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A realidade social da Vila Moraes na ótica de moradores participantes da

No documento Download/Open (páginas 154-159)

Não é suficiente descrever somente a materialidade da vulnerabilidade social e espoliação urbana e ambiental que os moradores da Vila Moraes sofrem, e procurar por suas referências macroestruturais. Atores sociais produzem tramas que são referenciados, mas não

atrelados a estas condições materiais objetivas. Não importa somente a magnitude da espoliação, mas o significado que grupos dão a esses processos. A questão da “subjetividade social” pergunta como atores sociais experienciam, vivenciam e interpretam estes processos e situações concretas, como produzem discursos e qual produção simbólica realizam a seu respeito. Como moradores da Vila Moraes participantes da Congregação Cristã experienciam, vivenciam e interpretam sua condição social e a realidade social do local em que moram?

Em primeiro lugar, nas minhas observações e conversas não se fez sentir que os moradores da Vila Moraes, e nem os que frequentam a Sociedade de Amigos da Vila Moraes, formem “atores coletivos” com durabilidade e regularidade, excetuando-se momentos esporádicos, ou eventos, de mobilização coletiva como no dia da plenária sobre a Lei dos Mananciais na Câmera Municipal de São Bernardo; os laços de vizinhança ou de pertença ao bairro parecem demasiadamente fragmentados para justificar o uso desta expressão. Considero que a “comunidade imaginada”83 mais importante na convivência social diária, além dos laços familiares, não seja constituída por laços civis ou de vizinhança (“ser morador da Vila Moraes”), mas por laços religiosos, e que as divisões internas destes sejam as categorias “crente”, “católico” e “outra ou nenhuma crença”.

O laço criado pelo fato de ser “evangélico” parece ser mais forte do que o laço criado pelo fato de pertencer à “Congregação Cristã” ou à “Assembleia de Deus”. Quando iniciei minha pesquisa, as três mulheres Núbia, Maria e Noemi dominaram o espaço do barracão da Sociedade de Amigos, conversando em voz alta entre elas (às vezes com intervenções de Ubirajara, o presidente da Sociedade de Amigos e participante da Congregação) a respeito de cultos, pastores, cooperadores, poder da fé etc.84 Enquanto Maria pertencia à Assembleia e Núbia e Noemi à Congregação, raramente se fez sentir uma disputa entre elas;85 as conversas

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Entendo “comunidade imaginada” na acepção que Anderson lhe dá: “comunidade porque, independentemente da desigualdade e da exploração que possam existir dentro dela”, ela “sempre é concebida como uma profunda camaradagem horizontal” (2008:34), e imaginada porque os seus membros “jamais conhecerão, encontrarão, ou sequer ouvirão falar da maioria de seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles.” (2008:32) Os membros destas comunidades imaginadas têm muitas coisas – e especialmente uma memória - em comum, e também todos têm esquecido muitas coisas. Para seus membros, a

“comunidade imaginada” tem um enorme valor de legitimidade e dispõe de uma legitimidade emocional

profunda. Anderson conceitua a “comunidade imaginada” assim para definir a nação. Ele quer tratar o conceito da nação “do mesmo modo que se trata ‘parentesco’ e a ‘religião’, em vez de colocá-lo ao lado do ‘liberalismo’ ou do ‘fascismo’, (2008:34), e propõe alinhar o conceito do nacionalismo aos grandes sistemas culturais que o precederam, que são a comunidade religiosa e o reino dinástico.

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Possivelmente, a minha presença como pesquisador que estava investigando a questão da religião, estava interferindo, influenciando e talvez até forjando estas conversas. O pesquisador, ao entrar no campo, faz parte deste e o modifica por sua presença.

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Lembro-me que certa vez Noemi e Núbia, já após Maria ter saído, comentaram que a Assembleia de Deus

“Ponto certo” não era uma igreja muito séria por ser festeira demais, porque lá toda semana se celebrava o

pareciam mais um esforço em conjunto de convencer as mulheres que vieram pegar o leite, da importância de ser crente e pertencer a uma igreja. Ao mesmo tempo, as três guardaram certa distância e cautela quando a coordenadora da Igreja Católica do bairro aparecia, descrita como dura e pouco acolhedora: alguém que não tratava bem as pessoas. Meses depois, Noemi já tinha migrado da Congregação para a Assembleia. Ela às vezes criticava com duras palavras a Congregação Cristã, como veremos a seguir, enquanto Núbia, agora das três a única que estava na Congregação Cristã, se mantinha em silêncio. Mesmo assim, o laço que as unia (ser crente) diante das mulheres que não frequentavam nenhuma igreja, era mais forte que as divisões internas.

Laércio nasceu em 1991, ano em que seus pais vieram do bairro de São Mateus na Zona Leste de São Paulo à Vila Moraes. “Quando eu vim morar para cá, em 91, o lugar onde tem casas hoje era tudo mato, tudo mato. Então foi entrando um, fez uma casa. Foi entrando outro, até virar uma vila.” Laércio tem uma clara percepção da precariedade do bairro onde mora:

Olha, onde nós mora aqui, é, é precário, né, a situação, não é bairro chique, entendeu, tem o condomínio Jandaia, tem o Engenheiros, que é um condomínio, que são dois condomínios muito bonitos, né. ... E mais para ... são bairros tudo, tudo igual a este aqui. Não tem água encanada, não tem asfalto, você entendeu. Agora, aqui mais para o centro já tem aquelas bonitezas, né, tem o Parque dos Passos que é muito lindo, né.

Ele mesmo, porém, está em situação parcialmente melhor. Laércio mora com seus pais e irmãos no sítio de uma área particular, um pouco afastado da vila. Seu pai trabalhou durante doze anos para o dono do sítio, criando porcos e cabritos, até o sítio ser desativado, pela lei dos mananciais. O dono permitiu que eles continuassem morando no sítio, que possui luz elétrica, tem bons poços, e a casa é de blocos. “Agora, os, os outros pessoais já não têm, têm casa de madeira, às vezes a energia acaba, porque são muitas pessoas.” Mesmo morando em situação privilegiada, sua família tem boas relações com os moradores da vila, “porque nós estamos sempre juntos com eles ali, conversando, entendeu. Então nos consideramos como se fosse tudo uma família só.” Laércio acompanha com interesse a luta de Ubirajara, presidente da Sociedade de Amigos da Vila Moraes e participante não batizado da Congregação, por melhorias no bairro, mas ele não vê seu futuro aqui:

Tem muita gente fazendo coisas erradas, entendeu. Então, eu não acho bom morando ali, né. Bom assim, mas pela necessidade de morar a gente tem que morar, entendeu. Mas nós temos planos de, mais para frente, comprar uma casinha fora, entendeu, ... e assim vai indo, se Deus abençoar.

Ao falar das pessoas que fazem “coisas erradas”, quer dizer, são usuários ou traficantes de drogas, Laércio menciona o poder local dos traficantes que recentemente tentaram matar um jovem que roubava dentro da própria vila. Além de Laércio, somente o presidente da Sociedade mencionava este poder local, considerando-o, porém, insignificante.- Dentro da vila, Laércio conversa com todos, mas cultiva laços mais fortes com membros da Congregação Cristã:

Ah, eu prefiro, eu procuro mais estar junto com os da Congregação, né. Porque falamos todos a mesma língua. Agora, assim, eu sou da Congregação. Eu vou juntar com quem não é, aí tem que ser uma coisa diferente, porque alguns vão falar besteiras, muitas coisas, não é lícito para nós estar no meio, né.

Noemi é mãe de três filhos e é a esposa do Presidente da Sociedade de Amigos da Vila Moraes e tesoureira desta. Nasceu em São Paulo, morou uns anos na favela Pantanal (perto de Diadema) e chegou à Vila Moraes em 2005. Gosta muito de morar no local: “Você gosta de morar aqui?”- “Adoro! Gosto muito daqui! Eu queria lutar por aqui mas, não depende de eu ir sozinha e tudo depende da comunidade de Deus, que eu creio que Deus tem pra nós lugar!” Mora num barraco de madeira com quatro cômodos (“Pode chamar de cômodo aquilo?”). Considera-se uma pessoa que, antes de conhecer as igrejas evangélicas, era muito egoísta. Já fez muito pelo bairro da Vila Moraes, até perceber que os outros não colaboravam (“são muito acomodado o pessoal daqui”; “aqui é só um pensando no, só pensa em si próprio”), e quando começou a passar muita dificuldade na sua própria casa (“já chegou a época do que eu não ter o que comer”) e a receber uma Cesta Básica doada, decidiu: “Eu vou deixar um pouco isso de lado e vou trabalhar. E fui trabalhar! Agora eu recebo o meu salarinho, eu vou lá e faço minha comprinha! Não digo que não falta! Falta coisa dentro de casa sim!”86 Noemi não tece nenhuma reflexão a respeito da desigualdade social entre a Vila Moraes e o condomínio do Pq. Jandaia do outro lado da Estrada, onde ela já trabalhou temporariamente numa casa. Sobre a própria posição social no bairro, ela comenta: “Acho que teve uma época que a gente tava lá embaixo! Muito lá embaixo! Entendeu?... eu me considero, acho que no meio.” Ser presidente e tesoureira da Sociedade de Amigos pode, portanto, garantir um certo prestígio, mas parece não resultar em vantagem material ou contribuir para se tornar o poder local. Noemi se diz desanimada por causa do desprezo que

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Quando recebeu a primeira Cesta Básica, diz Noemi, “eu comecei a acordar”. Nas categorias de Paugam (2003:89), Noemi passou por uma “precariedade econômica” temporária e beneficiou-se “de uma intervenção social pontual em razão de dificuldades.” Fragilizada, ele acordou imediatamente para o perigo de se tornar uma

assistida, “objeto de um acompanhamento regular” com a possibilidade de entrar na carreira do assistido,

tornando-se sempre mais dependente. Imediatamente, Noemi procurou trabalhou para resguardar a sua independência.

sofre por alguns moradores do bairro, irmãos e irmãs da Congregação Cristã, cujos cultos ela frequenta e na qual ela pretende se batizar. Duas vezes, seu filho quis ajudar num mutirão da Congregação Cristã e foi mal recebido: “Ele foi mal tratado no sábado. Aí ele conversou e eu falei: Não liga filho! Aí ele voltou no outro sábado, foi pior aí então ele não voltou mais e não quis mais ir pra igreja.” Meses depois da entrevista, quando reencontrei Noemi, ela já não estava mais participando da Congregação Cristã. Ela conta que foi recebida com “olhares feios” pelas irmãs quando entrou na igreja da Congregação no Jandaia, numa noite de chuva que deixaram seus calçados cheios de lama. Aparentemente, ela concluiu que nem ela nem seu filho eram bem-vindos na Congregação por causa das suas precárias condições de vida, e ela cita a Congregação Cristã como único lugar no qual ela se sentiu socialmente inferiorizada.- Chama atenção como, de um lado, Noemi, Núbia e Maria estabelecem no barracão da Sociedade de Amigos da Vila Moraes, por suas conversas sobre religião, laços entre si e até um certo domínio evangélico diante das mulheres que vêm pegar leite, enquanto Noemi, em conversas particulares (entrevista e posterior conversa informal) desabafa como irmãos e irmãs com prestígio na Congregação fazem uso deste capital social para desprezar gente do próprio grupo religioso em posição mais periférica por não ser batizada e morar visivelmente (calçados cheios de lama) em situação mais precária.

Resumindo, pode-se dizer que os moradores da Vila Moraes não têm laços suficientemente fortes para constituir um ator social coletivo além de mobilizações raras e ocasionais. Talvez a presença pouco duradoura e apenas transitória de muitas famílias contribua para este quadro de uma ampla fragmentação social.- Os grupos religiosos estabelecidos, como Congregação Cristã, Assembleia de Deus, Igreja Católica também não têm força suficiente para se impor aos seus membros, moradores da Vila Moraes, como “comunidade imaginada” principal. Eles talvez consigam isso para os membros mais integrados, como no caso de Laércio, que possui um prestígio elevado tanto na Congregação Cristã como entre os moradores do bairro, em relação aos quais ele e sua família ocupam um lugar social privilegiado. Membros menos centrais e situados mais na periferia da comunidade religiosa podem, ao contrário, como no caso de Noemi, perceber como o próprio grupo religioso reproduz no seu interior a desigualdade social e de prestígio, com a qual são confrontados também na sociedade mais ampla. Neste caso, podem se estabelecer afinidades eletivas para fora do próprio grupo religioso, constituindo p. ex. a categoria “crentes” a mais importante “comunidade imaginada”. Há indícios de que esta “comunidade imaginada” é ativada especialmente quando membros com afinidade efetivamente se reúnem e fazem coisas juntos, enquanto no discurso produzido em conversas particulares (como entrevista)

prevalecem interpretações de experiências e vivências de fraturas dentro do próprio grupo religioso, que podem causar até abandono deste grupo e adesão a um outro disponível – provavelmente um do qual uma pessoa com a qual se convivia e sentia afinidade já faz parte.

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