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A realidade social do local: observação do dia a dia do bairro e

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Conforme conversas informais que tive no barracão da Sociedade de Amigos da Vila Moraes, moram aproximadamente trezentas famílias na Vila Moraes, somando mil e quinhentas a duas mil pessoas.79 Há um certo fluxo de pessoas. Para muitas famílias, a Vila Moraes é um lugar de passagem: elas chegam, ficam um pouco e saem, vendendo seu barraco para outra família; esta frequentemente tenta trazer outros parentes ainda. Ultimamente,

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Estes dados podem ser inflados, uma vez que os moradores costumam indicar números mais altos para os fiscais da prefeitura ou do Estado, possibilitando assim a chegada de mais moradores parentes ou amigos. Possivelmente, para mim como estranho utilizaram a mesma estratégia.

porém, o cerco da fiscalização da prefeitura e do Estado está se fechando, e no mês de julho de 2009 máquinas da prefeitura derrubaram quatro barracos de recém-chegados.

Foto 3.1: A igreja da Congregação Cristã (círculo vermelho menor) e a Vila Moraes (círculo vermelho maior). A foto de satélite do Google Maps é antiga (antes de 2005).

Um dos maiores fatores da vulnerabilidade social dos moradores da Vila Moraes é a questão da posse da terra. Todo o terreno está situado em área de proteção aos mananciais; por isso, toda a população da Vila Moraes está constantemente ameaçada de ser removida para outro local: Ninguém sabe se e até quando pode ficar.

A terra pertencia a um proprietário, o já falecido José Nelson Hering, que ficou devendo impostos. Por isso, a prefeitura desapropriou toda a terra; recentemente, porém, ela voltou ao proprietário. Alguns anos atrás, a dívida dos impostos somava 351 mil reais. Em julho de 2009, o presidente da Sociedade de Amigos da Vila Moraes foi verificar a situação do terreno na prefeitura, e a dívida de impostos já estava acima dos 800 mil reais, referindo-se a toda a área que soma 491 mil m2. O terreno não pertence a um único proprietário, mas na imobiliária, está cadastrado o nome do já falecido Sr. Hering. Anos atrás, houve uma negociação com o Ministério Público do Estado, propondo um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). Neste termo estão inscritos 335 famílias, área de lazer, asfalto ecológico, lote de 25 m x 125 m cada, luz, água, esgoto e ônibus. A negociação, porém, não chegou ao fim; apesar disso, ela prova que existe a possibilidade de urbanização. Na opinião do presidente da Sociedade, a urbanização parece não interessar ao Estado e ao município, que preferem aparentemente a remoção da população. Esta poderia apelar ao direito à moradia por “usucapião”. No entanto, o fato de que muitas famílias chegam, ficam um tempo, vendem e vão embora, complica a situação, porque o nome das pessoas que atualmente habitam os barracos não corresponde aos nomes cadastrados.

Fotos 3.2 e 3.3: Rua na Vila Moraes e barraco de madeira e madeirite. Não existe asfalto, o esgoto está ao céu aberto (foto à esquerda), a maioria das casas é de madeira ou madeirite.80

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Estas e as fotos seguintes, com exceção das fotos 3.4 a 3.6, que recebi como cortesia da Sociedade dos Amigos da Vila Moraes, são da minha autoria.

A indefinição a respeito do uso do terreno pode ser a justificativa pela completa ausência de infraestrutura na Vila Moraes. Não existe água encanada nem esgoto: os moradores captam água potável em tambores quando chove. Igualmente, o bairro não é ligado à rede de luz elétrica: os fios de luz que existem são “gatos” clandestinos. Muitos barracos são feitos de madeira ou madeirite; o próprio presidente da Sociedade de Amigos da Vila Moraes desencoraja a construção em alvenaria enquanto não houver clareza a respeito da legalidade da moradia. Não existe asfalto; as ruas são de terra, com vestígios de cascalho em um ou outro lugar.81

Foto 3.4: Na falta de água encanada, os moradores captam água da chuva como água potável

Fotos 3.5 e 3.6: Não há eletricidade instalada na rede elétrica; moradores fizeram “gatos”

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Importante lembrar que todos estes benefícios (água encanada; luz; asfalto) existem no condomínio do Jandaia que fica diretamente em frente da Vila Moraes, do outro lado da Estrada do Acampamento dos Engenheiros – e em outro condomínio socialmente mais elevado (Acampamento dos Engenheiros) por sinal, mais próximo da Represa Billings do que a própria Vila Moraes. Um claro indicador que a questão em jogo não é tanto a proteção ambiental, mas o poder econômico dos moradores. Quando o presidente da Sociedade dos Moradores da Vila Moraes perguntou a um vereador de São Bernardo por que o condomínio recebeu água encanada e a Vila Moraes não, a resposta foi: “Poderia ter feito, mas ninguém pediu.” (informação verbal)

Não existem equipamentos municipais de educação e saúde na Vila Moraes. As crianças estudam em escolas do município de São Bernardo do Campo numa distância que varia aproximadamente de 3,5 a 4 km; os menores são transportados por ônibus escolares, os maiores costumam utilizar o ônibus que circula de graça, chamado de “poerinha” por causa da poeira que o cobre, devido às estradas de terra. Durante os meses da pesquisa de campo, o “poerinha” continuou circulando, apesar dos constantes rumores que a prefeitura estaria retirando-o. O próximo posto de saúde fica a uma distância de 4,5 km. Se alguém na Vila Moraes fica doente a ponto de precisar de transporte, tem que ligar para o SAMU.

Foto 3.7: Mãe com filhos no quintal da sua casa. Na maioria das casas, moram cinco ou mais pessoas Poucos moradores da Vila Moraes têm emprego regular; a maioria faz “bicos” que aparecem apenas ocasionalmente. O próprio presidente da Sociedade de Amigos trabalha como montador de móveis na rede de um magazine, mas é chamado somente para montar uns seis móveis por semana, na média. Ele mesmo precisa arcar com os custos do transporte. Levando em conta que os municípios do ABCD não implantaram o bilhete único, sobra pouco dinheiro. Alguns homens trabalham ocasionalmente como pedreiros ou serventes. Possivelmente, as mulheres têm mais oportunidades de trabalho (como domésticas) do que os homens. Uma ou outra delas trabalha no condomínio de classe média situado no outro lado da Estrada do Acampamento dos Engenheiros e chamado de “condomínio do Jandaia”82; elas são as únicas da população da Vila Moraes às quais o condomínio oferece oportunidades, bem

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Noemi, a esposa do presidente da Sociedade, trabalhou durante um tempo numa casa do condomínio como diarista, sendo chamada uma vez por mês – uma oportunidade de emprego extremamente esporádico, portanto.

diferente, portanto, do caso da favela Paraisópolis, onde o entorno afluente gera uma “estrutura de oportunidades” (cf. ALMEIDA e D'ANDREA 2004 e ALMEIDA, D'ANDREA e DE LUCCA 2008).

Foto 3.8: O condomínio do Parque Jandaia em frente da Vila Moraes: com ruas asfaltadas, eletricidade, água encanada e amplas áreas de lazer.

Uma vez que a ocupação do terreno da Vila Moraes não é legalizada, não existem espaços públicos criados pelo poder público. Há, sim, um pequeno campo de futebol e uma lagoa onde vários jovens já morreram afogados. Existem três igrejas na Vila Moraes: duas da Assembleia de Deus, e uma Igreja Católica.

Fotos 3.9 e 3.10: A Assembleia de Deus “Ponto Certo” ao lado da Estrada: frente (à esq) e fundo (à dir) Uma igreja da Assembleia fica em frente do condomínio do Pq. Jandaia (igreja “Ponto certo”), na beira da Estrada do Acampamento dos Engenheiros, e a outra numa pequena praça, frente à igreja católica. O barracão da Sociedade de Amigos da Vila Moraes é outro espaço de sociabilidade; fora destes locais, restam somente pequenos bares, adegas e uma minilojinha

também à beira da Estrada. Outros pontos de se encontrar e sociabilizar são a porta do quintal (geralmente de madeira ou madeirite) ou porta de casa; muitas conversas em pequenos grupos acontecem ali. Vi poucos carros estacionados em frente das casas, e onde houve um, ele era rodeado por jovens. Normalmente, os barracos se parecem um com ou outro, mas há também casas de alvenaria com hortas espaçosas; as habitações mais afastadas da Estrada, a beira do mato, têm geralmente um espaço maior para plantação.

Foto 3.11: Assembleia de Deus “Missão Internacional”. Fotos 3.12 e 3.13: Igreja Católica. Somente a pedra na sua frente com o nome “S. Juan Diego” indica que é uma igreja católica

São poucos os benefícios que chegam à Vila Moraes. A Sociedade de Amigos da Vila Moraes conseguiu inscrever mais que oitenta famílias no projeto “Viva Leite” do Estado, inclusive alguns idosos. O leite é distribuído no barracão da Sociedade, uma vez por semana (até recentemente, duas vezes). Uma Senhora jovem que vem visitar a Vila Moraes regularmente, traz mais do que trinta cestas básicas cada mês, doadas por benfeitores que querem ficar anônimos e distribuídas na igreja católica; aqui também funciona a Pastoral da Criança. A prefeitura coloca um ônibus de graça a serviço da comunidade, o “poerinha”.

Mapa 3.10: Mapa da Vila Moraes, com seus espaços de sociabilidade

Um vereador de São Bernardo do Campo mostra um certo interesse pela população da Vila Moraes. De vez em quando ele aparece (mais em tempos de eleição) e manda assessores seus conversar com a população. Ele prometeu em março de 2009 transporte suficiente para todos os interessados, numa plenária na câmara dos vereadores a respeito da “Lei dos mananciais”, organizada por seu filho, outro vereador do município, com a presença de representantes da prefeitura e do Estado. Foi um dos raros momentos em que a população da Vila Moraes se mobilizou. Os ônibus, porém, não chegaram na hora prometida. A população já tinha se dissolvido quando apareceram dois carros de passeio. Um motorista explicou que o vereador pensou que não iria participar quase ninguém, como em outra ocasião quando ele mandou um ônibus à Vila Moraes para a população participar de uma plenária do seu partido, com a possibilidade de se afiliar. Neste caso, a população da Vila Moraes mostrou que sabe bem distinguir entre interesses alheios dos quais são feitos objeto (plenária de partido; ser transportado para afiliar-se) e interesses próprios vitais (Lei dos mananciais que será fundamental para a questão de poder ocupar o espaço atualmente habitado).

Fotos 3.14 e 3.15: População da Vila Moraes se mobiliza para participar da plenária sobre a Lei dos mananciais, em março deste ano (à esq.); parcela da população volta para casa decepcionado com a falta do

transporte prometido (à dir.)

3.7 A situação periférica específica da Vila Moraes

A ambiguidade a respeito da posse da terra, o fato de que o bairro está situado em área de proteção aos mananciais, a ilegalidade da sua ocupação, a constante ameaça de os moradores serem removidos do local da moradia, a completa falta de infraestrutura, incluindo água, esgoto e luz, a ausência de equipamentos municipais de saúde, educação, cultura e lazer, a precariedade de transporte e de oportunidades de emprego e a baixa qualidade de construção (barracos de madeira e madeirite em vez de casas de alvenaria) constituem, no seu conjunto, o que pode ser chamado de situação periférica específica da Vila Moraes. Escrevem Almeida, D’Andreia e De Lucca em artigo recente (2008:111):

O que chamamos de “situações periféricas” não se refere a um estado de exclusão, mas a contextos sociais em que há acesso precário a melhorias materiais e a recursos simbólicos. O termo “periférico” deve-se ao fato de o

“foco” empírico estar na posição hierarquicamente inferior do espaço social,

distante das centralidades da produção e reprodução de bens materiais e simbólicos com maior valor social.

Diferente destes autores, considero analiticamente promissor conjugar o conceito de “situação periférica” com os conceitos da exclusão e da produção do espaço. O espaço da Vila Moraes, com todas estas precariedades, é produzido como situação periférica. No outro lado da estrada, poucos metros em frente da Vila Moraes, o Condomínio do Jandaia mostra que uma outra urbanização é possível, que a prefeitura possui recursos para instalar a infraestrutura necessária e os equipamentos adequados – desde que os moradores tenham um

mínimo nível de afluência e recursos. A maior parte do entorno da Vila Moraes e das áreas em torno da única principal via de acesso no bairro dos Alvarenga (Estrada do Alvarenga e Estrada do Acampamento dos Engenheiros), é formada por grandes chácaras privadas, das quais várias oferecem espaço de lazer comercializado, como pesque-pague etc. Não por acaso: por trás está uma política de urbanização. Marcondes (1999:125) fala de um “modelo de proteção ambiental nos mananciais” que consiste em “tornar disponíveis grandes lotes para chácaras de recreio”, em vigor desde 1970. No meio destas chácaras, ocorre nas áreas dos mananciais a produção clandestina do espaço:

O binômio pobreza urbana e risco ambiental acentuou-se a partir de então, a exemplo do binômio pobreza urbana e exclusão dos serviços e equipamentos coletivos, compondo um quadro que poderíamos chamar de espoliação ambiental, correspondente aos processos de espoliação urbana conceituados por Kowarick (1979). Trata-se da exploração ambiental e da inexistência das condições mínimas ambientais, socialmente necessárias à subsistência dos trabalhadores, embora tenhamos presente que a idéia de espoliação urbana também deriva desses aspectos. (Marcondes 1999:120)

Em boa parte, é a população dos próprios municípios que entra num processo de periferização e ocupa as áreas dos mananciais do município, reiterando o padrão periférico de expansão urbana e a produção clandestina do espaço. Os processos de desconcentração urbana da metrópole foram mediados principalmente por processos de exclusão social e localizaram- se com predominância nas regiões dos mananciais, carentes de equipamentos e infraestrutura urbana e com características de expansão periférica. Marcondes (1999:173) lembra que por trás deste processo há uma vontade política:

Os responsáveis por essa prática no poder público municipal se justificavam alegando que, com os baixos custos da terra das áreas de mananciais, seria possível equacionar a questão social. Tais custos, porém, não incluíam os investimentos em urbanização – pois não raro eram glebas distantes da área urbanizada e sem infra-estrutura urbana – , tampouco o fator indutor desses empreendimentos e, principalmente, o cumprimento da legislação competente. ... Essas áreas sofriam então os efeitos polarizadores da metrópole e as formas de ocupação do espaço, resultantes do modelo econômico vigente, com o afluxo de contingentes populacionais por meio dos conhecidos processos de urbanização – periferização – segregação social. ... Essas regiões passaram a refletir o processo de dualização social, configurando-se em ilhas de exclusão social. A desqualificação dessas áreas para usos urbanos, a proibição de instalação de sistemas públicos de água e de esgotos sanitários nas áreas inseridas nas classes C (artigo 22 da Lei 1.172/ 76) – que representam a quase totalidade da superfície protegida –, bem como a ausência de investimentos no setor viário, caracterizam emblematicamente tais regiões, seguindo-se a isso a impossibilidade de obtenção das rendas diferenciais urbanas, geradas pelos investimentos públicos.

Repito que a “a proibição de instalação de sistemas públicos de água e de esgotos sanitários”, citada pela autora, foi aplicada apenas para o caso dos moradores da Vila Moraes, como vimos acima e está à vista caminhando pelo bairro, mas não para os habitantes (mais afluentes) do Condomínio do Jandaia que moram do outro lado da Estrada, inclusive mais próximo e imediatamente à margens da represa Billings. Parece que só a Estrada separa o “cidadão de primeira classe, ... capaz de defender seus direitos e mesmo seus privilégios, recorrendo a amigos influentes, pagando advogados” e o “cidadão de terceira classe, a majoritária parcela que aufere remuneração irrisória” e mora em “habitações assim chamadas de subnormais, que reúnem cerca de 70% das cidades brasileiras.” (KOWARICK 2000:113)

Todo este processo não configura uma desindustrialização da metrópole, mas sim o início de uma reestruturação urbano-industrial, cuja tendência é a da especialização funcional no setor terciário da metrópole, observada na descrição dos índices econômicos de São Bernardo do Campo acima. As reconfigurações espaciais das cidades da Região Metropolitana de São Paulo em vigor geram um forte impacto na geração de alterações na estrutura produtiva, como na de empregos. Verifica-se o aumento das categorias superiores e de empregos mais qualificados nas indústrias tecnológicas e no setor terciário superior, em detrimento das categorias menos qualificadas. As e os moradores da Vila Moraes não possuem as qualificações para estes novos empregos, e os índices dos anos de estudo e da renda elaboradas acima mostram que os moradores das APs não participam destes empregos novos altamente qualificados. A modernidade tecnológica, informática e organizacional combina-se com o trabalho precário; é este último que, como vimos, é o único acessível para os moradores da Vila Moraes e mantém suas condições urbanas de vida extremamente espoliativas. A reestruturação dos empregos desencadeia um processo de dualização urbana, “marcada pelos fenômenos brutais de exclusão social e de marginalização com reflexos diretos nos padrões de ocupação do solo e da apropriação dos recursos ambientais nas áreas de mananciais.” (MARCONDES 1999:185) A Vila Moraes é uma tradução deste processo de dualização social, configurando-se em ilha de exclusão social.

3.8 A realidade social da Vila Moraes na ótica de moradores participantes da

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