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Agricultoras e todo o mais: o prazer pelo trabalho rural

12 Trabalho e gênero

12.7 Agricultoras e todo o mais: o prazer pelo trabalho rural

Quando perguntadas sobre com qual profissão se identificam, das seis entrevistadas, cinco disseram que consideram-se agricultoras, mesmo que além do serviço agrícola também efetuem as atividades em casa, agrícolas e pecuárias, na educação dos filhos, cuidado com os idosos e atividades na esfera pública.

É pela via do trabalho também que os processos identitários vão se compondo, através de metamorfoses (Ciampa, 1985), memórias, narrativas e práticas constituídas objetiva e subjetivamente, num emaranhado de conexões entre suas histórias de trabalho e vida, origem e geração (Coutinho & Oliveira, 2017).

Essa identificação é bastante importante já que mesmo não havendo um salário individual, uma vez que a renda é familiar, há a identificação com a profissão e a consideração de que o que fazem é trabalho, ainda que por vezes citem suas atividades como ajuda. Considerar-se agricultora é consequência de décadas de reivindicações que proporcionaram o reconhecimento de seus trabalhos por via do Estado e via familiar, do micro ao macro.

Ah um pouco de tudo, mas mais agricultora, porque é mais na roça quase do que em casa... (Inês)

Eu, agricultora. (Rosa)

Eu como agricultora, com muito orgulho. (Mariana)

Diante da pergunta, alguns segundos de silêncio, então Neide responde: Mais dona de casa...

Ah, acho que mais é dona de casa e agricultora né, eu faço de tudo. (Neuza)

Este tópico traz informações que podem ser pensadas através dos modos como as mulheres são referenciadas nos diálogos no interior, geralmente a mulher do fulano, e também no meu caso, a filha do fulano. Se é comum a referência das mulheres enquanto anexos de figuras masculinas, este comum é colocado em xeque nos seus próprios discursos, afinal não é assim que se consideram, pois posicionam-se no lugar de agricultoras. Estas alusões tomadas quase como naturais nos diálogos provocam dificuldades e suas implicações psicossociais englobam os frágeis reconhecimentos, provocando inclusive restrições no acesso a direitos, imbricados nestas posições do que é e do que não é trabalho.

Já em relação ao sentimento sobre o trabalho delas, sobre serem mulheres agricultoras, as respostas são variadas:

Ah, com orgulho né, porque a gente já nasceu dos pais da gente que eram agricultores né e continuamos sendo agricultores e espero que uma das filhas, pelo menos, continue sendo agricultora né. (Flávia)

Esta primeira fala ressalta a importância dada as gerações, da manutenção do trabalho anteriormente exercido pelos familiares, e a esperança de que este não cesse, que dê seguimento através de uma das filhas. As cargas tradicionais provocam alusões não de uma racionalidade econômica (Lagnbecker, 2016), mas dos aspectos familiares, modos de existência possíveis entre as pessoas, a natureza, e o trabalho que os vincula.

Ah, eu me sinto feliz, eu me sinto assim, sei lá como eu vou te explicar, a gente trabalhando na roça, a gente sente orgulho né, porque tu sabe que o que tu tá plantando, tu sabe que lá na frente quantos consumidores que vão comer o que tu tá produzindo com as tuas mãos né, tu sabe que tu tá plantando aquele

brócolis, tu vai pensar, quem será que vai ser a pessoa que vai comer esse brócolis, que vai consumir, eu me sinto feliz porque eu tô produzindo pros outros né, pras mesas de pessoas de longe né, às vezes de muito longe, eu me sinto orgulhosa disso né, porque tu tá produzindo uma coisa que muita gente vai consumir né. (Inês)

Inês assinala a importância da produção de alimentos quando coloca “me sinto feliz porque eu tô produzindo pros outros né”, significa a importância da produção de algo que é imprescindível para a sobrevivência de outras pessoas, significa esta consciência da importância do seu trabalho, deste passar “pelas tuas mãos” até às “mesas das pessoas”. Há algo de uma narrativa poética, e das imagens destes caminhos percorridos pelos alimentos, do plantio, crescimento e transporte até chegar ao consumidor, independente do último saber ou não deste trajeto, os agricultores sabem, e isso os orgulha, pois produzem os alimentos e se produzem a partir deste trabalho. São as imagens das lonjuras do alcance daquilo que produzem.

Ah eu acho que me sinto bem né, porque a gente se criou assim, se tu tivesse outro tipo de vida e tu tivesse que mudar pra ser, talvez você não ia se sentir bem né. (Rosa)

Rosa também remete à uma condição geracional, relatando que sente-se bem, pois foi isto que desde pequena fez e viu os pais fazendo.

Pra mim, eu me sinto realizada, não acho problema nenhum. (Neide) Ah, eu me sinto bem, me sinto feliz. (Neuza)

A palavra realizada traz uma dimensão diferenciada, segundo o dicionário Priberam, ‘realizado’ é o que se realizou, que atingiu a sua meta, o seu objetivo. Resgatar este sentido para relatar o trabalho executado ao longo da vida, é algo imbricado com satisfação, cumprimento do que esperava ter feito. Sentir-se feliz no trabalho qualifica este fazer, produz sentido naquilo realizado dentro e fora do labor (Antunes, 2009).

Suas atividades agrícolas são descritas como prazerosas. Recorremos a noção de que este trabalho não corresponde ao trabalho alienado, afinal as agricultoras têm um saber sobre seus trabalhos e seus resultados, os processos são conhecidos em todas

as etapas, está inscrito numa relação diferenciada no mundo do trabalho (Woortmann, E. & Woortmann, K., 1997).

A realização liga-se intimamente com a história familiar na agricultura e pecuária, com a consciência da importância do trabalho para a alimentação das pessoas, e estes destaques partem da conquista das mulheres trabalhadoras rurais que ao longo dos anos elevaram suas pautas por meio de lutas, tornaram visível os seus trabalhos e puderam finalmente perceber a si mesmas como profissionais, como mulheres agriculturas. O orgulho acerca do fazer é assunto cotidiano de todos os trabalhadores familiares, diversos relatos fazem menção a ele.

Algumas falas colocam o trabalho externo como promotor de bem-estar:

M - E me diz uma coisa, tu prefere o trabalho dentro de casa, o doméstico ou o de fora?

I - O de fora! (risos) Dentro de casa é um faz e desmancha, fora não, tu vai fazendo e tu vê que rende, mas dentro de casa é sempre a mesma coisa (...) Uma que eu tinha pouco estudo e pra trabalhar na cidade tu tinha que ter bastante estudo e outra que eu nunca fui bem nos estudos, vamos assim dizer, e eu sempre preferi mais na roça do que na cidade. Aqui não tem aquela carga horária né, tu vai a hora que tu puder, não é que se tu tem que ir que tem uma produção que tu tá perdendo, daí tu tem que ir né, mas tipo assim, ah hoje eu tive que ir mas amanhã se eu não tiver muito bem, se amanhã não precisar, não tenho que ir na marra. Porque tipo assim, na cidade chegou àquela hora tu tem que ir senão tu vai perder o emprego, aqui não, não é aquela obrigação. Na cidade não é isso, tu é mandado pela hora né. (Inês)

Ainda que as condições de Inês não oferecessem muitas alternativas, ela é enfática quando diz que sempre preferiu a roça a cidade. Sobre o trabalho destaca a autonomia relativa a organização, a possibilidade de escolher fazer hoje ou amanhã qualquer atividade, situação radicalmente oposta a muitos dos trabalhos citadinos, quando o horário é uma medida mais severa, que ela muito bem denomina “tu é mandando pela hora”.

O ambiente rural também é bastante valorizado devido a liberdade, segurança e paisagens ecológicas. Mariana destaca uma visita que fizera para sua cunhada, e que ao chegar “não via a hora de sair de lá”, pois esses apartamentos são tão “estreitos” que não se imagina morando num lugar assim por gostar da liberdade de morar no interior.

Os múltiplos benefícios também cedem lugar ao que é desvantajoso, e ao mencionar os trabalhos, elegem os que gostam e os que não gostam, ainda que os executem.

O que eu faço porque tem que fazer é a comida, mão gosto muito, mas tem que fazer, tem dois pra... (risos). (Flávia)

O mais impressionante desta fala de Flávia é que além de preparar as refeições diárias, ela ainda faz massas, pães e doces. E o dia em que a conheci foi justamente quando tivemos uma oficina de preparo de bolachas, da qual ela e eu fizemos parte do mesmo grupo, responsáveis por uma receita de grostoli. Durante minhas idas à sua casa os lanches variaram de cookies, grostolis a bolos e batata-doce assada. Esta relação com a alimentação tem particularidades: de não gostar mas fazer para os outros, afinal, vê-se responsável por cozinhar. Todas as participantes da pesquisa preparam e cozinham em suas casas sem a participação dos homens.

Tá eu, pra falar a verdade mesmo o que eu mais gosto é lidar com as vacas, de verdura eu não gosto muito, mas tem que ir. (Mariana)

Mas eu não tem o que não goste de fazer, eu faço por gostar, o que eu faço, eu gosto. (Neide)

Mariana sempre manifestou sua adoração pelos animais e sua preferência pela ordenha das vacas. Neide diz gostar de suas tarefas e já tendo experenciado um trabalho fabril, sente-se feliz por trabalhar em casa atualmente.

Eu gosto de trabalhar com as vacas assim, tira o leite, é bom. É por causa...se tu vai ver se dizer: tu quer tirar leite ou ganhar dinheiro sem trabalhar? Tu vai escolher o quê? Tu tem que fazer porque precisa, é uma coisa que precisa. Tu tem que fazer porque tu gosta e porque tu necessita né desse serviço. (Neuza)

Neuza é objetiva ao comentar que precisa deste trabalho e o gosto advém desta necessidade acrescida dos sentidos que atribui a ela.

A preferência pelos trabalhos externos é unânime, portanto a recorrência às condições climáticas é relevante e situa-se entre as maiores dificuldades relatadas no desempenho de suas tarefas.

O que eu mais me realizando fazendo, ai, o que eu poderia dizer... na roça eu gosto de tudo, o serviço fazer né, mas só não gosto do sol quente, que queima, daí a gente se tem que ir vai na marra mesmo, mas eu sou realizada em tudo na roça, o que eu fizer pra mim é um orgulho”. (Inês)

O inverno né, o tempo, no inverno é difícil, quem diz que gosta, mente. (Rosa) O trabalho mantém esta relação de dupla constituição, as narrativas das trabalhadoras, o acompanhamento de suas experiências e o diálogo constante oportunizou a observação das práticas pelas quais agem sobre suas realidades, ao mesmo tempo em que se constituem através delas.

Após chegar em casa durante um dia inteiro com Mariana e Neide, escrevi um pequeno texto na intenção de não abandonar estes sentimentos e elaborações surgidos durante o dia:

O trabalho rural é pesado, muito pesado, no caso deles [da família] devido as várias atividades concomitantes. Porém, há uma satisfação com aquilo que fazem, uma liberdade de não ter chefe e fazer o próprio horário. A escolha de ficar dentro ou fora de casa sem preocupações com a segurança, ‘a cabeça tranquila’ como dizem, revela uma relação diferenciada do homem com seu trabalho e compõe um modo de vida outro, sustentado na possibilidade de inventividade além das atividades estritas. Quando falei do meu trabalho, eles reconheceram, o que não é tão comum, e ainda brincaram que era melhor que eu filmasse que estava empacotando brócolis, pois ninguém iria acreditar quando eu contasse. Saí de lá carregando dois brócolis, um empacotado por mim e outro empacotado por Mariana (Diário de Campo).

Relendo as anotações, pode-se pensar no quanto a experiência narrada ainda em sua duração traz outros olhares acerca dos temas. O pesado aqui enfatizado nas primeiras linhas fala da experiência de alguém que acompanhou este fazer por alguns dias. Esta noção de tranquilidade relacionada aos trabalhos rurais não parte de uma posição de calmaria, mas de um ambiente não marcado pelo ritmo acelerado das cidades, sistematizado por prescrições flexíveis a cada nova jornada, por meio de escolhas do que será priorizado e do que pode ser adiado. O discurso é ampliado pela representação e reconhecimento acerca do trabalho material e imaterial, e da necessidade do testemunho de que realmente embalei os brócolis.

Para a fundamentação das pesquisas cujo foco é o trabalho no cotidiano, os autores destacam a primordialidade de pensar a distância entre o trabalho prescrito e o

real que desenha os sentidos a ele atribuídos; a importância e necessidade dos conhecimentos do coletivo para a realização do trabalho, no caso do trabalho rural destaca-se os conhecimentos geracionais; e o entendimento de que no cotidiano travam-se disputas e, portanto, ele é habitado por micropolíticas para as quais há sempre resistência em suas dinâmicas, pensando nas assimetrias de gênero, as formas como as mulheres se colocam frente às posturas conservadores, modificando-as (Coutinho, Oliveira & Sato, 2016).