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13.1 O tempo que é clima

Se tem sol, chuva, geada, o que for, a gente tem que ir colher. É a família que faz a colheita sem a ajuda de nenhum “peão” (Diário de Campo, Neide).

O tempo é assunto sempre em voga no dia-a-dia rural, o popular “será que chove?” não é simplesmente um mantenedor de diálogo, mas é, primeiramente uma preocupação. As chuvas garantem o crescimento das plantas, assim como podem prejudicá-las quando em excesso. A decisão sobre as tarefas a serem executadas são alteradas conforme o ritmo das águas, nos dias de chuva algumas atividades são suspensas, logicamente não as imprescindíveis, como é o caso da ordenha das vacas.

Nestes dias o trabalho é principalmente transferido para os locais de abrigo, as mulheres ocupam este tempo (que não significa tempo livre) para fazer artesanato, também massas, pães, cucas, bolachas, etc., aliás, estes são alimentos que raramente são comprados pelas participantes.

Nos dias de calor intenso o sofrimento provocado não é direcionado só às pessoas, mas também aos animais, a percepção do quanto sofrem nestes dias é assunto comum.

Quando o sol tá muito quente que a gente tem que ir, daí tu sofre bastante na roça, agora, quando o dia tá bom pra mim não tem dificuldade nenhuma, pra mim é ótimo. (Inês)

Comentávamos sobre o tempo, enquanto uma cachorra filhote, muito dócil, brincava com meus pés, mordiscava e puxava os cadarços do meu calçado. Hoje foi um dia muito quente, de sol intenso, Inês disse que se estivesse na época da colheita dos brócolis, com sol ou com chuva eles teriam de ir para a roça efetuar a colheita, afinal de um dia para o outro o produto já fica amarelado, e nestas condições os compradores recusam. “Se você tivesse vindo naquela semana ia ver como a gente faz pra colher” (Diário de Campo).

Já nos dias de chuva, as atividades são realizadas em meio a condições nem sempre favoráveis, como no caso da lama acumulada. Numa conversa Mariana conta sobre a necessidade do investimento no galpão para a ordenha das vacas.

Pudemos ver as máquinas trabalhando numa terraplanagem. Ela contava sobre o planejamento de construir um galpão para o confinamento das vacas que ficariam semiconfinadas, o que significa que deixarão as vacas no pasto fechando-as somente nos dias de chuva e frio intenso. O galpão proporciona o conforto necessário tanto para os animais quanto para quem trabalha na ordenha, afinal, o gado solto faz barro, o barro judia os úberes e pode adoecer as vacas, além da questão da higiene pela qual o produtor ganha um ou dois centavos a mais por litro de leite vendido (Diário de campo).

A cena seguinte é do ambiente da lavoura de pequena produção para o consumo:

Descemos até a lavoura na qual Jorge capinava, chegando lá fiquei surpresa de como as plantas já estavam crescidas, os feijões, aipins e saladas, então Jorge comentou sobre o sol e a falta de chuva, afinal, já faz quinze dias que não chove por aqui, já se nota as plantações sofrendo, nas lavouras de milho é visível as folhas se enrolando e o caule rente ao chão amarelando, também as miudezas estão sofrendo, ainda que ele tenha uma caixa d’água no meio da lavoura e uma mangueira onde pode irrigar um pouco por dia. Jorge conta que não está fácil, o tempo não dá trégua para as plantações, que encaminhou um projeto de irrigação, pois o Rio da Prata passa nas suas terras e tem boa quantidade de água para irrigar, porém, mesmo com o projeto aprovado o governo não liberou verba pra este tipo de investimento. Jorge estava com um chapéu de palha, enxada na mão, no rosto o suor escorrendo, então aquilo que dizia estava ali, materializado na minha frente “nós trabalhamos lá para os de cima né, se continuar assim daqui um tempo não se tem mais o que fazer na roça, sem chuva, sem irrigação”. Jorge se orgulha bastante ao dizer que trabalha nas miudezas sem veneno, e para espantar os bichinhos usa vaselina. Comentei que aqui os orgânicos não são tão valorizados quanto nas cidades maiores, ele concordou comigo...

Precisei deixar esta conversa pois Rosa me aguardava pra que eu conhecesse o rio, ao chegarmos ela quis me levar até o meio dele, Rosa foi na frente e eu tentando pisar nos mesmos lugares que ela para não escorregar no limo das pedras e cair, a água estava fresca, quase fria demais para o dia escaldante que fazia, os três cachorros nos acompanharam e também aproveitaram para se refrescar no rio. Rosa me indicou que eu não tirasse os chinelos, pois assim ficaria mais firme, ao chegarmos no meio do rio ela contou que logo que chegaram nestas terras, ela junto a um grupo de pessoas colhiam batatas nas terras de um vizinho e para isso precisavam atravessar o rio todos os dias, para ir e voltar, mas que todo o dia era um festa. Elogiei muito o lugar, o rio é grande e bonito, devido a sua base ser um grande lajeado torna-se seguro, ela

acrescentou que mais acima tem um outro lugar que é melhor ainda para tomar banho, porém, deixamos essa visita para um outro dia (Diário de Campo).

A jornada de trabalho não é restrita a um número x de horas, se faz o que precisa ser feito. Diferente dos trabalhos urbanos, o rural tem uma carga horária diferenciada, a jornada é estendida para além das oito horas diárias, é claro que nestas conjunturas o tempo tem uma medição própria que tem a ver, principalmente, com o clima, na decisão sobre quais atividades serão ou não executadas. Mas é neste ponto, justamente quando os agricultores têm relações comerciais para seus produtos, que este tempo que seria decidido por eles, não o é, pois o comércio impõe-lhes prazos.

Há o choque entre tempos, os tempos próprios do rural, e os tempos dos comércios. Quanto às vendas, impera o pedido dos compradores, então um tempo x de horas resulta num trabalho dobrado se comparado aos demais dias onde podem decidir por si a distribuição das tarefas e horas necessárias para a sua realização. Uma redução formal do horário do trabalho pode significar um aumento real do tempo de trabalho para determinada tarefa (Antunes, 2009).

Outra observação pertinente é sobre a regulação destas temporalidades, não presenciei preocupações das agricultoras com os relógios, o passar do tempo de um dia é medido mais pelas atividades que precisam ser realizadas (algumas sequencialmente, como nos casos em que há atividades de agricultura, pecuária e embalagem de produtos), e pelas características climáticas do dia, por exemplo, o acordar antes do sol nascer. O tempo medido pelo exterior é somente àquele exigido quando das relações comerciais e compromissos nas cidades.

Conversamos sobre o tempo, sobre o quanto o plantio nas lavouras depende tantos das chuvas quanto do sol, perguntei se eles além do leite também plantavam, ela respondeu afirmativamente, que tiravam leite, tinham lavouras de milho para a produção da silagem (que é o trato do gado leiteiro), e também plantavam soja. Enfatizou a garantia que o leite proporciona no final do mês, pois, mesmo recebendo pouco, era um salário garantido, diferente das lavouras nas quais tempo de espera e o tempo climático atuam conjuntamente, além das condições exigidas na negociação dos preços quando o produto já está estocado (Diário de Campo, Neuza)

Sobre as minhas vivências climáticas eu senti muito frio e muito calor, a seguir relato uma cena do diário de campo “paramos pra conversar, o sol estava bem quente,

quando coloquei as mãos nas costas senti que estavam frias, é engraçado, de tanto calor eu sentia até arrepios.”

Ainda sobre as temporalidades houve uma manhã na qual acompanhei uma sequências de atividades diferentes, depois de ter chegado bem cedo na casa da participante, num breve momento, àqueles em que ‘nada’ acontece, olhei para o meu celular para ver a hora, afinal estava me sentindo bastante cansada, entre o olhar para a hora despreocupadamente e pensar que logo almoçaríamos, houve a surpresa do relógio me mostrar que era ainda 09:30 da manhã.

Com a invenção do relógio fora estabelecida uma relação diferenciada das pessoas com o tempo, esta tecnologia uma vez empregada pelo capital tornou-se fundamental, permitindo a administração não somente por meio da medição do tempo, mas desta medição através do controle dos corpos. Porém no âmbito rural o tempo supera um sentido cronológico pois opera conforme diretrizes diversas.

O tempo de espera entre a semente e o fruto, o tempo de aprender e de ensinar aos filhos, o tempo da chuva e o tempo do sol, o tempo da memória e o tempo da narrativa que a reconstrói. Um e outro como fluxo e não como simultaneidade, como capaz de abranger a experiência e o alargamento da potência de agir. Pesquisar num tempo outro é transversalizar, produzir estranhamentos e condições que permitam ao próprio pesquisador acionar os vários planos possíveis para a compreensão de determinados processos e a pesquisa enquanto encontro, cria e produz outras subjetividades e estas agenciam ao tempo em que são elas também agenciamentos.

As noções de sucessão, continuidade, mudança, memória e criação participam de uma multiplicidade de fluxos e não apartam-se entre episódios físicos ou psicológicos, dizem de um tempo real que é subjetivo e acessado através da memória. A duração é de uma temporalidade parte de certa mediação dependente das maneiras como nos relacionamos com alguns episódios (Bergson, 2006).

13.2 Trabalho e adoecimento

A região serrana do RS, tem um inverno bastante rigoroso, além do verão ser também marcado pelo calor intenso, independente das temperaturas em ambas as situações, o trabalho rural precisa ser feito, trazendo marcas nos corpos dos trabalhadores.

As cargas de trabalho enfrentadas cotidianamente incluem as cargas físicas, psíquicas, químicas, fisiológicas e mecânicas, e são estas que determinam os desgastes por meio dos processos de trabalho rurais, partindo da noção biopsíquica de tais relações (Laurell & Noriega, 1989). Esta passagem de uma lida com um tempo característico, é lentamente modificada para a manutenção de um tempo outro, que é imposto pelo capital.

Não é comum o uso de equipamentos de proteção individual. Por exemplo, na passagem dos agrotóxicos nem sempre utilizam máscaras ou roupas adequadas, somente chapéus ou bonés. Quanto a exposição solar também não é comum o uso de protetores. Além das condições climáticas, já apresentadas. Mesmo categorizados, os fatores agem de forma conjunta, numa interação entre ambiente de trabalho, atividades, trabalhador e sociedade. E esta dinâmica, por sua complexidade exige análises detalhadas para o planejamento de ações em saúde do trabalhador rural.

Nos trabalhos em que há repetição dos movimentos, como na embalagem de brócolis, estes acabam provocando dores, e também os demais trabalhos como a lida com o leite, ainda que não sejam exatamente repetitivos devido às diversas manobras que precisam ser feitas, sempre passíveis ao inesperado e, portanto, ao improviso. São trabalhos que exigem a força física (carpido, plantio, cuidado e colheita) que traduzida nos corpos torna-se: dor na coluna, e após alguns anos, desgaste, como relatado pelas pessoas mais idosas destas famílias.

Dos relatos ouvidos durante a pesquisa, mesmo a parte dos objetivos, precisam ser mencionados os adoecimentos, dentre os quais: um acidente de trabalho durante a colheita de milho, quando uma das participantes teve um órgão perfurado por uma ferpa; outra tem desgaste de osso e uma alergia na pele que é potencializada quando em contato com o sol; as frequentes dores nas pernas relatadas, os tendões dos braços rompidos, o que as impede de carregar peso, entre outros.

Em relação ao sofrimento psíquico, soube que algumas pessoas tinham diagnóstico de depressão (pelo menos uma pessoa em cada uma das famílias visitadas), e/ou eram nervosas, o que me fez questionar a saúde pública local e as negligências em relação a saúde das populações rurais.

O que presenciei durante as visitas foram pessoas que gostam de conversar, todos os integrantes da família, falam com entusiasmo, contam suas vidas, seus trabalhos, seus sofrimentos, mas não encontram profissionais que os escutem, em suas necessidades e dificuldades, seja na vida ou no trabalho.