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As comunidades religiosas da periferia versus o reinado do

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1.2 A religião como associativismo voluntário: aspectos da escolha dos

1.2.1 As comunidades religiosas da periferia versus o reinado do

mais elaborados que encontramos no campo pentecostal. Com raízes calvinistas e ao mesmo tempo pentecostais, encontramos no culto da Congregação Cristã, de maneira simultânea e

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paradoxal, indícios de uma vida racional e metódica que almeja a salvação da alma (nos hinos e na pregação) como expressões emocionais (nos momentos de oração e dos testemunhos). Por isso, a oposição que Hervieu-Léger constrói entre a religião do ritual e a religião da interioridade, nas duas modalidades mística e ética, não me parece condizente com o culto da Congregação Cristã. A autora lembra que o individualismo religioso precede em muitos séculos o individualismo moderno: há místicos desde o século III, como Plotino, se bem que eram casos excepcionais: assim, não há como falar em individualismo, como prática comum. Da mesma maneira, se opõe o carisma místico (do pequeno número de virtuosos) à conformação racional e metódica da vida do indivíduo que via ética se constitui como sujeito crente; especialmente no calvinismo, de maneira radicalmente individual, o crente encontra-se confrontado com a questão da sua própria salvação.

Qual a relação entre individualismo religioso e individualismo moderno: há de fato uma “afinidade eletiva” na qual o primeiro precede o segundo, como disse Weber? Ou é o primeiro uma conquista do segundo?

De fato, o individualismo religioso separa-se do individualismo moderno pelo menos em dois pontos: a autonomia total do indivíduo moderno está em oposição à entrega de si a Deus que o sujeito religioso opera, assim como a autonomia moderna das realidades mundanas está em oposição à desvalorização do mundano, visto pela religião como obstáculo à união com o Divino. Isso vale mesmo para a ética intramundana da Reforma:

O individualismo calvinista nega a autonomia do indivíduo. ... A espiritualidade luterana e calvinista permanece inscrita, o essencial, numa lógica de afirmação negativa do indivíduo, característica do individualismo religioso pré-moderno. ... O que caracteriza o cenário religioso contemporâneo não é o individualismo religioso enquanto tal; é a absorção deste último no individualismo moderno. (HERVIEU-LÉGER 1999:161s).

Esta mutação moderna do individualismo religioso é melhor identificável no conjunto de grupos e redes espirituais que compõem a “nebulosa místico-esotérica”. A pesquisa de campo indica que a Congregação Cristã traz como marca ainda uma forte presença de elementos calvinistas. Muitos fiéis desejam aderir a uma verdade existente fora de si, e ao mesmo tempo experimentá-la como sua própria verdade. As duas características principais que, conforme a autora, marcam o individualismo religioso moderno: a valorização do mundo e a autonomia do sujeito crente, têm, ao meu ver, uma presença limitada na Congregação Cristã.

Levada ao extremo, a expansão da espiritualidade moderna do indivíduo leva a uma atomização total das procuras espirituais individuais, a uma “decomposição sem

recomposição”, mas somente no caso-limite de um regime de autovalidação do crer. Na maioria dos casos, os crentes, porém, efetuam uma recomposição do crer que querem validar mutuamente (em grupos e redes), uma vez que os “dispositivos da validação institucional funcionam hoje em dia de maneira caótica.” (HERVIEU-LÉGER 1999:180) Neste sentido, a espiritualidade da Congregação Cristã é mais tradicional do que moderna.

A autora distingue quatro modelos de validação do crer: autovalidação, validação mútua (grupos e redes), validação comunitária (modelo dos “militantes” e monástico) e regime institucional da validação do crer (liderado por autoridades religiosas reconhecidas), resumidos na tabela seguinte (HERVIEU-LÉGER 1999:187):

Quatro modelos de validação do crer

Regime de validação Instância de validação Critério de validação

Institucional A autoridade institucional qualificada A conformidade

Comunitário O grupo como tal A coerência

Mútuo O outro A autenticidade

Autovalidação O próprio indivíduo A certeza subjetiva

Quadro 1.3: Quatro modelos de validação do crer

Há ainda um outro dispositivo de validação: o profeta que encontra na comunidade emocional dos discípulos a confirmação de sua eleição carismática. A validação carismática atravessa os regimes acima citados.

Acredito que não é possível reduzir, na Congregação Cristã, as modalidades de validar o crer a apenas um dos quatro modelos. A pesquisa de campo indica que, na Congregação Cristã, os quatro modelos de validação do crer engrenam um no outro, sem formar oposições. Para falar em termos halbwachsianos: A memória religiosa individual é um ponto de vista da memória coletiva; aquela se refere a esta e não se opõe a ela. A certeza subjetiva, ou a validação mútua nas conversas entre fiéis da Congregação, se inserem na memória coletiva do grupo e da instituição e ganham sua legitimidade justamente por fazer parte dela e por se orientar nela.

A autora prefere os critérios de validação à distinção entre igreja e seita, porque esta reúne “duas séries de traços distintivos: por um lado, características relativas à organização dos grupos (dimensão, condições de pertença, estrutura do poder, grau de permeabilidade ao meio social, político e cultural, etc.); por outro, elementos que comprometem o próprio conteúdo da crença (concepções do papel da Igreja na economia da salvação, teologia dos sacramentos, relação com o mundo, etc.).” (HERVIEU-LÉGER 1999:194)

Conforme a autora, a crise da tradição religiosa, provocada pelo advento da modernidade, vai muito mais longe do que a perda da influência das igrejas na sociedade. Ela compromete a relação dos indivíduos crentes com a própria igreja. É a legitimidade da

autoridade religiosa que se encontra atingida no seu próprio fundamento. Por isso, as instituições religiosas devem conciliar-se, no seu interior, com a invasão de um regime da validação mútua do crer que dissolve os dispositivos tradicionais da validação institucional, e ao mesmo tempo enfrentar a pluralização de pequenos regimes da validação comunitária que levantam muros de ortodoxia que eles mesmos definem (pequenos universos de certezas). Estes regimes estão em tensão e tendem a ativar-se um ao outro; é tarefa da instituição regulá- los. Ambos os regimes desafiam a validação institucional como conjunto dos crentes passados, presentes e futuros que constitui a “comunidade autêntica.”

Como já dito, estas dinâmicas se fazem presente na Congregação Cristã apenas de maneira limitada. Nela, o regime de validação mútua não dissolve os dispositivos tradicionais da validação institucional, mas, frequentemente (porém, com exceções que serão vistas e discutidas) se acomoda a elas e as confirma.

Assim, a instituição religiosa está diante de dois imperativos contraditórios: de um lado, alimentar um consenso teológico e ético mínimo, e de outro, manter um modelo suficientemente forte de verdade partilhada.

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