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3 Agricultura Familiar

3.1 Teorizações da categoria

Afinal quando e como se dá a ascensão da agricultura familiar no cenário nacional? Alguns autores, dentre eles Picolotto (2014), apontam três vertentes de eclosão da categoria: as reivindicações dos próprios atores do meio agrícola que foram demandas políticas e que no ano de 1990 se apropriaram desta denominação, após isto e de forma complementar, acontece o reconhecimento institucional do Estado que se volta ao setor por meio da criação de leis e políticas públicas específicas. As mudanças vêm acompanhadas do entendimento da fundamentalidade tanto econômica quanto social da categoria para o país, além do abandono gradativo de uma certa valoração errônea que a veiculava ao passado (Picolotto, 2014).

Quando a categoria ‘agricultura familiar’, imersa e produzida a partir da diversidade destas pequenas propriedades produtoras, começa a ser utilizada há principalmente uma possibilidade de redirecionamento para as pesquisas realizadas até então, pois se anteriormente avaliava-se que a entrada do capital no contexto agrícola estava produzindo um novo proletariado4, era possível visualizar outras questões para além da precariedade, mas sua crucial importância na produção alimentícia.

“Desloca-se da imagem bucólica, idílica de um rural como um paraíso idealizado, e, também, não se associa à imagem do lugar distante, rústico, sinônimo de atraso. Estabelece-se assim, um rompimento com o rural como homogêneo, ao passo que refuta a ideia de sua definição como negação do “urbano” (Nogueira & Toneli, 2016, p.116).

Dentre os pesquisadores da área destacam-se as teorizações de Ricardo Abramovay (faz a diferenciação entre o modelo camponês e a agricultura familiar moderna), e José Eli da Veiga (1991), ambos trouxeram um novo paradigma a ser pensado, e desafiaram dois postulados prevalecentes: o marxista (Lênin), por meio da ideia de que a entrada do capital no setor agrícola destruiria o caráter produtivo familiar sendo substituído pelo trabalho assalariado no setor; e o que via uma resistência do modelo camponês ao modo capitalista (Chayanov). Em resposta a estas teorias, de

forma sucinta, classificam os agricultores familiares como aqueles que se adaptaram às exigências dos mercados, em contrapartida dos que não conseguiram. O caráter familiar, teria sido aproveitado pelo capital para a formação da empresa familiar, detentora de certas vantagens socioeconômicas. Portanto, esta seria uma categoria gerada a partir das intervenções do Estado.

Em contrapartida, outros pesquisadores intensificam a discussão acerca da enorme diversidade existente no interior da categoria agricultura familiar em diferentes países, ou seja, a existência tanto de modos de produzir calcados na categoria camponesa, quanto produções inteiramente calcadas na utilização de tecnologias e mercados, sendo o ponto de encontro a gestão familiar, mesmo em meio a heterogeneidade existente e possível neste setor (Wanderley, 2003; Lamarche, 1993; Favareto, 2006).

Numa perspectiva brasileira interessa não mais abordar a sobrevivência ou não do campesinato, afinal suas marcas são inegáveis, mas centra-se em como estas marcas continuam operando na sociedade (Wanderley, 2000).

Tal abordagem assume a importância da tríade família-produção-trabalho, e suas consequências socioeconômicas. Difere das demais acima apresentadas na medida em que afirma o agricultor não enquanto um personagem novo na sociedade contemporânea, que se configura por intermédio da ação do Estado e de suas políticas públicas, mas sim enquanto um personagem que mantém, e ao mesmo tempo faz algumas rupturas com características do campesinato, que se utiliza de tecnologias modernas, por exemplo, mas preserva certos modos de viver e trabalhar apoiados em tradições. Tomar a agricultura familiar por esta perspectiva significa falar de sujeitos detentores de uma história a qual construíram e a constroem cotidianamente e não a partir do forjamento de uma história por via Estatal, como propõem alguns teóricos.

Ao propor algumas caraterísticas tanto de ruptura quanto de continuidade Wanderley (2003) destaca: mesmo com a produção destinada aos mercados ainda se pratica a diversificação na produção para subsistência (policultura); os rendimentos indivisíveis ainda mostram-se comuns mesmo que gerem conflitos internos no ambiente familiar, mas possibilitam investimentos e pagamentos nas aquisições coletiva; embora seja facilitado o acesso aos conhecimentos técnicos e cursos de formação, os saberes tradicionais e geracionais operam no trabalho e nas representações deste. Estes elementos têm um forte caráter de resistência, ao tempo em que se adapta também resiste e modifica interferências tendentes à certa

dominação, seja tecnológica, de cultura hegemônica adepta às padronizações, entre outras.

Existe o trabalho realizado atualmente, e também o realizado pelas gerações antecessoras dos agricultores, após é instaurada a produção capitalista, portanto, quais desafios que este modo enfrenta ao tentar se inserir, por exemplo, nas propriedades agrícolas familiares, com seus modos de gestão e produção intrínsecos. A terra entendida como patrimônio é também território de trabalho e de convivência familiar, aqui o trabalho se erige de forma a organizar os modos de vida e estruturar a própria arquitetura familiar, na condição de trabalhadores, mas livres na medida em que gerenciam o próprio fazer (Woortmann, K. 1990).

Já Navarro (2010) destaca a utilização da categoria ‘agricultura familiar’ como função político-ideológica (devido a insuficiência de base teórica que subsidie a legislação) no sentido de promoção de políticas visando investir em segmentos da população comumente e historicamente negligenciadas. Sua argumentação se sustenta na proposição de que a categoria ‘agricultura familiar’ em substituição a terminologia ‘pequenos produtores’ começa a ser utilizada após os anos noventa, após o Tratado de Assunção e da entrada ao Mercosul, por estímulo das ações principalmente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), resultando assim na Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar (FETRAF).

De acordo com Navarro em dois pontos: na medida em que ele demonstra que enquanto categoria de estudo, a agricultura familiar é recente e, portanto, carece de problematizações devido a não conseguir abranger as multiplicidades das áreas rurais brasileiras e de suas populações, de organização do trabalho e modos de produção, ou seja, quando se refere à ‘agricultura familiar’ é preciso reafirmar as diferenças entre as realidades agrárias brasileiras, e para além das próprias singularidades regionais. Pois mesmo mantido o caráter de gestão familiar o cotidiano socioeconômico é múltiplo conforme as regiões e no interior delas. E também concorda-se com o autor em relação a necessidade de pensar o quanto a institucionalização de políticas trouxera importantes avanços para este setor pouco valorizado ou negligenciado, mas que atualmente representa entraves para o próprio aperfeiçoamento.

Entretanto tal pesquisa se subsidiará na abordagem proposta por Wanderley (2003), trazendo as dinâmicas existentes entre as vivências calcadas no campesinato, mas combinadas e transformadas pelas inserções das demandas do capital que acessam

e modificam os setores agrícolas, por exemplo, a modernização e integração aos mercados.

“O meio rural é entendido, neste texto, como um espaço suporte de relações sociais específicas, que se constroem, se reproduzem ou se redefinem sobre este mesmo espaço e que, portanto, o conformam enquanto um singular espaço de vida. Para compreendê-lo é preciso considerar sua dinâmica social interna, isto é, aquela que resulta da maior ou menor intensidade e complexidade da vida local e, por outro lado, as formas de sua inserção em uma dinâmica social "externa" (Wanderley, 2000, p.20).

Destaca-se a concomitância de abordagens bastante distintas relativas a conceitualização da agricultura familiar no Brasil. Algumas apontam para a confluência iniciada a partir da institucionalização de uma política, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), que estimulou a aglutinação de toda uma população agrícola com características peculiares, numa mesma categoria com características fixadas na legislação. Outras abordagens conferem estatutos diferentes destes atores sociais, visualizam diferentes empreendimentos no setor agrícola, os produtores que adaptam suas produções ao mercado, e os que não o fazem. Logo, as políticas aqui teriam o papel de desenvolvimento destes segmentos, uma vez que o agricultor, por intermédio, justamente das ações do Estado e suas políticas tornou-se um ator da agricultura moderna.

Esta breve retomada é capaz de suscitar questionamentos, afinal, é possível pensar em perfis destes atores sociais cujo trabalho se dá no ambiente rural, em toda sua diversidade? Já que as discussões se delineiam mediante a preservação ou não do caráter campesino, sustentadas por um fazer combinado a elementos tradicionais, cujas práticas de trabalho respondem a modos de específicos, geracionais, etc., ou se estes atores incorporaram certos requisitos e atendem à modernização e exigências produtivas, inclusive a partir e sob intervenção do Estado?

Reafirma-se que não se tratam de categorias fixadas, uma vez que constituem- se híbridas. Por isso é importante conhecer cotidianos de vida e trabalho, sempre contextuais para então pensar o quanto as transformações mercadológicas, as ações políticas impactam nas tradições, e na própria história da cultura agrícola. Trata-se aqui de um meio, de algo que se transforma e cuja intenção não é separar, mas perceber

as nuances, como estas dinâmicas se misturam e compõem modos de vida e trabalho. Afinal o rural não está à margem, ele participa igualmente das engrenagens sociais (Brandão, 2007; Tedesco, 2013).

A agricultura camponesa é composta pelo gerenciamento e produção familiar, cuja organização reflete os modos de vida, relações familiares, de trabalho e patrimônio. A produção pode ser destinada a venda e/ou ao próprio consumo familiar, e a força de trabalho advém dos membros da família. A introdução das tecnologias modifica também a forma como os saberes são transmitidos e como são utilizados, afinal convivem com outras demandas, por exemplo, uma noção de tempo outra. Logo, a autonomia no exercício do trabalho já não se configura deste modo, uma vez que as relações de produção inserem certa prescrição nas atividades.

O entendimento de agricultura familiar aqui utilizado pretende destacar tanto os pontos que rompem com as cargas tradicionais e dão passagem a certa modernização agrícola, quanto aos pontos de continuidade entre o campesinato e a agricultura familiar.

Entende-se que a construção desta categoria insere-se sob forma de mobilização de forças políticas e construção de sentidos, cuja função é visibilizar aspectos do âmbito rural. Afinal fala-se de processos e de histórias que se entrecruzam, e não de linearidade históricas, pois se assim o fosse estaríamos negligenciando toda uma construção cultural do ofício rural, atribuindo uma passividade às ações do Estado, quando este é um cenário múltiplo e que comporta saberes tradicionais e saberes modernos. Segundo Wanderley “o que concede aos agricultores modernos a condição de atores sociais, construtores e parceiros de um projeto de sociedade – e não simplesmente objetos de intervenção do Estado, sem história – é precisamente a dupla referência à continuidade e à ruptura” (p.47).

Quando existe uma categoria com a qual os trabalhadores, anteriormente conhecidos enquanto pequenos produtores, podem se identificar há a emergência também de processos cognitivos, de reconhecimentos e de possibilidade de se afirmar enquanto categoria, passível e fortalecida para reivindicar. É estratégica e produz certa condição de possibilidade para outros modos de afirmar-se. É a identidade de um novo sujeito social, operado por processos cognitivos que produzem processos de subjetivação.