ser centralizadora nesse sentido, eles acrescentam que, graças ao ambiente literário que tem crescido a cada dia no município, as demais cidades serranas também acabam sendo despertadas para a importância da literatura na vida das pessoas, e acabam promovendo as feiras do livro municipais, por exemplo.

Por outro lado, alguns escritores assinalam que a literatura é pouco vivida na Serra Gaúcha. Isso se deve ao fato de as pessoas se preocuparem demais com a obtenção de bens materiais, ou seja, com o “ter”, e não com o “ser”. Esses autores consideram que a literatura é essencialmente o “ser”, mas, por questões históricas e culturais da região, acaba ficando em segundo, terceiro ou até quarto plano na vida social da Serra.

Há aqueles escritores que defendem que a literatura na vida social nas cidades da Serra é proporcional ao seu número de habitantes. Pensando nisso, pode ser interessante observar a frequência com que as pessoas vão às livrarias, bibliotecas e eventos que ocorrem em função da literatura (saraus, entrevistas com escritores, feiras do livro etc.). Possivelmente, nos centros urbanos maiores, como Caxias do Sul, essa vida literária aconteça com mais vigor, mas isso devido à grande concentração populacional. Nas cidades menores, há menos livrarias, menos pessoas nas bibliotecas, as feiras do livro contam com poucos livreiros e são de curta duração, e não há grande quantidade de eventos que envolvam literatura. Acredita-se que isso sofra influência do número de habitantes dos municípios, mas uma pesquisa aprofundada sob esse viés ainda está por ser realizada. A partir do que tem sido observado, Caxias do Sul concentra não apenas grande quantidade de escritores, mas também de eventos sobre literatura, além da maior feira do livro da região e o maior valor em verba pública para publicação de obras de artistas premiados em concursos. Apesar de haver eventos literários, feiras do livro, escritores e editoras na Serra, os autores consideram que há, ainda, muito para ser feito na região, como novos programas de incentivo à leitura, a ampliação das feiras do livro municipais e escolares e a divulgação do trabalho dos escritores serranos em parceria com o poder público.

Conforme as informações coletadas, todas as cidades nas quais os escritores entrevistados residem promovem uma feira do livro anual, exceto São Marcos, que por questões financeiras deixou de realizá-la em 2016. Embora em menor escala que em Caxias do Sul, a literatura está cada vez mais presente na vida social das demais cidades serranas. Observa-se que as escolas da Serra têm realizado trabalhos de fomento à leitura muito bem pensados com os seus alunos, e autores nacionais e internacionais têm sido convidados para participar das feiras do livro. Também há diversos recursos que viabilizam a publicação na região, e todas as cidades possuem seus escritores, além de haver muita produção cultural de forma geral na Serra. Acredita-se que a valorização da literatura na Serra seja generalizada. Não é apenas em Caxias do Sul que há movimentação literária; isso também pode ser verificado nas

inscrições do concurso literário que ocorre nessa cidade, mas que é aberto para a região34, do qual inúmeros escritores de outros municípios participam. Isso mostra que há produção literária em outras cidades da Serra Gaúcha. Talvez, a presença de produtores culturais que consigam promover encontros, bate-papos, saraus etc. colabore para que a literatura esteja cada vez mais presente na vida social serrana. É preciso que exista alguém que organize esses eventos, porque, nem sempre, os escritores conseguem ou estão interessados em fazer isso.

Destaca-se que, talvez, os financiamentos públicos para a publicação de livros têm causado significativa diferença entre o cenário literário das cidades em que há o programa e aquelas que não o possuem. Presume-se que, apesar de haver um concurso para os escritores da região em Caxias do Sul, as cidades que não contam com programas específicos para a publicação de autores locais têm mais dificuldade em acessar de modo massivo a literatura na vida social, embora haja outras iniciativas das prefeituras municipais para promover o ambiente literário.

Apesar de Caxias do Sul capitanear a Serra em vários aspectos, não apenas no literário, existe uma propagação (irradiação) disso no entorno, como pode ser observado nas cidades que compõem este trabalho e que possuem feiras do livro próprias, com patronos locais e fomento à leitura. Há escritores de renome regional que não são de Caxias do Sul, como Flávio Luis Ferrarini (1961-2015), que residiu durante anos em Flores da Cunha. Há também escritores na região que consquistaram prêmios literários importantes, como Natália Borges Polesso, Marco de Menezes, Marcos Fernando Kirst e Eduardo Dall’Alba (1963-2013), entre outros. Isso demonstra a existência consolidada do cenário literário serrano, que também se manifesta através da publicação de obras de autores locais consideradas de qualidade pela crítica literária. Candido (2011) ressalta que há uma ligação direta entre a produção literária e a vida social. O autor explicita isso através da apresentação de um estudo desenvolvido acerca da literatura nas suas diferentes relações com a comunidade paulistana. Ele apresenta cinco maneiras diversas de associação entre os escritores e a vida social paulistana. Leia-se:

Um grupo virtual, bruxuleando na cidade indiferente; um grupo ordenado, estabelecendo a tradição literária; um grupo ordenado e vivo, criando uma expressão à margem da cidade; a cidade absorvendo este grupo e chamando a si a atividade literária, que se ordena pelos padrões eruditos da burguesia culta; da cidade surgindo num grupo que rompe esta dependência de classe e, quebrando as barreiras acadêmicas, faz da literatura um bem de todos. Há uma história da literatura que se

34 O Concurso Anual Literário revela os talentos literários da cidade, ao mesmo tempo que reconhece e premia autores que já publicaram algum livro, evidenciando o desenvolvimento do meio literário caxiense. Premia textos inéditos com troféu, medalha e publicação em antologia. Podem participar escritores maiores de 16 anos, que moram há pelo menos 2 anos em Caxias do Sul. Já a categoria Obra Literária - Prêmio Vivita Cartier destina-se a livros publicados no ano anterior por autor ou editora de Caxias do Sul e dos demais municípios da Associação dos Municípios da Encosta Superior do Nordeste (AMESNE). Informação disponível em https://www.caxias.rs.gov.br/cultura/texto.php?codigo=882. Acesso em 16 de novembro de 2017.

projeta na cidade de São Paulo; e há uma história da cidade de São Paulo que se projeta na literatura (CANDIDO, 2011, p. 175).

A partir desse estudo, Candido exemplifica a influência que a literatura exerce sobre a vida social e o modo como a sociedade pode também modificar os mecanismos de produção, publicação, recepção e circulação literária.

Conforme Zilberman (2001), a pesquisa literária de orientação sociológica procura considerar dois processos: a história e o presente. O primeiro busca “no passado a configuração de certas práticas”, já o outro tem como propósito “compreender a que procedimentos estão sendo conferidas relevância e difusão institucional” (ZILBERMAN, 2001, p. 82). A partir dos estudos desenvolvidos por Chartier (1990)35, a autora ainda acrescenta que:

a leitura não é uma invariante histórica – mesmo nas modalidades mais físicas; as transformações por que passa, por sua vez, dependem não apenas de fatores econômicos e materiais, mas também das formas de sociabilidade, das representações do saber e do lazer, das concepções de individualidade. As concepções postas em circulação por grupos sociais interferem na maneira como se processa a leitura; e essa, que corresponde à apropriação de um discurso, leva o leitor, da sua parte, a uma nova forma de compreensão de si mesmo e do mundo” (ZILBERMAN, 2001, p. 83).

Segundo Zilberman (2001), Chartier pondera a relação literatura, leitura e vida social como um processo dialético, pois, “atravessado pelas práticas vigentes no meio em que vive, o leitor absorve-as e as reproduz; mas a incorporação delas dá-se sob a forma de interpretação” (p. 84). Portanto, o leitor interfere no mundo que lhe é apresentado na literatura e, de mesmo modo, o texto acaba por influenciar o modo de ver o mundo do leitor. O mundo “aparece sob a forma de um texto, o que significa dizer que a realidade se apresenta a ele mediada por palavras fixadas pela escrita, impressas conforme os mecanismos em vigor, organizadas segundo um sistema de circulação e distribuição” (p. 84).

Na Serra Gaúcha, a produção, a publicação, a recepção e a circulação literárias não poderiam acontecer de forma diferente. Caxias do Sul conta com uma vida literária mais intensa que outros municípios. São frequentes lançamentos de livros, saraus, encontros de escritores (formais e informais), concursos literários; também há maior quantidade de livrarias, bibliotecas (públicas e particulares), escritores, publicações etc., sendo que esses eventos estão diretamente atrelados à quantidade de pessoas que é maior do que em outros municípios da Serra, e ao desenvolvimento econômico da cidade, também considerado o mais significativo da região.

35 CHARTIER, Roger. Introdução. “Por uma sociologia histórica das práticas culturais”, em A história cultural entre práticas e representações. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Bertrand Brasil, 1990.

Como pôde ser observado, os demais municípios que fazem parte desta pesquisa também contam com vida literária própria. São municípios com bem menos da metade da população de Caxias do Sul, menores em extensão de território e com uma economia também menor. Consequentemente, observa-se que os eventos literários de modo geral ocorrem entre intervalos maiores e há menor quantidade de escritores e publicações.

Apesar de a pesquisa em questão não se deter a realizar observações estéticas em relação ao texto literário, os fatores sociais (externos) do texto já revelam a relação dialética entre literatura e sociedade. Os dados coletados junto aos escritores da região confirmam essa premissa e detalham parcialmente de que forma isso acontece na Serra Gaúcha.