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1. SOCIOLOGIA DA LITERATURA E DA LEITURA

1.2 A literatura como sistema

Candido (2009), ao discorrer sobre a formação da literatura brasileira, afirma que a literatura compreendida em seu estudo é “um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes de uma fase” (CANDIDO [1959], 2009, p. 25). O autor explica que no sistema há a distinção entre um grupo de produtores, um grupo de receptores (sem os quais uma obra não sobrevive), e um mecanismo transmissor – a língua em comum entre escritores e leitores. Candido (2009 [1959]) ainda ressalta que:

O conjunto dos três elementos dá lugar a um tipo de comunicação inter-humana, a literatura, que aparece sobre este ângulo como sistema simbólico, por meio do qual as veleidades mais profundas do indivíduo se transformam em elementos de contato entre os homens, e de interpretação das diferentes esferas da realidade (CANDIDO [1959], 2009, p. 25).

Para o crítico brasileiro, através integração entre escritores, leitores e obras como sistema, ocorre a continuidade literária. E o papel do escritor é muito importante para que isso aconteça, pois é ele que define temáticas e estilos de escrita para os textos, e propaga essas ideias, através de sua adesão. Apesar de o autor considerar a noção de sistema literário, ele acredita que a sobrevivência dos diferentes sistemas depende apenas de escritores, obras e leitores. Entretanto, sob a perspectiva de Zohar (1990), bibliografia fundamental para esta discussão, o sistema não se organiza de forma tão simples. O autor apresenta outros estratos que estão envolvidos no processo, como as instituições, o mercado e o repertório.

Zohar (1990) define sistema a partir de sua proposta de pesquisa. Para o estudioso, sistema é uma rede de relações formada por um conjunto de fenômenos/eventos observáveis.

Além disso, esse conjunto de dados observáveis não é insubordinado à realidade, mas está de acordo e é dependente das relações que o sujeito-pesquisador está disposto a propor. Então, sistema literário é:

The network of relations that is hypothesized to obtain between a number of activities called "literary," and consequently these activities themselves observed via that network.

Or:

The complex of activities, or any section thereof, for which systemic relations can be hypothesized to support the option of considering them "literary”. (ZOHAR, 1990, p. 28).

Nessa passagem, fica visível que o mecanismo de funcionamento de um sistema literário dá-se por meio do estabelecimento de vínculos entre os seus estratos, resultando em uma rede de relações. Entretanto, ainda é necessário um observador (pesquisador) que investigue as relações existentes no sistema, que determine o que será explorado e, por fim, execute a análise dessa rede. Como a relação entre o sistema e a realidade é de dependência, sua configuração sempre será submetida àquilo que o observador conseguir verificar em sua análise. Portanto, não é necessário que haja um acordo acerca dos fenômenos investigados e considerados em um sistema. O leque de possibilidades é muito diverso, e o pesquisador adota- los-á ou não como parte de seu trabalho, conforme o foco que desejar seguir em sua investigação.

Além da ideia de sistema, é importante compreender o conceito de vida literária, que permeia esta tese. Conforme Zohar (1990), o seu entendimento surgiu a partir dos estudos desenvolvidos por Ejxenbaum, que averiguou as relações existentes entre as leis que regem a produção de textos literários e as forças que fazem com que essas leis sejam criadas ou eliminadas do sistema. É preciso ter cuidado para não compreender a vida literária como fator contextual, “but as part and parcel of the intricate relations which govern the aggregate of activities which make literature” (ZOHAR, 1990, p. 30).

Consoante o que foi apresentado até aqui, além de escritores, obras e leitores, o sistema literário envolve as instituições, o repertório e o mercado (vide página 21). Zohar (1990) explica seu entendimento acerca do esquema que apresenta, o qual está, como já se afirmou, baseado nos estudos do linguista Jakobson:

Thus, a CONSUMER may "consume" a PRODUCT produced by a PRODUCER, but in order for the "product" (such as "text") to be generated, a common REPERTOIRE must exist, whose usability is determined by some INSTITUTION. A MARKET must exist where such a good can be transmitted. None of the factors enumerated can be described to function in isolation, and the kind of relations that may be detected run across all possible axes of the scheme (ZOHAR, 1990, p. 34).

O autor fundamenta sua teoria nas pesquisas realizadas por Ejxenbaum, para quem o sistema literário é compreendido em sua composição como uma gama de atividades, que na visão sistêmica devem ser percebidas como partes (estratos) que formam um todo, e que estão submetidas às leis que regem o sistema. Além disso, um estrato não precisa necessariamente desenvolver apenas uma função no sistema. Há aqueles que possuem diferentes atividades na mesma rede de relações ou, até mesmo, que poderão ser funcionais em duas redes ao mesmo tempo. Isso pode acontecer com escritores e leitores, por exemplo. Ambos os grupos podem ser tanto produtores de literatura, como também consumidores dela, participando, assim, dos âmbitos de produção e de recepção do texto literário.

Zohar (1990) faz apontamentos sobre cada uma das partes que compõem o seu esquema de comunicação literária. Em primeiro lugar, ele destaca que o produtor (escritor) procura vincular o seu discurso, ou está vinculado, a um repertório que seja considerado legítimo diante da sociedade da qual faz parte. Os leitores, por sua vez, não se interessam por textos literários apenas por instinto ou porque a própria obra gera interesse por si mesma. Nessa escolha, estão envolvidos os valores creditados às obras (pela crítica, por exemplo) e que podem motivar a preferência dos leitores por algumas delas.

No que tange às instituições, o autor ressalta que são elas as responsáveis pela manutenção da literatura enquanto atividade sociocultural. Além disso, elas também têm o papel de administrar as regras que regem o sistema, portanto, as instituições estabelecem as normas que deverão vigorar e aquelas que deverão ser rejeitadas pela rede de relações literárias.

Essas organizações são, muitas vezes, potencializadas umas pelas outras, de modo que tenham autonomia para remunerar ou penalizar seus participantes e produtos. São elas que estabelecem quais obras e escritores serão lembrados por determinada comunidade durante maior período de tempo. As instituições são consideradas parte da cultura oficial, o que, de certo modo, lhes confere liberdade para realizar tal julgamento. Isso posto, é importante salientar que elas integram apenas parte da diversidade de escritores, obras, editoras, críticos, clubes de leitores, entre outros, existentes em determinado sistema.

É dentro da instituição que existem lutas para ocupar seu centro e tornar-se o grupo dominante. Diferentes instituições podem atuar simultaneamente em diferentes “seções” do sistema. Isso ocorre quando um grupo inovador passa a ocupar o centro de determinada instituição, e a academia, por exemplo, ainda tolera certas normas que já não aceita mais. Assim, a academia (mesmo estando no centro do sistema como uma das instituições que rege suas normas) poderá, ao mesmo tempo, atuar na periferia da rede de relações em determinados tempo

e espaço. Isso pode acontecer porque elas, possivelmente, não reconhecem as inovações que chegam legitimadas (por outras instituições, é claro) ao centro do sistema.

Por fim, ressalta-se que, quando falamos em instituições, não nos referimos a um edifício em específico, uma rua, um café, onde encontramos as pessoas que compõem tal organização, “but any decision taken, at whatever level, by any agent of the system, depends on the legitimations and restrictions made by particular sections of the institution” (ZOHAR, 1990, p. 38). Então, “the nature of production, as well as that of consumption, is governed by the institution; naturally, inasmuch as it may be successful in its endeavors, given the correlations with all other factors working in the system” (ZOHAR, 1990, p. 38).

O mercado é outro elemento dentre aqueles apresentados pelo autor como essencial para a observação e análise da paisagem literária. Ele não tem como única função comercializar produtos literários, mas também promover o consumo de novos produtos. Aqui, não se trata apenas dos locais dedicados ao intercâmbio de textos literários, como livrarias, clubes de leitura, bibliotecas, entre outros; estão incluídos todos os fatores que contribuem e participam do intercâmbio simbólico dessa atividade.

Conforme apresentado anteriormente, as instituições são aquelas que estabelecem as normas que regem a rede de relações literárias e podem tentar impor classes de consumo ao estabelecer os preços dos artigos produzidos. Contudo, elas não conseguem prever o motivo do êxito ou do fracasso das obras no mercado, visto que o maior interesse do sistema literário é fomentar a cada dia o crescimento do mercado literário (ZOHAR,1990).

O repertório é o que determina as regras de produção e consumo literário, conforme apresentado anteriormente. É preciso que exista algum conhecimento em comum entre os leitores e o repertório, pois, caso isso não ocorra, não haverá intercâmbio entre as partes. O repertório literário diz respeito a um número mínimo de regras com as quais os textos são produzidos e entendidos. Zohar (1990) acrescenta que:

(…) a "repertoire" may be the shared knowledge necessary for producing (and understanding) a "text," as well as producing (and understanding) various other products of the literary system. There may be a repertoire for being a "writer," another for being a "reader," and yet another for "behaving as one should expect from a literary agent," and so on. All these must definitely be recognized as "literary repertoires (ZOHAR, 1990, p. 40).

Fica em evidência que o repertório envolve estratos muito complexos do sistema, além de um conjunto de conhecimentos compartilhados. Questões como o comportamento que se espera dos sujeitos envolvidos, uma língua em comum, escolhas estéticas e temáticas são relevantes para as pesquisas nessa área.

Por fim, o autor discorre acerca do que entende por produto, ao se falar em sistema literário. Ele afirma que produto é “any performed (or performable) set of signs, i.e., including a given ‘behavior’. Thus, any outcome of any activity whatsoever can be considered ‘a product’, whatever its ontological manifestation may be” (ZOHAR, 1990, p. 43). Nesse ponto, deve ficar claro que produto não se refere apenas às obras produzidas, mas também a todos os resultados das atividades do sistema literário.

Ao aprofundar o tema, Zohar (1990) propõe questionamentos, convidando à reflexão. Dentre eles, destacam-se: Qual é o produto da literatura? Existe um produtor por excelência para toda a atividade do sistema? A ideia corrente de que os textos são um produto evidente ou, muitas vezes, o único produto da literatura, pode ser aceita como resposta satisfatória ou é necessário aprofundar mais o tema?

O próprio autor discorre sobre essas questões, mas não apresenta respostas aprofundadas. Para Zohar (1990), o produto literário circula entre as sociedades das mais diversas formas: pode ser o texto integral, como também fragmentos de citações, parábolas curtas, poemas, entre outros. Esses textos podem ser utilizados pelos indivíduos sociais diariamente durante a comunicação, o que também contribui para que entrem em contato com novos fragmentos e textos. É preciso levar em consideração que esses fragmentos, sob o ponto de vista da teoria dos polissistemas, não podem ser compreendidos como um catálogo neutro, uma vez que contribuem para que os sujeitos conservem e expressem seus “modelos de realidade” (ZOHAR, 1990, p. 42).

Em suma, o sistema deve ser analisado como um todo, e deve-se lembrar que ele é regido por leis próprias (ZOHAR, 1990), consistindo um complexo jogo de relações de poder (BOURDIEU, 1996). Acredita-se que as discussões realizadas por Candido (2009 [1959]) e Zohar (1990), apesar de conterem algumas divergências acerca dos fatores que integram os processos de formação, consolidação, renovação, manutenção e desaparecimento de determinado sistema, são importantes como aporte teórico deste trabalho, pois ambas compreendem a literatura enquanto um sistema de comunicação inter-humana. A relação entre literatura e sociedade, elaborada por Candido (2009 [1959]), e a teoria dos polissistemas, proposta por Zohar (1990), podem ajudar a compreender a noção de sistema literário, a partir de uma abordagem da sociologia da literatura. Entretanto, ainda é necessário delimitar o sistema literário no seu âmbito regional, tarefa que será desenvolvida na próxima seção deste capítulo, a fim de contribuir para as discussões sobre o tema e aprofundar os estudos acerca da literatura regional.