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1. SOCIOLOGIA DA LITERATURA E DA LEITURA

1.3 Sistema literário regional

Tendo em vista que este trabalho de pesquisa objetiva compreender a paisagem literária da região da Serra Gaúcha na atualidade, é preciso esclarecer o que se entende por literatura regional. Essa noção está baseada principalmente nos estudos desenvolvidos pelo pesquisador alemão Jens Stüben. Em seu texto Literatura regional e literatura na região (2013), o estudioso tem como objetivo principal discutir questões concernentes à construção de uma história das literaturas regionais na Alemanha. Mesmo que o objetivo do presente trabalho não seja escrever uma história literária da Serra Gaúcha, interessa a sua definição das relações entre a literatura e a região.

A região é compreendida como um espaço construído a partir das práticas sociais, culturais e artísticas de autores e leitores. Conforme Stüben (2013),

Autores, assim como seus leitores, movimentam-se desde sempre em espaços de sentido, espaços de experiência. Esses se configuram através da atividade cultural e artística e são providos de significado por meio da interpretação de seus protagonistas. O espaço percebido em sua significância reage sobre objetivações artísticas. Surge uma relação de troca entre a localidade geográfica e o construto de significação cultural (STÜBEN, 2013, p. 39).

Portanto, nesta tese, a região, em um primeiro momento, é percebida enquanto espaço físico. Contudo, ao se estabelecer a rede de relações entre os estratos do sistema literário, ela passa a ser tomada como espaço sociocultural, pelo qual transitam escritores, leitores, editores, críticos etc. Destaca-se que a interação entre todos esses sujeitos poderá transformar determinada região cultural.

O autor alemão apresenta possíveis categorias para sistematizar a relação de dependência entre literatura e região: literatura em uma região (literatura ofertada em uma região); literatura de uma região (literatura surgida em uma região); literatura sobre uma região (a região como tema da obra); literatura regionalmente localizada; literatura regional; literatura regionalista; literatura provinciana, patriótica. Essas categorias representam prováveis combinações entre a literatura e a região. Além disso, vale salientar que mais de uma delas poderá ocorrer na mesma região, contribuindo para a formação, consolidação ou transformação de determinada paisagem literária.

Para Stüben (2013), a paisagem literária é constituída através das relações que se estabelecem entre a produção, a circulação e a recepção literárias. O autor ressalta a importância de outro estrato do sistema: a temática das obras. Diferentemente deste trabalho de pesquisa, que explorará apenas os aspectos sociais do texto literário, ponderar sobre a temática de uma

ou mais obras interessa aos estudos que procuram analisar a representação de determinada região no texto literário.

Ao discorrer acerca dos trabalhos desenvolvidos por Mecklenburg e Heydebrand, Stüben (2013) também explica que:

seria necessário observar a vida literária regional como ‘sistema literário’, como subsistema social. Conforme Renate von Heydebrand, o funcionamento literário deve ser visto como uma forma de “comércio comunicativo” social que satisfaça as necessidades dos leitores na “rede de relações” da história econômica e política, da história social e cultural da região (STÜBEN, 2013, p. 51).

Nessa passagem, percebe-se a semelhança entre o posicionamento teórico de Jens Stüben e Itamar Even-Zohar, ao compreenderem a literatura enquanto um esquema de comunicação social que envolve não apenas escritores, obras e leitores, mas outros estratos que atuam de forma direta ou indireta na paisagem literária. Nessa abordagem, ocorre a descentralização do texto. Porém, ele continua sendo indispensável à análise das relações entre literatura e região, pois, consoante o exposto anteriormente, autor, obra e público são estratos imprescindíveis do sistema; sem eles, não há sistema literário.

Stüben (2013) apresenta um catálogo que designa cada um dos aspectos que podem ser explorados durante a análise da vida literária em determinada região. O autor também explica que esses itens deverão ser considerados respeitando as particularidades dos diferentes sistemas literários e de acordo com o foco de interesse de cada pesquisador. Para esclarecer as possibilidades de pesquisa, será apresentada a lista de elementos proposta por Stüben:

- condições políticas e históricas;

- relações econômicas e desenvolvimento demográfico (agricultura, industrialização, urbanização);

- meio social (em macro e microestrutura); -comunidades religiosas;

-realidade étnica, histórico-colonial, geográfico-cultural, sociocultural e histórico- mental, questões de autopercepção coletiva, especialmente:

• significado dos centros culturais dentro e fora da região, métodos de comunicação, relações culturais;

• situação linguística (particularidades da fala e da escrita, área de emprego da língua, processos de intercâmbio entre dialetos e idiomas contíguos, bi ou plurilinguismo);

• consciência regional, identidade nacional, étnica e cultural (existência de regiões fronteiriças e minorias, multiculturalismo), e seu reflexo na literatura;

• tradições culturais, convenções, hábitos e costumes;

• estruturas de pensamento, padrões de (auto)interpretação, atitudes, valores, padrões de comportamento, ideologias;

• percepção do próprio e do outro pelos grupos da população (estereótipo); - educação;

- escolas, universidades (como locais de formação dos autores e seu público, como locais de pesquisa das ciências humanas);

- ensino da língua, formação literária;

- métodos e meios de difusão da literatura (‘vida literária’), instituições culturais, imprensa;

- jornais, revistas, calendários, almanaques; - antologias;

- publicação, comércio livreiro; - bibliotecas, bibliotecas circulantes;

- associações de escritores, sociedades culturais, círculos de leitura, salões, saraus; - teatro, cabaré, media modernos;

- crítica literária e teatral; - parâmetros político-culturais;

• política cultural estadual, censura, • política cultural regional e local, • instituições de incentivo à literatura,

• processos de transferência cultural (histórica-ideária e literária), interconexões entre diferentes culturas/idiomas e literaturas dentro e fora dos limites regionais e estaduais, efeitos sobre autores e público, especialmente:

• recepção da literatura alemã de outras regiões (vizinhas), simultaneidade ou não simultaneidade de correntes literárias nas regiões isoladas;

• recepção da literatura de língua estrangeira (no original e em tradução); • recepção possibilitada por tradução em línguas estrangeiras pelos leitores não alemães dentro e fora da região;

• influências sobre a literatura de regiões vizinhas, sobre a literatura alemã em geral e sobre as literaturas de outras línguas;

• capacidade de intermediação de autores alemães e estrangeiros como mediadores entre os povos e culturas. (STÜBEN, 2013, p. 54-56)

Os elementos expostos por Stüben, nesse longo excerto, não devem ser analisados separadamente ou servir de motivo para apenas produzir listas com nomes de escritores, obras e outras categorias. É preciso ter em mente a necessidade de se observar e compreender esses elementos inseridos em sua rede de relações, atuando uns sobre os outros e, assim, contribuindo para formação/consolidação/renovação da paisagem literária em determinados tempo e espaço. Zohar (1990) destaca seis estratos que compõem o sistema literário: leitores, obras, escritores, instituições, mercado e repertório. Stüben (2013), por sua vez, elabora uma listagem detalhada de fatores que podem ser analisados em determinado sistema literário regional. Acredita-se que Stüben apresenta aspectos que possivelmente poderão ser pesquisados e, de certo modo, expandem as seis categorias anteriormente apresentadas por Zohar. Observa-se a convergência dos estudos utilizados como aporte teórico desta tese, que busca compreender a literatura enquanto um sistema regido por leis próprias que exerce e sofre as influências histórica, cultural e social.

Para Arendt (2011b), são as relações estabelecidas entre recepção, produção e temática que devem orientar os trabalhos de pesquisa que buscam abordar a literatura como um sistema. O autor destaca, ainda, que “a conjugação dos fatores produtivos, de recepção e temáticos contribui para o delineamento das paisagens literárias, dentro das quais se perfila todo tipo de obra, desde a mais trivial até a mais complexa (ARENDT, 2011b, p. 227). Assim, não haverá uma seleção prévia de obras durante a pesquisa, para que sejam contempladas apenas aquelas de alta qualidade estética, já que toda a produção que fizer parte da vida literária da região em

destaque deverá contribuir para a observação e análise de seus mecanismos de produção, publicação, circulação e recepção.

Arendt (2011b) formulou conclusões importantes a partir dos estudos alemães, entre as quais destacam-se: editoras e periódicos desempenham papel fundamental para o “transbordo” ou não do texto literário; os públicos da literatura regional e suprarregional se estabelecem por intermédio de editoras, eventos literários, periódicos, entre outros; o registro das especificidades de uma região, através da literatura, contribui para manter a diversidade cultural e evita seu desaparecimento. Além disso, o autor advoga que é preciso desprender-se da dicotomia regional versus universal e deter-se nos processos de produção e recepção do texto literário para descortinar as paisagens literárias nos âmbitos regionais.

Para Arendt, “a literatura regional não pode ser confundida com a literatura regionalista, nem restringida apenas ao espaço rural” (ARENDT, 2015, p. 120). O autor ainda acrescenta que o termo “região” não deveria estar apenas associado às áreas rurais, pois se “as regiões existem como fenômenos empíricos, discursivos ou simbólicos capazes de organizar espacialmente a vida social, isso significa que delas também fazem parte as cidades” (ARENDT, 2015, p. 120). Portanto, assim como o espaço interiorano e rural, as cidades “contribuem para a diversidade das paisagens culturais regionais e podem ser, igualmente, inseridas em programas regionalistas” (ARENDT, 2015, p. 120).

Parte-se do pressuposto de que o termo “regionalista” está associado a uma literatura que tem como propósito a exaltação de determinada região cultural. Já o termo “regional” compreende que “alguma coisa – a literatura – pertence ou é própria de uma região” (ARENDT, 2015, p. 120).

Compreende-se, ainda, a literatura regional como aquela que está distante dos grandes centros de cultura e, normalmente, está isolada no que diz respeito à sua relação com outras regiões. Pensando nisso, a literatura regional pode ser analisada a partir de diferentes perspectivas, das quais destacam-se a temática do texto, que pode revelar determinadas especificidades regionais no texto ficcional, e os meios de produção, difusão e prestígio, ou seja, as características regionais de caráter social em relação ao texto literário.

Neste trabalho a literatura regional também é percebida a partir do seu ponto de vista sociológico. Para Arendt (2015), a literatura regional “diz respeito à circulação ou à abrangência de autores e de obras dentro de um sistema literário situado em um sistema mais amplo (nacional e até supranacional)” (ARENDT, 2015, p. 120).

Além de explicitar as diferenças entre os termos “literatura regional” e “literatura regionalista”, Arendt chama a atenção do leitor para as particularidades de duas categorias,

propostas por Stüben (2013), que explicitam a relação entre literatura e região. Segundo o pesquisador, a literatura sobre uma região “abrange produções literárias que tematizam uma região, mas que não são necessariamente produzidas na região a que se referem” (ARENDT, 2015, p. 122). Portanto, essa categoria está relacionada a questões de temática do texto literário, ou seja, são especificidades de determinada região que podem ser observadas a partir da leitura da obra.

Por outro lado, a literatura em uma região abrange “a literatura localizada em uma região, mas não uma região localizada dentro da literatura, porque nela estão em jogo as denominadas regionalidades externas” (ARENDT, 2015, p. 121). Dessa maneira, ainda conforme o pesquisador, interessa saber “quem escreve, quem publica, quem critica, quem lê; quem incentiva, quem patrocina, quem fatura; o que se publica (gêneros), quanto se publica; quem vende, onde se vende, para quem se vende etc.” (ARENDT, 2015, p. 121). Tratam-se das especificidades de caráter social da obra que contribuem para a formação, consolidação ou transformação de determinado sistema literário regional que não está isolado, mas em contato com outros sistemas que podem ser regionais, estaduais, nacionais ou transnacionais.

A partir da proposta de pesquisa que visa a compreender o atual sistema literário na Serra Gaúcha, entrevistar escritores e editores da região torna-se um dos principais objetivos. Portanto, a observação e a análise do sistema literário serrano serão realizadas, ao menos inicialmente, sob a perspectiva das regionalidades externas e sob o ponto de vista dessas duas categorias (escritores e editores) pertencentes ao sistema.