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7 Das mulheres que conheci

7.6 Uma pequena história de Flávia

Conheci dona Flávia num encontro do Grupo das Sementes destinado à produção de massas e biscoitos, em seguida descobri que ela era vizinha da Rosa, a qual eu já havia visitado, logo pensei em conhecer sua história e para a minha felicidade, ela aceitou contá-la.

A trajetória dela começa em Ronda Alta, onde nasceu, filha de pais agricultores, teve contato com trabalho precocemente, tendo aprendido muitas das técnicas com sua mãe, ela conta:

Desde muito pequena, com cinco anos a gente já tava ajudando, com oito anos eu já tirava leite, e agora essas coisas que a gente aprendeu, vão se terminando né, a piazada não quer mais saber, igual assador de carne, hoje em dia é difícil achar quem saiba assar, foi se perdendo, e é uma pena, porque alguém precisa saber.

Mais tarde entra para o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, junto com o marido, e por sete anos ocuparam uma fazenda em Parobé, após a descoberta das terras em Guabiju e através das negociações dos ‘cabeças do grupo’, que investigavam onde estavam as terras sem utilização, vieram para cá, onde também ficaram acampados aguardando a liberação das terras por um período de três meses. Primeiro conquistaram 70% da área, em seguida, 100% da área, que era propriedade do Estado.

Dona Flávia tem duas filhas e um filho, as meninas saíram para trabalhar na cidade, então atualmente residem e trabalham na propriedade ela, o marido e o filho. Têm 55 anos, e moram no município há 25 anos. É uma mulher séria, mas que gosta muito de conversar, sua disposição é visível

Hoje visitei a casa da dona Flávia, vizinha e amiga de Rosa, a visita foi mediada por Rosa, havíamos combinado de ir juntas, porém Rosa tinha um compromisso em Guabiju, então fui sozinha (...)

Logo na entrada da propriedade foi possível ver uma pequena plantação de pepinos, todos envarados pois, segundo ela, na vertical eles não sujam. Também uma plantação de amendoins e de morangas japonesas, no outro lado da estrada, num canto onde não havia soja plantada, uma plantação de aipim.

À beira da estrada alguns pneus com folhagens e flores plantadas em seu interior, mais próximo à casa algumas árvores (...)

Ao chegar cumprimentei aos três: dona Flávia, seu marido e o filho, fomos até a cozinha onde Flávia logo me ofereceu uma cadeira para sentar, ela, o filho e o marido sentaram-se também, enquanto isso, nos meus pés, Nina pedia carinho, uma cachorrinha muito bonita (Diário de Campo).

Atualmente a família cultiva soja, milho e miudezas (pepinos, batata doce, arroz, pipoca, chuchu, morangos e mandioca), tem duas vacas das quais tiram o leite para o consumo próprio, bois de engorda, porcos, codornas e galinhas.

Flávia é uma batalhadora, e isso foi se confirmando a cada história que ela me contava sobre sua vida, sobre todos os desafios que enfrentou, mas principalmente sobre o quanto nenhum deles foi capaz de fazê-la desistir de seus objetivos. A forma como fala da terra, desta relação entre produzir e consumir, do cuidado com sua família e do trabalho sempre priorizado, denotam uma mulher persistente. Suas habilidades são inúmeras e tentarei nas próximas páginas, contá-las com cuidado e respeito pela sua história.

Das andanças pela propriedade

O jardim de Flávia tem um quiosque na parte central, muito caprichado, com uma mesa, cadeiras e várias árvores próximas da cerca que o separa da lavoura de soja, bem ao lado da casa, várias folhagens e flores, também presentes na área da entrada, dentre as quais orquídeas e flores azuis. Do outro lado alguns pinheiros também tangenciam a cerca, descemos a escada e saíamos do pátio, primeiro fomos até o chiqueiro, ela me mostrou a porca pronta para a carneação.

Depois do chiqueiro ela me mostrou um galpão onde ficam as ferramentas, ração, algumas máquinas menores, onde se põe tudo, disse que tinha organizado tudo na semana anterior, pois ‘a gente vai jogando as coisas quando vê tá uma bagunça’, durante o passeio também os cachorros nos acompanhavam. Quando abriu o portão de um cercadinho, entramos para o terreno das frutíferas, vários pequenos pés de laranjeira e limão enfileirados, pedi para fotografar, ela me autorizou, passamos por um outro galpão onde ficam as galinhas chocadeiras. Flávia foi até dois ninhos que são caixas de madeira, ou vasilhas cortadas ao meio, forradas com pastagem seca, puxou as galinhas do ninho, retirou os ovos, e as devolveu, dizendo que produzem tanto

que ela não “vence” ocupar os ovos, então troca com a vizinha, chega a recolher 18 ovos por dia. Ao lado pude ver armazenada uma grande quantidade de lenha, brinquei “já estão preparados pro próximo inverno com tanta lenha!”, ela respondeu que sim, mas que essa quantidade ainda era insuficiente, pois utilizam bastante para o fogão à lenha. Seguimos até o fechadinho das codornas que produzem ovos diariamente, ao lado estava uma vasilha repleta de ovinhos e muitos outros espalhados, então Flávia me mostrou a ferramenta que ela desenvolveu para colhê-los, pegou uma ripa de madeira e na ponta colocou uma colher de sopa, fixou bem a colher com uma fita de tecido, logo, na hora da colheita não precisa se esticar, basta inserir a ferramenta pela pequena porta da gaiola. Achei sua ideia incrível, afinal, fora muito criativa.

Enquanto estávamos lá, passou um peru, e logo as galinhas se reuniram, pois seu o marido de Flávia foi tratá-las com milho, jogava o milho no terreiro [muito bem varrido] e elas corriam para catá-los, ele também nos acompanhou, passamos um outro cercado, outro portãozinho, e fomos até o parreiral, já tínhamos dado a volta na casa, ali ela me mostrou pessegueiros que não estavam produzindo, e alertou que isso pode ser por causa de um veneno utilizado na soja, passamos por baixo das parreiras, e ao lado da horta, mas na parte não fechada, uma outra horta com uma canteiro de moranguinhos, batata doce, espinafre, ao fundo uma escada de madeira, e nos degraus as orquídeas, Flávia me conta que não tem jeito delas florescerem, então arrumou esse lugarzinho pra elas, ao lado alguns pés de feijão, já secos, ela me contou que já tinham produzido e ela havia guardado o excedente.

Elogiei ela, disse ‘Flávia você disse que não tinha muita coisa por causa do braço, mas olha tudo que você tem, nossa’, ela riu, e ele perguntou se eu gostaria de ver o arroz do seco, que eles plantam, eu disse que sim, então lá fomos, após passarmos por uma cerca sobre um cepo. Agora estávamos na entrada da propriedade, na beirada os pneus com as flores, um gramado diferente, de jardim, as dálias vermelhas e laranjadas, do outro lado no canto da lavoura, amendoins e morangas plantados, além dos pepinos na vertical, seu Pedro mostra a pedra enorme que tiraram do escavo da casa, dizendo ‘e tinha de maiores, essa não foi fácil trazer até aqui’.

Seguimos pela estrada até a lavoura, uma parte com aipins e no meio do milho, mais moranguinhas plantadas, logo apareceu uma vegetação que parecia um tipo de pastagem, ele me disse que era o arroz e que este tinha nascido “por conta”, só com os grãos que caíram durante a última colheita, tirei algumas fotos, enquanto me contavam sobre o arroz que desenvolvia-se semelhante ao trigo, a colheita é feita à mão com foice, perguntei se era muito diferente do outro, Flávia disse que sim, “esse não tem que escolher igual o feijão e não tem conservante igual o comprado”. Quando voltávamos, a paisagem mostrava grandes propriedades de terra, Flávia apontou e disse: “Tá vendo essas

lavouras ali? São de dois donos só, eles nem sabem o que tem ali, não tem nenhuma família pra produzir, pra aproveitar, olha que desperdício e que injusto”. As terras desta região são muito semelhantes aos campos de cima da serra, a paisagem é longínqua.

Um Sonho

Acho que não tem, meu objetivo era esse aí pegar a terra, ganhar a terra...

Se existe, em meio a toda singularidade destas mulheres, algo que as aproxima é a força, a força para superar todos os e obstáculos, a força de protagonizar as suas vidas. São desassossegadas no agenciamento de seus cotidianos produzem perfurações, constroem caminhos possíveis para se afirmar. E talvez somente por apresentarem estas características tenham permitido que eu pudesse me aproximar delas.