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A pesquisadora em meio ao estranho conhecido

9 Dos afetos que podem surgir de uma pesquisa

9.1 A pesquisadora em meio ao estranho conhecido

Algo aconteceu na visita que fiz a casa de Inês que mora com seu sogro e sua sogra, e os chama de pai e mãe, conversávamos na área quando ele me questionou: “Ah então você é agrônoma?”, rapidamente respondi “Não, sou psicóloga!” breves segundos de silêncio até que eu brinquei “O que faz uma psicóloga aqui, né? Geralmente não se pensa um psicólogo fora da clínica, mas eu sou uma psicóloga que se interessa pelo trabalho, e agora, pelo trabalho das agricultoras”. Senti que foi interessante brincar com esta questão, pois em seguida (claro, não sem antes ouvir um “imagina” como uma maneira de se desculpar caso parecesse inconveniente), eles se sentiram à vontade para fazer perguntas sobre mim, sobre o que eu estava fazendo, se este era meu trabalho ou estudo.

Sinto que ainda é bastante estranho entenderem este processo do mestrado e de uma pesquisa ser um trabalho, mas a partir disso pude explicar detalhadamente minha trajetória e o porquê estava ali, interessada em suas vidas. Percebo as perguntas feitas a mim como bem-vindas, pois entendo que falar de mim é também um processo necessário nesta relação dialógica e de confiança que estabelecemos. Mesmo que boa parte das famílias que visitei já tenham conhecimento de quem são meus pais (afinal, o município é tão pequeno que dificilmente haja alguém desconhecido pelos demais), na conversação, assim como me interesso pelas suas vidas, eles também se interessam pela minha e, me colocando neste lugar de participante, eu também gostaria de saber quem é este que me visita e faz perguntas. Durante uma das visitas, descobri uma amiga de minha avó e de meu avô, soube de histórias e pessoas que desconhecia. Devido aos anos que morei distante daqui, muitas das pessoas com as quais estou convivendo na pesquisa não me conheciam, mas ao saber de que ‘família’ (geralmente as pessoas perguntam os sobrenomes para buscar alguma referência) eu era, sentia um acolhimento e até uma tranquilidade, afinal, sou estranha, mas não tão estranha assim, por ser deste mesmo lugar, e no momento morar aqui, compartilhando das vivências deste rural (Diário de Campo).

Dentre as perguntas mais frequentes, estão: se estou trabalhando, estudando, onde estudei antes, se serei agricultora, e de porquê não trabalho como psicóloga.

Há algo da ordem do deslocamento que transversalizou todo o fazer da pesquisa, ainda que vista enquanto moradora do mesmo município e filha de agricultores, por diversas vezes as diferenças vieram à tona. A cena na qual Rosa fala do meu jeito de caminhar, remete à ideia de que a observação é sempre uma via de

mão dupla, e as diferenças estão nos corpos, nos jeitos de andar, falar, vestir, entre outros.

Como havíamos ido ao rio nossos pés ainda estavam molhados, de repente, Rosa olhou para sua filha e disse “Viu só, olha o jeito dela caminhar, nem sujou os pés, e olha os meus!”. Este foi um dos momentos que percebi que não apenas eu estava como observadora, mas ela também me observava (Diário de Campo).

Em relação a Psicologia, algumas pessoas foram indiferentes a minha formação, a pergunta não passava de simples curiosidade. Já para outras isso gerou dúvidas sobre o que realmente eu pretendia ali, algo entre desconfiança e desejo de participar. Noutras, mesmo com a explicação de que ali eu era pesquisadora e não terapeuta, notei a necessidade de escuta das pessoas, de querer contar um pouco de suas angústias, de falar sobre vários assuntos, afinal, tinha alguém ali para ouvir.

Mariana pergunta o que eu estudo, esta dúvida surgiu somente no momento em que falavam sobre a diferença entre o trabalho da cunhada no banco e os deles, comentei sobre minha formação e o que estava estudando, isso foi recebido com bastante naturalidade, o que não é tão comum quando me apresento como psicóloga. Raul disse que prefere trabalhar o dia todo no pesado do que chegar à noite com a cabeça cheia (referindo-se às situações de estresse enfrentadas no trabalho), igual a irmã dele que trabalha no banco. Mariana também disse que não se imagina vivendo numa cidade, dentro de um apartamento pequeno e apertado, sem ter pra onde ir, e contou que na viagem que fizeram até a cidade onde a cunhada mora (para a qual precisou acordar as 2:30 da manhã pra tirar leite) sentiu-se mal por ter de permanecer dentro daquele apartamento, até adiantaram a volta para a casa, “Não via a hora de voltar pra casa” (Diário de Campo).

Aqui aparece algumas diferenças entre os trabalhos mediante opostos, intelectual e corporal, campo e cidade, como se em algum momento houvesse tal separação, afinal para as atividades é acionado o corpo como um todo. As representações que perpassam estes lugares ocupados pelos trabalhadores no trabalho permitem aproximações entre suas maneiras de entender, mas principalmente, de vivenciar seus ofícios.

A relação entre o que é uma psicóloga, e o que é uma pesquisadora de psicologia social, não pareceu ser muito interessante. Mas, segundo as participantes, se eu precisava fazer isso “pra aula”, então “tudo bem”, elas me ajudariam.

Tanto Neide quanto Mariana aceitaram que eu fosse lá, brinquei que também queria aprender a fazer alguma coisa, que eu não ia ficar só olhando, Neide disse que ia arrumar uma enxadinha pra mim, em tom de brincadeira (Diário de Campo).

Pesquisadora participante: implicação

Durante o meu etnografar, com todas as dúvidas e expectativas iniciais acerca de como seria recebida, de como me comportaria, e isto ia da forma de falar, ao vestuário, ao tempo de permanência nas casas, à escuta de quem e quando, a hora de retirada, todas estas experimentações imersas em dúvidas, em momentos de preocupação, permitiram que eu escolhesse, durante o campo, vivenciar o que se apresentava, inclusive escolhendo não pensar que aquilo seria escrito, apenas ouvir, acompanhar e aceitar as propostas. Como acontecimento, a participação em alguns processos de trabalho trouxe novas maneiras de enxergar uma atividade, como descrevi no diário.

Conversávamos e trabalhávamos, em seguida volta Neide com um café e um prato de rissoles (feitos por ela). O café era batido, veio num pote, o café batido como se conhece aqui é a mistura do café com o açúcar, logicamente batidos, que deixa uma camada de espuma e cremosidade na superfície. Ela pede pra que paremos um pouco para comer, eu me sirvo, sento e ela comenta que está preparando o almoço, digo que não ficarei afinal, não quero abusar, ela, a nora Mariana e o filho rapidamente pedem pra que eu fique se não tiver compromissos à tarde, fico meio sem jeito, mas percebo que fazem questão que eu fique para o almoço (e foi o que fiz), Mariana diz: “Que bom que hoje vamos ter companhia porque sempre ficamos só nós!”, fiquei feliz neste momento pois pensei “Poxa, só vim aqui duas vezes, e eles estão me recebendo tranquilamente, sem mudar suas rotinas, conversando bastante e ainda insistindo para que eu almoce com eles”. Enquanto comíamos os rissoles conversamos sobre assuntos cotidianos, em seguida Mariana perguntou se eu gostaria de tentar embalar os brócolis, disse que sim, mas que teriam de ter paciência, eles riram e eu fui, Raul brincou que se eu encostasse no fio, me

queimaria de ficar branca, lhe disse que tomaria cuidado, e devido a minha lerdeza seria difícil acontecer, Mariana alertou que não me preocupasse pois “no início é assim mesmo, demora até pegar o jeito”, enquanto eu embalava formou-se uma pilha de brócolis, então devolvi o cargo a ela (Diário de campo).

É consciente deste lugar por mim ocupado que relato principalmente a facilidade das primeiras incursões, relacionei minha recepção inicialmente como pertença, por ser um (não digo igual pois seria ingênuo), mas muito próximo, compartilhando certos códigos deste ambiente e desta realidade. O conhecimento que as mulheres tinham de mim, primeiro, era sobre quem era os meus pais, então ocupei o papel de filha de agricultor. Neste emaranhado, foi necessário o estranhamento, ainda de alguém que estava longe, às práticas comuns. Esta entrada, apesar de ter exigido que eu refletisse e escrevesse muitas vezes para buscar os deslocamentos possíveis, contribuiu para que fosse vista como menos estranheza e facilitou o processo de confiança, primordial nas pesquisas com propostas de imersão, em poucos dias eu fora recebida sem ‘cerimônia’, por vir de realidade semelhante, não mesma, mas próxima. Mais do que observar, me propus a participar das atividades que me eram possíveis, o que foi visto algumas vezes com surpresa e cuidado, a seguir relato uma cena na colheita de ervilhas:

As carreiras das ervilhas estavam alinhadas em três vias principais e nas bordas algumas plantadas de forma agrupada, a pequena plantação não estava muito longe da casa, há uns 30 metros, no topo do pequeno morro havia um pedaço de um antigo aviário, já bastante destruído, e no lado esquerdo, em direção à entrada havia um galpão, um pavilhão de zinco há pouco tempo construído. Do outro lado, no final da lavoura de resteva havia um mato, era possível ouvir o som de um riacho, porém acabei não perguntando se realmente havia um rio ali. Iniciamos nossas atividades, fiquei apreensiva e com dúvidas se estava tirando as vagens corretas, Neuza era bem rápida e eu nem tanto, mas aos poucos fomos entrando num ritmo, eu lhe disse: “Neuza, por favor, repassa onde eu tô tirando, porque não tenho muita prática”, ela disse sim e que não tinha problema.

Os pés de ervilha medem mais ou menos uns trinta centímetros, devido ao vento e ao peso, estavam quase deitados, alguns precisavam ser segurados para o destaque das vagens, para isso é preciso ficar de cócoras ou com o tronco abaixado sustentado pelas pernas. Íamos destacando e colocando no tacho. Estava calor e o sol aparecia ocasionalmente, Neuza estava de boné, eu tinha esquecido o meu, então em alguns momentos senti de maneira forte o sol, por

duas vezes também senti tontura por ficar tanto tempo de cabeça baixa. Enquanto colhíamos conversávamos, Neuza me disse que este ano as vagens não estavam muito bonitas, tinham algumas manchas e que ela atribuía ao excesso de chuva. Acrescentou que essas não tinham “nada de veneno”, foram plantadas, cuidadas de forma orgânica e que sabia o que sua família iria consumir. Comentei que mesmo com as manchinhas valia a pena ter certeza do que se come e que essa é uma das vantagens de produzir o próprio alimento (Diário de Campo).