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Capital social

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1.3 Conceitos de uma antropologia e sociologia relacionais

1.3.3 Capital social

Intimamente ligado ao conceito de redes sociais é o conceito de capital social, indicando tanto a força de um grupo social em relação a outro como a força de um indivíduo dentro da própria rede social.

Coleman definiu capital social partindo da sua função, como uma “variedade de entidades com dois elementos em comum: todas elas consistem num certo aspecto das estruturas sociais e facilitam determinadas ações dos atores - pessoas ou atores coletivos - no interior da estrutura” (1988:98; 1990:302).

Esta definição obscurece a distinção dos recursos em si mesmos da capacidade de os obter em virtude da pertença a diferentes estruturas sociais. “Um tratamento sistemático do conceito tem de distinguir: (a) os possuidores de capital social (os que fazem as solicitações); (b) as fontes do capital social (os que acedem às solicitações); (c) os recursos propriamente ditos.” (PORTES 2000:137)

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Deve ser lembrado aqui que Hervieu-Léger, cuja teoria constitui interlocutor importante do meu quadro teórico para ordenar e analisar os dados da pesquisa de campo a respeito dos aspectos religiosos, trabalha a partir da situação do individualismo europeu na França e desconhece as situações periféricas do Brasil. Considero um dos maiores desafios deste estudo fazer os dados de campo dialogarem com este quadro teórico e possivelmente reformulá-lo. A realidade concreta da periferia na América Latina com suas formas próprias de sociabilidade (associativismos informais, redes de vizinhança, poder local) podem atenuar o anonimato e o individualismo tão destacado pela autora, exigindo balizar seus conceitos.

O capital social reside na estrutura das suas relações. Para possuir capital social, um indivíduo precisa de se relacionar com outros. Os outros são a verdadeira fonte do benefício, não a própria pessoa. Eles podem disponibilizar recursos por motivos diferentes, entre os quais se pode distinguir motivações altruístas e motivações instrumentais.

São quatro as fontes do capital social:

1) normas internalizadas que inibem o crime ou tornam possíveis comportamentos altruístas dos quais terceiros podem se beneficiar;

2) A reciprocidade ou a acumulação de obrigações para com terceiros, de acordo com a norma de reciprocidade, na espera de futuras recompensações (motivações instrumentais) pelos beneficiados.

3) Solidariedade que não é o resultado da introjeção de normas durante a infância, mas um produto emergente de um destino comum. Neste caso, as disposições altruístas dos atores nestas situações não são universais, mas confinadas aos limites da sua comunidade. Outros membros do grupo podem apropriar-se destas disposições como sua fonte de capital social.

4) Disposição de dar ofertas com expectativa de recompensa não pelo beneficiado, mas pela coletividade no seu conjunto, na forma de status, honra ou aprovação. Comenta Portes:

Solidariedade confinada é o termo utilizado na bibliografia recente para designar este mecanismo. É esta a fonte de capital social que leva membros abastados de uma confissão religiosa a doar anonimamente fundos para escolas religiosas e hospitais; ... A identificação com o seu grupo de pertença, seita ou comunidade pode ser uma força motivacional poderosa. ... Existe confiança nesta situação precisamente porque as obrigações são impostas, não através do recurso à lei ou à violência, mas através do poder da comunidade. (2000:139)

Como as fontes, também os efeitos do capital social são diversos. Podem-se distinguir “três funções básicas do capital social, aplicáveis a uma variedade de contextos: (a) como fonte de controle social; (b) como fonte de apoio familiar; (c) como fonte de benefícios através de redes extrafamiliares.” (PORTES 2000:141)

O capital social que tem como função o controle social é criado por redes comunitárias densas e encontra frequentemente as suas fontes na solidariedade confinada e na confiança exigível, e tem como principal resultado tornar inúteis os controles formais ou explícitos. São estruturas familiares e comunitárias informais que produziam este tipo de capital social.

Este capital social tende a ser inferior para as crianças de famílias monoparentais. Também deslocações seguidas e múltiplas da família diminuem este capital social.

A função que se atribui de forma mais comum ao capital social é, sem dúvida, a que este desempenha enquanto fonte de benefícios mediados por redes

exteriores à família mais próxima. Esta definição é a que mais se aproxima da de Bourdieu (1979; 1980), para quem o apoio familiar ao desenvolvimento da criança é uma fonte de capital cultural, ao passo que o capital social se refere aos recursos a que se acede mediante a pertença a redes. ... A utilização mais comum desta terceira forma de capital social encontra-se, porém, no campo da estratificação social, onde é frequentemente invocado como explicação do acesso a empregos, da mobilidade através de oportunidades profissionais de ascensão social e do sucesso empresarial. (PORTES 2000:143)

A ideia é que os laços pessoais são instrumentais na promoção da mobilidade individual (cf. GRANOVETTER 1973). Quase duas décadas depois, Burt (1992) desenvolveu a abordagem de Granovetter através do conceito de “buracos estruturais”. Lin, Ensel e Vaughn (1981), demonstram, ao contrário, as redes densas como recurso. Esta visão alternativa pode ser categorizada, em oposição a Granovetter e a Burt, como “a força dos laços fortes”. Grupos étnicos ou religiosos que formam de certa maneira enclaves podem, como Weber já mostrou (1920 [2001]), funcionar como redes comunitárias que fornecem uma fonte de recursos vitais a oportunidades de emprego, garantindo uma força de trabalho dócil e disciplinada. A sobrevivência quotidiana em comunidades urbanas pobres, ao contrário, depende frequentemente da estreita interação com familiares e amigos em situações semelhantes. O problema é que estes laços raramente possuem um alcance exterior, privando desta forma os seus habitantes de fontes de informação acerca de oportunidades de emprego noutros locais e dos modos de as alcançar.

Deve-se lembrar ainda que estas várias funções do capital social podem entrar em choque, quando, por exemplo, o capital social na forma de benefícios mediados por redes consiste precisamente na capacidade de evitar as normas existentes.

Sociabilidade, porém, não traz necessariamente resultados positivos, e as redes comunitárias, o controle social e as sanções coletivas não são pura bênção. Pode-se identificar "pelo menos quatro consequências negativas do capital social: exclusão dos não membros, exigências excessivas a membros do grupo, restrições à liberdade individual e normas de nivelação descendente" (PORTES 2000:146; cf. ELIAS; SCOTSON 2001, como já mencionado acima).

Densas redes multiplex que ligam os membros de um grupo produzem o terreno propício a uma intensa vida comunitária e à imposição das normas locais. A privacidade e a autonomia dos indivíduos, neste contexto, veem-se reduzidas na mesma medida. É inevitável uma tensão entre a solidariedade comunitária e a liberdade individual. Portanto, se a solidariedade confinada e a confiança fornecem as fontes para a ascensão socioeconômica e para o desenvolvimento empresarial entre certos grupos, entre outros (como gangues juvenis e

redes de traficantes) produzem o efeito exatamente oposto de resultados sociais não desejáveis.

Vozes críticas como a de Portes são raras com referência ao uso do conceito de capital social. A partir de Coleman e especialmente Putnam (2000), trabalhos recentes sobre o capital social alargaram o âmbito do conceito e o tratam com franco entusiasmo como panaceia contra a desigualdade social. Este entusiasmo deve ser balizado pela compreensão de Bourdieu: para ele, o capital é justamente um veículo da reprodução da desigualdade.

No breve texto “O capital – notas provisórias”, datado de 1980 e posteriormente reelaborado (1985), Bourdieu define o capital social como

o conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma

rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de

interconhecimento e inter-reconhecimento, ou, em outros termos, à vinculação a um grupo, como conjunto de agentes que não somente são dotados de propriedades comuns (...) mas também, são unidos por ligações permanentes e

úteis. (NOGUEIRA; CATANI 2008:67)

O capital social, portanto, não reside nas próprias pessoas, mas no vínculo entre as pessoas, ou nas ligações “permanentes e úteis” entre os agentes de um campo (assim como em ligações entre agentes de campos diferentes) – são recursos que têm como base a pertença a um grupo: “Essas ligações (...) são fundadas em trocas inseparavelmente materiais e simbólicas.”35 (ibidem) A respeito do volume do capital social, Bourdieu indica:

O volume do capital social que um agente individual possui depende então da extensão da rede de relações que ele pode efetivamente mobilizar e do volume de capital (cultural, econômico ou simbólico) que é posse exclusiva de um daqueles a quem está ligado." (ibidem)

O capital social é, portanto, composto de dois elementos: da própria relação social que dá aos indivíduos acesso a recursos na posse dos membros do grupo, e a quantidade e a qualidade desses recursos.

O capital social não é direta e imediatamente conversível em outra forma de capital, mas possui um efeito multiplicador sobre as propriedades de cada um desses tipos de capital, possuído com exclusividade pelo agente detentor de capital social, porque age como catalisador no processo de estabelecimento de redes de relações necessárias à multiplicação do capital (econômico ou cultural) investido.

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Vê-se como Bourdieu retoma aqui a reflexão de Mauss sobre as trocas que nunca são somente materiais, mas sempre também simbólicas no sentido de construir superioridade social ou distinções sociais (hierárquicas).

Bourdieu não analisa o capital social como chance de grupos marginalizados para se mobilizar e romper com sua situação de inferioridade, mas como mecanismo do qual a elite se serve para reproduzir e multiplicar o capital econômico e cultural que possui. Capital social é, além dos outros capitais, a moeda de troca com que a elite gera coesão interna pela distinção, e ao mesmo tempo estabelece fronteiras com outros grupos. A elite usa o capital social, portanto, como mecanismo de exclusão de novos membros (como, por exemplo, os novos ricos, que possuem capital econômico elevado, mas capital cultural inferior, razão pela qual o capital social lhes é negado) que poderiam modificar as características do grupo, impedindo sua reprodução.

Bourdieu, portanto, analisa o capital social como mecanismo de exclusão (bonding social capital) acionado pela elite. Esta visão crítica deve ser lembrada diante do franco entusiasmo quase onipresente na literatura contemporânea, que celebra o capital social como chance de grupos marginalizados para se mobilizar via conexões externas (bridging social capital) e romper com sua situação de inferioridade.

O presente estudo não conjetura que a pertença à Congregação Cristã como rede social religiosa, por si só, aumente o capital social ou seja uma chance de mobilizar maiores recursos, pressupondo uma virtuosidade dos circuitos, mas quer justamente problematizar uma possível proteção ou limitação da mobilidade social. A pesquisa de campo, tanto pelas entrevistas como pelas observações, fornece rico material para discutir a questão do capital social no local estudado.- A partir dos anos 90, o conceito de capital social sofre uma virada, ao fazer equivaler o capital social ao nível de “civismo” em comunidades como vilas, cidades, ou mesmo países inteiros (p. ex. Putnam 2000). Um dos indicadores do volume de capital social presente nestes níveis é a participação em associações voluntárias. É por isso que o nosso olhar se dirige, neste momento, ao associativismo religioso.

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