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A periferia da modernidade urbana do Brasil

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1.1 A religião como instituição: Aspectos da sua reprodução

1.1.1 A tradição diante do desafio da modernidade

1.1.1.1 A periferia da modernidade urbana do Brasil

A modernidade, e com ela, a urbanização moderna chegam tarde ao Brasil, atrasadas em relação à Europa e à América do Norte. Além disso, se Max Weber celebrava a cidade como comunidade autônoma com direitos políticos especiais próprios13, as cidades nascem no Brasil como cidades coloniais, dependendo da coroa, dentro da estrutura do capitalismo agrário, e somente em seguida se tornam cidades comerciais e industriais. As cidades coloniais são cidades litorais (só mais tarde surgem em Minas Gerais as cidades de garimpo) que existem para escoar produtos que vêm do campo, além de reproduzir o poder da coroa:

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Não se havia estabelecido uma verdadeira divisão do trabalho entre campo e cidade ... Nem por isso deixava a cidade colonial de desempenhar um papel essencial na constituição e, depois, na preservação do sistema colonial. Seu papel consistia essencialmente em concentrar e, assim, potenciar a força de persuasão e a força de coerção da metrópole no corpo da sociedade colonial. O instrumento básico da força de persuasão era a Igreja, o da força de coerção os corpos de tropa e a burocracia civil. (SINGER 1979:98)

A segunda época, a emergência do comércio, é marcada pela circulação de riquezas: por uma elite rural que produz excedentes no campo e quer consumir produtos de luxo provindos da Coroa. Se o Rio de Janeiro passa de cem mil habitantes já em 1872, São Paulo alcança a metade somente em 1890; na virada do século, São Paulo tem 239.820 habitantes e o Rio de Janeiro praticamente o triplo (691.565 habitantes) (SANTOS 2005:23).

O advento da industrialização marca a terceira época. A partir de então, o Brasil começa mesmo a se urbanizar (na virada do século XIX para o XX, pouco mais de um milhão de pessoa moram na cidade; em 1920, são pouco menos do que 5 milhões; e em 1940, dez milhões). A partir dos anos 50, porém, a velocidade da urbanização torna-se vertiginosa: em 1950, 19 milhões moram nas cidades; em 1960, 32 milhões; em 1970, 53 milhões, e 10 anos depois, 82 milhões para chegar, na década de noventa, aos 120 milhões (SANTOS 2005:32). “Passamos, então, de uma urbanização lenta a uma metropolização acelerada,” diz Passos. (2001:47) Para Singer, (1979:71), a ação conjunta de dois fatores marca a migração do excedente de população para as cidades: “fatores de estagnação das forças produtivas no campo” e “fatores de mudança das relações de produção.”

Já desde os anos 40, consolida-se em São Paulo o padrão periférico de crescimento urbano. O sistema de transporte baseado no bonde é substituído pelo ônibus, condição sine qua non para a periferização dos trabalhadores:

A consolidação do padrão periférico do crescimento urbano foi de grande importância, pois gerou uma solução habitacional – baseada no trinômio loteamento periférico / casa própria / auto-construção – que em São Paulo representou a principal opção de moradia encontrada pelos setores populares até os ano 70. (KOWARICK; BONDUKI 1994:150)

O intenso e incessante fluxo migratório para São Paulo era a base para a urbanização de uma enorme massa de trabalhadores que se submetia a qualquer sacrifício para ter a tão sonhada casa própria.

De outro lado, os loteadores vendiam lotes tipicamente rurais para desempenhar funções estritamente urbanas, especulando com as zonas livres entre a mancha urbana já ocupada e a

área pioneira comercializada, sabendo que essas, com o tempo, iriam se valorizar de forma quase ilimitada.14

A prefeitura sabia muito bem o que significava a abertura destes loteamentos. Eles não eram “bairros esquecidos”, como se dizia, e nem houve “ausência de planejamento”. O que acontecia era, com as palavras de Kowarick, um “laissez-faire urbano.” (1994:147s.155) O poder público investia para viabilizar o processo de acumulação capitalista, mas cedendo ao populismo então vigente, não desprezava totalmente as necessidades dos setores populares, uma das contradições da política urbana daquele período. Adotando medidas populistas, Getúlio Vargas, Ademar Barros (“podem construir suas casas sem planta que a prefeitura fecha os olhos”) 15 e Jânio Quadros concederam alguns benefícios clientelistas, mas faziam, por baixo, o jogo dos loteamentos clandestinos, no chamado “pacto de classes” (KOWARICK; BONDUKI 1994:156).

Houve resistência popular, tanto contra os despejos como contra o abandono da periferia: “A ocupação desta periferia foi marcada por uma luta constante a que nenhum loteamento escapou – a luta pelo direito à cidade, pela urbanização destes ‘bairros distantes e esquecidos.’” (BONDUKI 1994:140)

A cidade passa por um processo de segregação sócioespacial. O sistema viário é ampliado, mas favorece o transporte individual. O salário baixa, e o transporte coletivo encarece: o número de pessoas que vão a pé ao trabalho dobra entre 1967 e 1977 e compreende a metade da população pobre (KOWARICK; BONDUKI 1994:160s).

O processo da periferização dos trabalhadores se acelera. Mais da metade dos trabalhadores não usa mão de obra remunerada: são famílias autoconstrutoras. Renuncia-se às férias, fazem-se horas extras, trabalha-se no fim de semana para poder construir, com técnicas rudimentares, a casa própria. Esta construção nunca termina, sempre se a está rebocando, ou reparando, ou ampliando algo.

Quem construiu sua casa, se liberou do aluguel e é menos vulnerável em tempos de carestia. Mesmo assim, existe uma espoliação inerente à autoconstrução. Só a consegue quem tem o dinheiro necessário para comprar o lote, saúde e energia necessárias para dobrar a jornada de trabalho, e braços na família para ajudar.

Os moradores de favelas e cortiços, somados com aqueles que habitam em loteamentos clandestinos ou construíram suas casas de maneira ilegal do ponto

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Hoje parece ser possível este padrão de ocupação no caso da Cidade Tiradentes.

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Citado em Kowarick e Bonduki (1994:151). Conforme os autores, é o “depoimento de um morador que construiu sua casa no fim dos anos 40” (1994:175, nota 6).

de vista da legislação urbana, constituem a imensa maioria da população de São Paulo. (KOWARICK; BONDUKI 1994:167)

Nestas décadas, as cidades são marcadas, portanto, de um lado por grupos e classes sociais que se mobilizam para conquistar seus direitos, e do outro por amplos processos de vulnerabilidade socioeconômica e civil em curso “que conduzem ao que pode ser designado como processo de descidadanização”, processo este que continuará na década seguinte. (KOWARICK 2002:30)

A década dos anos 9016 apresenta um saldo econômico negativo, a expansão da precarização e do desemprego e o enfraquecimento da fronteira entre emprego e desemprego. No ano 1999, 39% da população metropolitana (ou 6,4 milhões de indivíduos) são pobres, e as famílias com renda per capita inferior a meio salário mínimo pula, de 1995 a 2003, de 8,8 para 14%. Apesar disso, vários indicadores sociais, como escolaridade e saúde e condições habitacionais em geral melhoram, persistindo localidades com condições extremamente precárias e piorando apenas os índices de violência. A violência crescente é responsável pelo fato de que, apesar das melhorias materiais, a percepção dominante em dadas regiões da metrópole seja de degradação. Dois atores responsáveis pelo fato de que, na década dos anos 80, que também já apresentou o paradoxo de piora de indicadores econômicos simultaneamente a melhora de indicadores sociais, entram em pleno recesso: os movimentos sociais recuam, e o Estado corta recursos orçamentários. Em geral, os salários se elevam, mas no interior deste quadro, as desigualdades de renda aumentam. (cf. MARQUES et. al 2005). Percebe-se como dinâmica social que as áreas nas quais os índices pioram, são aquelas com elevado crescimento demográfico, associado à migração nordestina que traz negros e pardos, áreas descritas por Torres como "fronteira urbana" (TORRES 2005).

"A existência de intensa segregação exerce particular influência sobre a situação social dos grupos mais pobres que habitam a cidade, ao isolá-los dos circuitos sociais e econômicos mais amplos, reduzindo significativamente as possibilidades de interação e mobilidade

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Ao entrar em outra década, deve-se registrar que a própria perspectiva dos estudos do espaço metropolitano muda: se as análises dos anos 70 tinham como categoria analítica central o trabalho, em especial o trabalho informal, e pressupunha-se que os mecanismos que produziam o espaço metropolitano geravam áreas homogêneas de pobreza: a grande e precária periferia.- De fato, porém, constata-se uma crescente heterogeneização da pobreza e maior complexidade do espaço urbano. Já em 2002, Marques e Bitar encontram

“um tecido social no espaço metropolitano muito mais complexo e fragmentado do que se considera comumente

a literatura” (2002:131), Torres e Gomes (2002) descobrem padrões especiais na desigualdade educacional e Schattan e Pedroso (2002) constam um “acesso privilegiado dos estratos socioeconômicos mais favorecidos aos serviços públicos de saúde” por causa da distribuição espacial destes no município de São Paulo. As análises atuais consideram o território como uma dimensão decisiva e procuram entender os processos que (re-)produzem as condições de pobreza no espaço. (cf. MARQUES; TORRES 2005)- Não encontrei uma releitura das décadas passadas a partir desta perspectiva.

social." (MARQUES; TORRES 2005:11) Nas diferentes localidades se configuram diferentes "estruturas de oportunidades". A maior ou menor possibilidade de produzir trajetórias de mobilidade social é produzida pela combinação das características sociais locais, das dinâmicas da segregação e das redes sociais entre lugares, o que exige uma análise detalhada dos conteúdos sociais dos vários espaços da cidade, cruzando indicadores sociais, formas de ocupação do espaço urbano, indicadores de acesso a políticas públicas, e resultados em termos de condições de vida.

A segregação residencial cresceu na última década, e é preciso levantar a sua distribuição e entender como opera sua dinâmica, refletindo sobre as causas e os significados deste processo, além de levantar os diversos atores que constroem e reconstroem o espaço urbano. Um dos principais agentes no processo de combate à segregação deveria ser o Estado. No enfraquecimento de sua ação, ou na sua ausência, grupos sociais podem exercer o seu papel? Há nos estudiosos da periferia certo entusiasmo sobre a eficácia de diversos associativismos, entre estes o religioso, que podem cumprir esta função.17 Há indícios de que, diante da corrosão das formas de incorporação social via mercado de trabalho e políticas sociais do Estado, dinâmicas societárias possam ser fontes de inclusão social, constituindo as religiosas um canal particularmente eficaz para atenuar riscos de exclusão total. (cf. LAVALLE; CASTELLO 2004). O presente estudo se propõe investigar o alcance e os limites das dinâmicas societárias religiosas como via de inclusão social numa área de alta vulnerabilidade social para o caso do associativismo religioso da Congregação Cristã no Brasil.

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