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Sobre o Assentamento Rural de Guabiju

10 Terra

10.1 Sobre o Assentamento Rural de Guabiju

Devido a duas participantes da pesquisa serem moradoras do assentamento rural, é preciso falar um pouco da história da ocupação destas terras. O assentamento de Guabiju, inaugurado em 1992, tem um total de 350 hectares de terra, divididos entre 27 famílias. Atualmente 20 famílias continuam residindo no local.

Flávia e Rosa, naturais a primeira de Ronda Alta e a segunda de Nonoai, ambas com histórico de lutas pela terra, após a vivência nos acampamentos das ocupações migraram, há vinte seis anos, para um município desconhecido, e ali iniciaram uma nova vida de trabalho junto aos familiares.

Segundo o relato não somente delas, mas de outros membros da família, o funcionamento do grupo era o seguinte:

Flávia acrescenta que tinham de ficar preparados o tempo todo, pois às vezes as invasões aconteciam na madrugada, e quando chegasse o aviso precisavam partir. Nesta ocupação [em Guabiju] as chefias pediram para que os ocupantes não matassem um animal sequer e nem utilizassem armas, seu Pedro [marido de Flávia] comenta: “Sim, nem tínhamos armas para usar, e nossa chegada já era esperada, até a polícia já estava aqui, mas foi uma chegada tranquila, montamos nossos barracos e ficamos” (Diário de Campo).

Os relatos sobre a espera e a vivência nas ocupações são diversos, especialmente acerca do interesse nestas áreas tão distantes.

Nesta área em Ronda Alta haviam em torno de 30 mil famílias pertencentes ao movimento, então quando novas terras foram liberadas em Esmeralda e em Guabiju o grupo precisou se organizar pra escolher quais famílias iriam para qual lugar. Rosa conta que a preferência era das pessoas mais idosas e famílias que tinham o maior número de filhos. Seus pais permaneceram em Ronda Alta, ela e a família vieram para Guabiju. No início poucas pessoas queriam vir para este município, pois era distante, “muito retirado”, além de que a exigência do movimento era 25 hectares para cada família e a divisão do território total por família em Guabiju era de uma área inferior à esta quantia, entretanto, eles decidiram vir, inicialmente nove famílias (Diário de Campo).

Já o percurso de Flávia é remetido ao tempo das ocupações, como explica, ficaram, ela e sua família, sete anos na fazenda Annoni e após a vinda para Guabiju permaneceram acampados por um período de três meses até adquirir a concessão das terras.

Ah nós saímos da fazenda Annoni [Sarandi, RS] pra vim pra cá, ficamos sete anos acampados, daí chegamos aqui não tinha nada né, nem uma sombra pra sentar né, tinha que sentar na sombra da casa quando chegava umas horas da tarde por causa do calor, é... chegamos até aqui. Tiramos muitas pedras da lavoura, carregava no carroção e até hoje ainda se encontra umas na lavoura, antes a gente dependia de serviço de máquina dos vizinhos.

Em outros momentos Flávia destacava que quando chegaram nesta região só havia campo e gado solto, então optaram pelo investimento no plantio, arrumando e limpando as terras, retirando as pedras e plantando as árvores, pois segundo ela não tinha uma árvore para que pudessem sentar e descansar sob a sombra, inicialmente precisavam esperar a sombra de uma das paredes da casa, em determinada hora do dia, para sentar “lá fora”. Não havia energia elétrica, somente após dois anos o assentamento de Guabiju recebeu a instalação de uma rede.

M - E vocês ficaram muito tempo até conseguir se instalar aqui?

F - Sete anos acampados e ficamos mais uns noventa dias eu acho, é, mais ou menos noventa dias no barraco até fazer uma casa.

As mobilizações do MST trazem consigo complexidades no que diz respeito as relações com a terra, com o trabalho e com o coletivo, complexidades que estão arraigadas nos discursos e subjetividades destas pessoas. Rosa conta do envolvimento do seu pai, das combinações e as estratégias das lideranças, cujo principal aviso repassado era de que estivessem sempre preparados, pois a próxima ocupação poderia ocorrer em qualquer dia ou hora.

M - Como vocês chegaram até aqui?

R - Através do movimento né, de terra, e essa área aqui era uma área do Estado, que era uma área que não tava produzindo.

M - E como vocês entraram pro movimento, se tu quiser me contar um pouco...

R - Ah como foi entrado pro movimento, tipo foi organizado né através de organização né, que na época era meu pai, tipo, nem era nós, mas nós acompanhamos tudo (...) tinha várias famílias daqui que eram de lá [Nonoai]. M - E qual é o tamanho da área aqui?

R - O total eu esqueci, mas é 27 famílias, é de igual pra igual com dezessete hectare de terra.

Estas terras reivindicadas pelo MST pertenciam ao Estado do Rio Grande do Sul, e estavam “paradas”, o que significa que nada se produzia nelas, então ao serem informados sobre este espaço, o movimento se organizou para ocupá-la.

Em meio às incertezas, aos desafios, falam sobre a recepção nestes primeiros anos:

Eu pergunto como foi a recepção deles no município, como foram tratados, Flávia responde prontamente: “Muito mal”. Pedro [marido de Flávia] conta que pediram ao prefeito que cedesse algumas lonas para a construção das barracas, mas ele não queria ceder alegando que estas terras não deveriam ser ocupadas por gente de fora, afinal este era o coração do município, disse ainda que eles não tinham cara de colonos, agricultores. Seu Pedro fala em tom melancólico “Eu nunca vou esquecer disso que ele me disse, tem certas coisas que a gente nunca esquece” (Diário de Campo).

Para um município pequeno, a chegada de novos moradores provocou estranhamentos, presentes nos discursos tanto de Rosa, quanto de Flávia, que sentiram este estranhamento na pele, e ainda escutam certas denominações das quais não gostam.

Flávia diz que até hoje algumas pessoas de Guabiju os chamam de “acampados”, ou referem-se à região do assentamento, como “o acampamento”, às vezes ela rebate exprimindo que não são mais acampados, noutras deixa passar, afinal, “cansa”. Também comentou que muitos dos habitantes nunca sequer entraram naquelas terras, e imaginam que eles moram em barracos, sendo moram aqui há 26 anos, quando nestas terras só havia “mato e macega” (Diário de Campo).

Rosa conta sobre uma frase que ouvira de vizinhos, sobre alguém ter dito “ah vai namorar o fulano que é um acampado? então eu digo, sim! Porque eu acho que eu ensinei os outros também, a gente aprende a se defender, nós não somos acampados, nem sem terra, hoje nós temos terra e nós trabalhamos nela, já não estamos acampados, eu aprendi, mas ensinei muito. Até mesmo as pessoas daqui poderiam ter ocupado estas terras, porque estavam paradas, mas não ocuparam, então nós viemos” (Diário de Campo).

Além do processo de mudança e de habituação, os assentados depararam-se com um desafio de caráter ambiental, afinal a obtenção da terra estava garantida, mas eles precisavam trabalhar a terra e construir uma moradia, como tão enfaticamente nos coloca Rosa:

Quando nós chegamos, a terra aqui era pura capoeira e vassoural, nem dava pra enxergar se era boa para o plantio, nós não tivemos auxílio nenhum então a gente precisava trocar dias de serviço por horas de máquina, os vizinhos, quando nós chegamos se aproveitaram um pouco, exigiam três dias inteiros de serviço por uma hora de máquinas, não foi nada fácil na época (Diário de Campo).

O acolhimento dos vizinhos é retratado por algumas pesquisas, e estas falas reforçam tais tensões, quando a simples forma de obtenção da terra é responsável não somente pelo estranhamento, mas pelo distanciamento entre munícipes. O reconhecimento dos agricultores assentados foi moroso, porém hoje eles integram reconhecidamente o conjunto de agricultores e produtores do município. Este tempo entre a chegada e o reconhecimento deles enquanto agricultores que agora tinham terras nas quais morariam e produziriam, poderia ter sido amenizado com ações que facilitassem estes primeiros contatos com finalidade de uma integração mais rápida, por meio da proposição de uma ação política e pública na cobertura destas realidades agrícolas (Albuquerque, coelho & Vasconcelos, 2004).

Estes primeiros anos são lembrados como períodos de muita luta, inclusive para a sobrevivência da família:

Ao chegar estavam com os três filhos, a menino mais velho com dez anos, a do meio com cinco e a mais nova com quatro meses de idade. Foi uma época bastante difícil pois os únicos alimentos que tinham era feijão e arroz, alguns vizinhos disponibilizavam batatas para eles. Foi uma época de muita luta e mobilização (Diário de Campo).

Sobre a forma como o movimento se organizou para a divisão das terras adquiridas pelos agricultores:

Quando mudaram-se para Guabiju dividiram-se em glebas, cada um tinha um grupo de famílias, mas também cada um tinha seu barraco. Contam sobre como foi a divisão das terras após a liberação do Estado: dividiram toda a faixa de terras em lotes, cada grupo com quatro famílias participava do sorteio de cada uma das propriedades, “tiraram no papelzinho”, cada família foi distribuída conforme o sorteio das terras, respeitando os grupos, não houve escolha ou reclamação, foi estritamente por sorteio (Diário de campo).

Num contexto nacional a reforma agrária ganha maior difusão nos anos noventa, após o episódio em que membros do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foram mortos, fato que ecoou internacionalmente6, ocasionando renovações nas políticas dos assentamentos rurais.

Esta rede intersubjetiva de construção simbólica se dá através das experiências concretas das pessoas e tem no trabalho com a terra, sua expressão (Coutinho e Oliveira, 2017). Os sentidos advindos das relações com a terra são mais evidentes nas narrativas das mulheres que participaram do MST, isso se deve por: insistência no movimento, anos em que passaram ocupando fazendas e finalmente pelo gosto e importância da conquista de seu espaço e da possibilidade de produzirem e habitarem um lugar próprio.

O que sobressaiu nas conversas sobre o MST, foi vivência nos acampamentos:

Sobre a vida durante os acampamentos contam que era tudo muito bem organizado. Flávia lembra que na fazenda as mulheres tinham que lavar as roupas e como eram muitas famílias, precisavam chegar cedo nos tanques “pra poder se despachar cedo”, às quatro e meia da manhã apanhavam as roupas e iam para os tanques próximos ao rio, às vezes quando chegava, já tinha outras mulheres na fila, então era preciso aguardar, “às cincos horas da tarde quem tinha lavado roupa tinha, quem não tinha, ia embora sem lavar”, pois este era o horário dos homens tomarem banho no rio, logo, as mulheres não poderiam ficar lá, elas também tinham um horário reservado para o banho. Pergunto sobre a comida, ela me diz que cada família preparava a sua, então Pedro conta que tinha um amigo, suas famílias às vezes se reuniam para cozinhar. Enfatizaram que como eram muitas pessoas, precisava de muita organização,

6 O Massacre de Eldorado dos Carajás, ocorreu em abril de 1996, no estado do Pará, quando membros

que tudo era combinado nas reuniões e que logo que invadiam alguma propriedade, primeiro iam os homens e só depois as mulheres e as crianças. Nas invasões quem mais participava eram os homens, ao menos nos primeiros momentos (Diário de Campo).

Antônio Cândido (1964) reitera em seus estudos não a passividade, mas a resistência dos caipiras frente aos dispositivos de sujeição, econômicos ou políticos. Fortalecidos pelas relações de grupalidade e manutenção dos aspectos culturais tradicionais que garantem a permanência de características intrínsecas como as unidades familiares, relações estabelecidas com a comunidade, produção também para consumo próprio etc.

Também José Martins de Souza volta-se ao reconhecimento dos povos rurais, duramente buscado através de lutas por direitos e projetos sociais imanentes aos seus modos de vida enquanto sujeitos políticos. Destaca ainda a utilização da posse da terra enquanto instrumento político dos latifundiários, instrumento de poder que faz excluir os trabalhadores do campo ou mesmo submetê-los à formas de trabalhado injustas, e, como consequência, ainda afasta suas práticas culturais e tradicionais opondo-as ao modelo dominante difundido do que é entendido por progresso: o moderno e o lucrativo, quando unidos às ações estatais prevalecem, ferindo direitos de uma parcela notável da população.

A resistência é não somente a permanência, mas a combinação, a interação entre o moderno, se apropriado democraticamente ajusta-se ao tradicional, e não a um moderno cujo entendimento e utilização de tecnologias servem para esmagar estas populações rurais, impondo-se a elas. A resistência fala disto, de como o novo é apreendido, e como estas interações carregam práticas paradoxais na conformação das novas ruralidades.

Três aspectos marcantes na vida dos habitantes rurais: a propriedade da terra considerada patrimônio a ser preservado pela família (esta que dispõe da força de trabalho), enquanto coletivo que une-se para o desenvolvimento da propriedade e manutenção da continuidade das atividades. Os vínculos estabelecidos com o coletivo mais próximo, sejam os vizinhos ou comunidade, unindo vida e trabalho de forma impossível de dissociar. E então as relações com o município e com a cidade. (Wanderley & Favareto, 2013)

Esta "ruralidade" da agricultura familiar, que povoa o campo e anima sua vida social, se opõe, ao mesmo tempo, à relação absenteísta, despovoadora e predatória do espaço rural, praticada pela agricultura latifundiária, à visão "urbanocentrada" dominante na sociedade e à percepção do meio rural sem agricultores (Wanderley, M., 2000, p.14).