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5 Metodologia

5.1 Do tema ao campo

A construção: o manual de pesquisa ou a ilusão de controle

A metodologia prevista na fase de elaboração do projeto constituía-se por efetuar o contato com as trabalhadoras através do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do Município de Guabiju-RS para a coleta de informações sobre as trabalhadoras que desenvolvem suas atividades no âmbito rural deste município, cuja finalidade era a partir destas informações provenientes do Sindicado efetuar um mapeamento sobre as localidades onde residem e os tipos de produção efetuadas, acrescidas de outras informações e dados utilizados para contatá-las.

Posteriormente seria efetuado o contato com as trabalhadoras (prioritariamente pessoalmente, mas se necessário também por via telefônica), após faria um convite para um encontro na própria sede do Sindicato para expor a pesquisa, uma breve contextualização do pretendido e sobre o detalhamento do que seria realizado após.

O objetivo deste primeiro encontro seria a apresentação da pesquisa, de seus objetivos, de sua metodologia, eu me apresentaria explicitando o processo que me direcionou à pesquisa voltada para os modos de vida e trabalho delas, as mulheres rurais. Num primeiro momento pensei que embora o contato com algumas mulheres já existisse, a organização de um encontro seria importante para o esclarecimento dos procedimentos e cada uma das etapas, para a elucidação das dúvidas, enfim, um momento oficial onde elas seriam convidadas a participar da pesquisa, ressaltando a proposta principal: acompanhar seus cotidianos de trabalho.

A desconstrução: o abandono do manual de pesquisa ou angústia e felicidade do incontrolável

Porém, entre o planejamento e a efetiva estada em campo, o caminho da pesquisa foi desviado, pois ao adentrar esta realidade percebi que toda a formalidade acima apresentada escapava ao possível de ser realizado e escapava ao principal: não há linearidade no cotidiano, os atravessamentos constituem também novos métodos, novas inserções possíveis e necessárias.

O primeiro convite foi feito durante um encontro informal na casa de uma amiga, os seguintes foram combinados durante e após a minha participação num grupo de mulheres do município, chamado Sementes da Esperança, composto em sua maioria, por agricultoras; os contatos posteriores por indicações das mulheres as quais eu já havia visitado, por vezes alguma de suas vizinhas, amigas ou conhecidas. Mesmo as sugestões, eram feitas pensando em quais me receberiam e aceitariam participar, o que denota a preocupação e o empenho delas não somente comigo, mas com a execução da pesquisa.

Como parte da etnografia, além de visitar as propriedades destas trabalhadoras também optei por acompanhar as viagens e encontros promovidos pelo Sindicato, Emater e Prefeitura, órgãos cujos eventos organizados fossem referentes às questões do trabalho rural, afinal muitas das participantes da pesquisa também participam destes encontros, e é neste conviver e frequentar espaços que aos poucos fui me aproximando destas realidades.

Minhas primeiras observações no grupo das Sementes da Esperança já foram suficientes para que as participantes compreendessem meu papel ali, como observadora, não sei se necessariamente como pesquisadora, afinal ali eu era a filha da Lurdes e do Paulo que precisava fazer um trabalho. Por diversas vezes expliquei individualmente o porquê da minha presença constante tanto neste grupo quanto nos demais encontros promovidos pelos diferentes órgãos. Nas primeiras visitas às casas das mulheres eu também explicava a pesquisa, seus objetivos e o que significava o processo do mestrado, pois este era gerador de dúvidas, e a explicação era necessária tanto pelo prosseguimento da pesquisa, pelas considerações éticas e principalmente para que não fosse associado a um trabalho da escola ou da faculdade, afinal não o era. A proposta de apresentação da pesquisa primeiramente via Sindicato dos Trabalhadores Rurais não aconteceu, por alguns motivos que serão também base para discussões nos capítulos seguintes, dentre eles: a entidade não tem grupos fixos que acontecem, os encontros dos sócios restringem-se às reuniões da comissão principal da qual participam quinze membros, portanto não há a promoção de encontros, além da estreita vinculação entre a entidade e a Prefeitura, passível e geradora de negociações político partidárias das quais desde o início busquei me afastar, afinal nunca fora o propósito da pesquisa aprofundá-las.

Logo, optei num primeiro momento por falar diretamente com as mulheres e ouvir delas o que pensavam a respeito da proposta. As idas ao Sindicato ocorreram

somente durante o período em que o grupo das Sementes da Esperança ocupou uma das salas da instituição, anterior à sua migração para uma sala no CRAS (Centro de Referência e Assistência Social) do município.

Apesar desta mudança de planos ter provocado certa desestruturação do planejado, as percebi (após certo tempo) como favoráveis, afinal, com um período restrito de pesquisa de campo, talvez eu não tivesse o tempo necessário para o trabalho que a formação de grupos exige, além das negociações políticas e questões burocráticas nas quais eu esbarraria (ainda que mesmo não estando na sede eu pude perceber as tramas das entidades mesmo através das visitas individuais). As visitas e o apoio das mulheres me trouxeram novas questões e de certa forma as comprometeram de imediato na pesquisa, visto seu interesse em contribuir na seleção das demais participantes.

O olhar de surpresa com o tema de pesquisa, com o fato de uma psicóloga se interessar por estes temas, produziram também o entendimento de que alguém se interessava por elas, afinal desde o início deixei claro que minha intenção era ‘mostrar’ o quanto as mulheres rurais trabalham, mostrar suas rotinas repletas de diversos afazeres e imbuídas pelas diferenças de gênero. Este último aspecto demorou mais para ser esmiuçado durante as visitas, as relações de gênero não são discutidas, ao contrário, são causas de surpresa e semblantes de ‘acho que não entendi sua pergunta’, aos poucos conforme cada uma das mulheres falava sobre o tipo de trabalho que fazia, sobre o tipo de trabalho que os maridos, filhos ou irmãos faziam, então esta palavra ainda enigmática: gênero, começava a ganhar novas formas, cujos sentidos eram compreensíveis, o único entrave dizia respeito mais à terminologia do que a vivência deste no cotidiano.

As discussões sobre gênero tão presentes, e por vezes tão comuns para mim, tornaram-se uma pauta sofrida, durante as idas a campo, durante as conversas com as mulheres e a convivência com a sociedade em geral do município, pois esta discussão aparecia por meio das assimetrias presentes entre aquilo que é de responsabilidade dos homens e o que é de responsabilidade das mulheres. Numa das viagens com o grupo Sementes da Esperança para uma pequena comunidade onde se produz fitoterápicos, pude perceber finalmente o quanto através das palavras da coordenadora, aquelas mulheres se reconheciam em relações patriarcais, machistas e até abusivas, seja em seus casamentos, trabalho e relações familiares em geral.

Durante as visitas mais do que os focos nas questões de gênero, o que se sobressaía era o trabalho, o quanto as pessoas gostam de falar sobre ele e sobre as dificuldades advindas. Com base nestas primeiras informações, que perduraram durante todo o processo de campo, refleti sobre o quanto deveria insistir neste objetivo, as dúvidas fizeram com que eu pesasse diversas vezes sobre se mergulhava nesta problemática ou se precisaria redesenhar a pesquisa. Também a angústia acompanha uma pesquisa, a mesma que nos faz parar, nos faz retornar com modificações, inclusive na maneira de abordar certos assuntos. Percebi que este incômodo também me dizia algo e que precisava continuar, pois talvez ali estivesse o cerne do meu interesse, algo que me moveu, logo, o gênero continuou como um dos pilares, ao lado do trabalho, ambos nos cotidianos, ambos importantes demais para serem relegados.

A pesquisa como território do encontro, é também desencontro, é saltar do familiar para o desconhecido, fazendo-o por meio da suspensão das ideias e hipóteses já constituídas, é permitir outras relações, outros encontros, estes configurando-se também como micro lugares onde negociações cotidianas acontecem. Para estes espaços as pesquisas precisam se atentar, pensando o pesquisador também enquanto parte, produto e produtor que interage enquanto ator da realidade, modificando-a ou mantendo-a, conjuntamente a outros atores, de forma horizontal (Spink, 2008).

A etnografia é da ordem do encontro que trata do estranho e do familiar, do inusitado ao costumeiro, onde o tempo é mais do que uma medida cronológica, é uma vivência, seu fluir têm formas peculiares nas sociedades, não é da ordem da normatização, mesmo que sua apropriação o seja (Bosi, 1993), assim também o labor rural carrega um fazer cujo tempo presente é um tempo outro, sua medida está nas práticas arrastadas pelas gerações antecessoras, mas que se atualizam na realização do trabalho. Tempo e memória são acionados na lida com a terra, com os animais, com o trabalho vinculado ao território onde também se mora. Logo, mesmo que diversas observações já tenham sido realizadas devido a minha estada na região há algum tempo, o tempo previsto destinado à pesquisa de campo se estendeu de setembro de 2017 a março de 2018.

As etapas seguidas durante a pesquisa após mudanças e negociações foram: o contato introdutório a partir do qual se explicitou a pesquisa, com seus objetivos e métodos e então a proposta para a aceitação ou não de cada uma das participantes. Nesta mesma visita inicial foi apresentado o Termo de Consentimento Livre e

Esclarecido, de forma a contemplar não somente os procedimentos éticos, mas responder as dúvidas que surgiram.

Adentrando nos procedimentos éticos e ressaltando o caráter de confiança entre pesquisadora e participantes, essencial e viabilizador da pesquisa etnográfica, foi preciso garantir o não prejuízo às participantes da pesquisa, sendo esta, um procedimento, sobretudo, dialógico. Durante todo o percurso manteve-se a alteridade, o respeito ao outro e ao mesmo tempo a abertura ao diálogo entre a pesquisadora e as participantes, num processo recíproco. É por meio destas negociações cotidianas, no campo, que a pesquisa se instaura, faz corpo e acontece. Logo, foi indispensável refletir inclusive sobre a estruturação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE, Apêndice A) de maneira que sua redação fosse elaborada de forma a garantir o acesso ao seu conteúdo para as participantes, explicitando de forma minuciosa a primazia pelo sigilo, os possíveis benefícios decorrentes da pesquisa assim como a alternativa de desistência em quaisquer etapas do processo, assegurado pela pesquisadora e pela instituição, por ela representada.

No caso de aceite foi novamente explicitado que o objetivo seria participar do dia-a-dia de trabalho delas, e então era combinada a próxima visita, quando isso não acontecia durante a primeira visita, as combinações era efetuadas por meio de telefone ou mensagens via aplicativo de mensagens instantâneas; após as fases cruciais de visitação e participação, retornei para a realização de entrevistas semiestruturadas (Apêndice B), no sentido de contemplar nuances que poderiam ter se passado no cotidiano sem a devida apropriação, buscando vincular os fatores psicossociais acerca do ser mulher trabalhadora na agricultura familiar. O roteiro de entrevista elaborado foi inspirado num roteiro já existente cuja pesquisa também tratou das relações entre trabalho e gênero (Langbecker, 2016).

Após a vivência de campo e dispondo das descrições densas foi feito o retorno das informações às participantes através do compartilhamento das anotações proveniente do processo de descrições e transcrições, para fins de confrontação, permitindo a avaliação da pertinência da inserção das informações por elas disponibilizadas. Devido a quantidade de material produzido, esta devolução aconteceu em forma de eixos temáticos, etapa esta que também produziu novos materiais e descarte daquilo reconhecido como dispensável.

Posteriormente, foi elaborada a combinação entre a empiria, como fonte o diário de campo e as entrevistas embasadas pelas leituras da Psicologia Social do

Trabalho afim de apreender os sentidos do trabalho para estas mulheres por meio das relações sociais de gênero em seus cotidianos.

Se os objetivos giram em torno de conhecer as relações entre trabalho e gênero e os sentidos atribuídos pelas mulheres que o realizam, abarcando as repercussões psicossociais que daí derivam, é preciso mergulhar nestes cotidianos, tratá-los como lugares de produção de sentidos, e não como o trivial que ocorre à parte dos demais acontecimentos, pois é no cotidiano do trabalho que ele acontece, que é planejado e modificado.

Pesquisar no cotidiano destas mulheres é entender que neste espaço onde se trabalha, se produz vida, se produz conhecimentos que modificam não apenas o ambiente, o executor, mas que influem em todas as esferas da vida, deste território familiar, social, produtor de mundo e de sentidos compartilhados.

É apostar numa pesquisa que também se dispõe a alterar-se, seguir as modulações da realidade que ali se constroem, estar aberto para operar informações que chegam confusas e se possível, amarrá-las à outras, costurar entendimentos, formar teias e verificá-las através de movimentos distintos. É dispor-se a acompanhar as ações e relações que constroem a realidade e os modos de viver. “O cotidiano mundano, não é um vazio de restos aleatoriamente espalhados pelo chão mas, ao contrário, é o lugar onde a gente se reconhece como gente no sentido comunicativo” (Spink, 1996, p.8).

Logo, como olhar para o trabalho, se não por ele se fazendo, acontecendo? O encontro do trabalhador com seu trabalho possibilita o encontro do pesquisador com o trabalhador, é neste meio que se intenta a produção de pesquisa, através tanto da observação quanto da conversação, no intuito de acessar a produção de sentidos se fazendo, no acionamento do trabalho, no momento de revisitar o trabalho por meio do olhar do próprio trabalhador sobre sua atividade, e no momento em que ele narra seus processos. É a tentativa de acessar o trabalho em sua duração.