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Sucessão Familiar: ascendentes e descendentes

11 Família

11.1 Sucessão Familiar: ascendentes e descendentes

Dentre as características familiares das mulheres visitadas destaca-se o número de filhos, todas têm no máximo três, quando o número de irmãos que possuem é pelo menos o dobro deste. Se anteriormente as famílias eram numerosas, atualmente observa-se uma redução importante.

Um dos motivos seguidamente comentados é o desejo de garantir uma ‘vida’ com melhores condições econômicas e oportunidades para os filhos. Decisão destas mulheres balizada pela gradativa conquista de direitos e liberdades. A decisão sobre a família, o corpo e a prole (ainda que a responsabilidade da criação recaia sobre as mães), talvez recente, é impactante, e estas mudanças estruturais nas famílias fornecerem pistas das construções e desconstruções vividas pelas mulheres neste ambiente.

A questão da sucessão, neste contexto, é a seguinte: das seis participantes apenas duas tem filhos homens, destas apenas uma, Neide, destinou ao filho o seguimento das atividades rurais juntamente a Mariana, sua nora; Neide herdou as terras de seus pais e ficou responsável pelos cuidados destes quando idosos. Isto demonstra que existe também a flexibilização destes padrões face as transformações sociais, afinal, mesmo as tradições não estão numa esfera do intocável.

No caso de Mariana, a mais nova das participantes, o processo de casamento impulsionou sua saída da casa dos pais para a casa do marido e dos sogros, onde mora e trabalha. A propriedade dos sogros será herdada por ela e seu marido, demonstrando que ainda que haja a saída das mulheres para as cidades, permanece também a dinâmica da saída das mulheres após o casamento. As terras de seus pais foram herdadas pelo irmão. Mariana tem uma filha pequena e relata que pelas suas observações esta não dará continuidade ao trabalho rural.

A minha vó fazia queijo, sempre gostou de trabalhar muito, não parava, disse que eu tinha que casar com um fazendeiro porque eu sempre gostei muito dos bichinhos, meu avô então morreu trabalhando, foi no chiqueiro tratar os porcos e sofreu um infarto (Diário de campo, Mariana).

Neuza tem três filhas, e a sucessão foi para a filha do meio e o genro que construíram uma casa na propriedade; a filha mais velha optou por morar e trabalhar na cidade, enquanto a mais nova estuda e mora com os pais. Já Neuza saiu da casa dos pais após o casamento e foi morar na propriedade dos sogros, a qual herdaram, também assumiram o cuidado destes quando idosos.

Ela enfatiza que o trabalho realizado na nova casa era muito semelhante ao anterior: a lida com as vacas leiteiras e lavouras, e mais tarde a inserção de um aviário e o plantio de batatas.

Flávia mora com o filho, mas a sucessão será a partir da filha mais velha e de seu genro, ainda que atualmente morem na cidade; seu filho tem necessidades específicas e recebe um salário próprio. Ela e o marido, ambos do MST, conquistaram as terras, através do movimento.

Flávia me contou de suas filhas que trabalham na cidade, a mais velha gostaria de voltar para o interior, “quem sabe um dia”. Elas voltam para casa a cada quinze dias, no máximo, estão sempre próximas, e quando vêm “fazem o rancho” levam frutas, legumes, leite, carnes, ovos, bolachas, “eu até cozinho o feijão pra elas”. Conta da formação das duas filhas com muito orgulho, que não foi fácil ajudá-las na época da faculdade, mas que sempre as ajudaram e continuam ajudando, pois na cidade tudo é mais caro (Diário de Campo).

Rosa saiu da casa dos pais após o casamento, quando tinha dezoito anos de idade, como conta: “Em seis meses eu namorei e casei, nossa aqueles pais loucos!” Ela tem uma filha que há pouco tempo terminou o ensino médio e optou por morar na cidade, e seu primeiro filho faleceu. Ela e o marido não herdaram terras, conquistaram- nas via MST;

Inês tem apenas uma filha que mora e trabalha na cidade. Inês saiu da casa dos pais que concederam a propriedade rural para seu irmão, após o casamento mudou-se para a propriedade dos sogros, e hoje ela e o marido, que herdou as terras, são responsáveis pelo cuidado deles.

Tanto Mariana, quanto Neuza e Inês possuem uma dinâmica de vida semelhante quanto a saída da casa dos pais após o casamento que as direcionou para a casa do marido e sogros. Sobre seus relacionamentos todas namoraram e casaram cedo, por volta dos vinte anos ou até menos, já as filhas destas mulheres, ainda que namorem,

exceto duas (sendo uma criança e uma adolescente), não há esta obrigatoriedade do casamento, mesmo que morem com os companheiros.

A herança e o cuidado dos pais

Ainda que as mulheres sejam maioria nestas famílias, a sucessão segue um determinado padrão, já visto em outras pesquisas também realizadas no contexto sulino (Brumer, 2004). Este padrão corresponde à destinação aos filhos a assunção da produção e propriedade, além do cuidado dos pais; caso não haja filhos então as filhas e os genros assumem e cuidam dos pais, e nestes casos a presença do genro como responsável é prioritária. Ou seja, os filhos homens continuam detendo a prioridade sobre a sucessão, então somente na sua ausência é a mulher, e desde que casada para que os cônjuges assumam o trabalho e as terras.

No caso da presença dos filhos, as filhas saem para estudar, morar e trabalhar na cidade ou, quando casam com um agricultor, mudam-se para a casa deste. Esta dinâmica acontece nas propriedades menores, portanto e corroborando com tal, nestas famílias não houve divisão da herança entre os filhos. Já nos casos em que há a divisão, as partes destinadas aos filhos que não moram na propriedade são vendidas àquele que mora e cuida dos pais, geralmente a preços inferiores ao de mercado, uma vez que este responsabilizou-se pelo cuidado dos pais.

A herança como aquilo que será deixado, e para quem será deixado, comporta não somente a propriedade, mas a terra enquanto um bem simbólico inscrito economicamente. As tensões decorrentes das escolhas e suas implicações, não restritas à unidade familiar, mas às relações entre os familiares nem sempre vem à tona, afinal obedecem a certa prescrição, onde os homens são os privilegiados. São decisões que passam anteriormente por um código próprio e não pela legislação vigente (Paulilo, 2004).

O fato de, em todas as famílias visitadas, o casal ainda trabalhar, a pauta da sucessão parece não fazer parte das preocupações cotidianas. As participantes que tem filhas mulheres, quando questionadas sobre a sucessão e se os filhos dariam continuidade ao trabalho dos pais, responderam:

A minha não, tenho certeza que a minha não, a minha já tem a profissão dela né, é cabelereira, desde o começo que ela foi né, ela enfrentou dificuldade, saiu

nova né, porque no que ela fez o terceiro ano ela já saiu de casa, no mesmo ano, quinze dias depois que ela fez a formatura do terceiro ano. E o primeiro ano não foi fácil pra ela né, mas agora, graças a Deus, ela tá se virando bem. E ela tá fazendo o que ela gosta e graças a Deus ela tá indo bem.

M - E isto pra ti é uma preocupação? Ela ter escolhido uma outra coisa... Não, pra mim foi muito bom, eu fiquei contente porque ela escolheu o que ela queria, e eu sei que ela dizia desde nova, desde pequena, queria, ela dizia ‘quero ser cortadeira de cabelo’, o sonho dela era ser isso, às vezes ela dizia outras coisas, mas o principal, qual sempre ela falava isso. E pra mim eu fiquei feliz porque a gente tá ajudando ela também né, no que ela gosta, que ela sempre... a gente deixa do sonho da gente, pra gente ajudar os filhos né, pros filhos terem o sonho deles né, que daí parece que eles realizando o sonho deles, a gente parece que é o nosso sonho realizado. Ela sempre foi livre de escolher o que ela queria. Se ela queria fazer uma faculdade a gente ia dar um jeito né, de pagar a faculdade, mas ela nunca quis fazer mesmo. (Inês)

A narrativa de Inês é composta pela certeza de que sua única filha não pretende trabalhar na agropecuária, destacando que sempre a deixou livre pra escolher àquilo que ela quisesse fazer, e após a escolha continua lhe apoiando, inclusive financeiramente, e vê-la realizada é para ela também uma realização.

M - E tu acha que a Ana vai dar continuidade pra essas atividades aqui que vocês fazem?

R - Não, eu acho que não, que lidar com os bichos assim eu acho que não, que eles já têm outra visão né...

M - E isso preocupa vocês?

R - Não, eu acho que não porque [segundos de silêncio] cada um tem que fazer o que gosta né, seguir com o que gosta né, e vai saber se não muda de ideia, ninguém sabe.

Já Rosa ainda que consciente desta “outra visão” proveniente talvez do que observa dos jovens, não vê a filha lidando com os animais, destaca que primeiramente ela precisa fazer o que gosta, mas também deixa certa possibilidade no discurso de que ela mude de ideia, ou seja, que queira trabalhar no interior.

A Maria não, mais antes ela vende tudo. Ela não gosta nem de ir lá pra fora. M - E isso é uma preocupação pra ti?

Eu acho que não, porque ela tem que ir estudar, porque aqui na roça não tá fácil, ninguém reconhece o trabalho da....dos agricultor”. (Mariana)

Mariana é enfática em sua resposta, sua filha ainda é criança, mas já demonstra não gostar do ambiente rural. A outra alternativa é o estudo, tanto pelo reconhecimento, quanto pelo desejo de que não passe por dificuldades que ela própria enfrenta no rural.

N - Sim, o Raul sim, mas a Rafaela não, mas, a Rafaela odiava a roça, vaca nunca gostou...

M - E isso é uma preocupação pra ti?

N - Não, nem um pouquinho porque eu disse pra ela, que o que ela quisesse fazer, que fizesse.

Neide já fez a sucessão para o filho, e sua filha há tempos mora e trabalha numa cidade, na sua fala destaca o quanto a filha não gostava da roça, nem das vacas, e que sempre percebera isso, portanto, prezou pela escolha da filha e refere-se a ela sempre com muito orgulho.

Conforme também abordado por Paulilo, mesmo em meio a tantas variabilidades possíveis nas questões de sucessão, há que se destacar que as mulheres são prioritariamente as que saem de casa, quando há descendência masculina, e nos demais casos “Elas são sempre consideradas ‘filhas ou esposas de agricultor’, termo que identifica tanto as que trabalham nos campos como as que não o fazem” (Paulilo, 2009, p. 183).

Não se percebe que a questão sucessória seja algo incômodo às participantes, nenhuma comentou ter se sentido prejudicada na divisão do patrimônio, ainda que das quatro que herdaram terras, apenas uma delas tenha herdado a terra dos pais, as demais adquiriram após o casamento, mudando-se para as terras do marido. Talvez, isto se deva a naturalização do processo de passagem para as figuras masculinas.

A manutenção da noção do trabalho feminino como ajuda, e a imposição de modelos de socialização, podem ser fatores responsáveis pela constante saída das

mulheres do espaço rural, principalmente da geração das filhas das participantes da pesquisa, suas trajetórias mostram que vislumbram outros modos de vida nos quais a inserção social é possibilitada de diversas formas, seja através do trabalho nas cidades, ou mesmo da interação entre os estudos e o trabalho, outras pesquisas na área também demonstram esta dinâmica no rural (Stropasolas, 2004).

A percepção de que todas as atividades elaboradas pelas mulheres são invisibilizadas e não reconhecidas, afinal, as atividades domésticas independente se realizadas pelas mulheres mais velhas ou mais jovens, não são vistas enquanto trabalho, faz com que busquem atividades nas cidades, reconhecimento e retorno financeiro direto.

Daí as falas das participantes em relação às filhas denotarem a saída destas ou, ao menos, seu pouco interesse no trabalho rural. Alguns trechos atentam para a questão do trabalho agrícola como aquele em que o contato provoca o “sujar”, o “lidar” com os bichos. Durantes as visitas às participantes, três filhas foram constantemente citadas pelas mães, por não gostarem do trabalho rural, “nem vão lá pra fora”, “não querem se sujar”. Uma delas ainda é criança, a outra recentemente mudou-se para trabalhar, e a outra mora e trabalha há anos na cidade. O impacto das frases “odiar a roça”, “não gostar dos bichos” remete ao distanciamento deliberado das práticas cotidianamente visíveis para elas e vivenciadas pelas mães, pais, avós e irmãos. O trabalho com a terra e com os animais exige o contato do corpo, o corpo enquanto instrumento de trabalho, passível de ser sujado, de ser experimentado conforme solicitado.

Esses falas possibilitam certas formulações de hipóteses, dentre elas de que ao presenciarem o trabalho executado pelas mães, não se veem neste mesmo papel, nesta condição social, veem para si outras vidas possíveis, talvez pelas relações que presenciaram, pelo peso do trabalho rural, pelas dificuldades vivenciadas pelas mulheres nestes ambientes, o excesso de trabalho, pouco lazer e tempo livre quase inexistente, etc.

M - E tu acha que tuas filhas vão dar continuidade a essas atividades?

Eu espero que sim [risos], espero que sim, que continuem né. (Neuza)

Apesar de sua resposta parecer relativa, Neuza tem convicção que as filhas darão continuidade aos seus trabalhos, pois tanto a filha mais jovem que mora com ela,

quanto a filha que mora ao lado, contribuem no trabalho com as vacas de leite e expressam interesse nesta atividade.

M - E a senhora acha que teus filhos vão dar continuidade pra essas atividades?

Vão, vão sim, a mais velha quer vim morar aqui, tem interesse em vim morar na terra do pai [risos]. (Flávia)

Flávia tem duas filhas que moram e trabalham na cidade, porém, coloca o interesse de umas delas de retornar e continuar as atividades na propriedade.

Nestas narrativas cotidianas das mães que adoram falar sobre os filhos, e principalmente valorizar o trabalho que estes fazem, nota-se a representação do trabalho feminino na agricultura, ao mesmo tempo que fundamental, ainda são as mulheres que saem de casa, o que é comentado de forma bastante natural pelas mães. Por vezes o trabalho dos filhos que saem do interior é mais comentado do que daqueles que permanecem, o incentivo dos estudos aos filhos, além de fazer com que saiam do rural, lhes proporcionam maior valorização de suas atividades, em detrimento daquelas executadas pelos que ficam na colônia. Esta transição do estudo e emprego urbano fala de uma ascensão social (Carneiro, 2001).

Esta tendência da passagem da herança para os homens opera sobre o estabelecimento e restabelecimento, já naturalizado, das desigualdades de gênero. Se as filhas são a segunda opção em termos sucessórios, se são incentivadas a mudarem- se seja para a casa dos maridos (passando pela diferente nomeação, de filhas para mulheres de agricultores) ou para as cidades, isto denota que ali não há um espaço para elas, obrigando-as a buscar uma outra ocupação e um outro lugar para estar e viver. Mesmo com as conquistas sobre a posse das terras, as mulheres permanecem expostas às relações desiguais intrafamiliares.

Decisão centrada nos mais velhos

Outra característica referente a sucessão, que é encarada, inclusive, como algo a que se atribuía a saída das pessoas do meio rural, é assunção da organização pela sucessora ou sucessor. Pesquisas já realizadas mostram que, quando os pais moram na propriedade continuam detendo a posição de decisores majoritários a respeito da questão da terra e trabalho, os sucessores ocupariam então uma posição de ‘dependentes’, o que ocorre independente da aposentadoria dos mais velhos, afinal a aposentadoria não cessa o trabalhar rural, é vista como uma conquista muito importante, mas não pausa as atividades. Porém nas famílias participantes da pesquisa, há rompimentos com esta noção geral.

Na propriedade de Neide, por exemplo, tanto seu marido quanto o seu filho assumem a tomada de decisão em conjunto, ela inclusive destaca que algumas decisões são feitas pela família toda;

No caso de Mariana, nora de Neide, seu marido e o seu sogro são os organizadores. Quando questionadas sobre quem administrava a renda familiar:

O Raul! Tudo o Raul, tudo, tudo, tudo e ele tá toda a hora com a calculadora e a caneta e o papel na mão, tudo, tudo, tudo, todas as manhãs ele faz dez mil contas por dia, tudo ele. (Neide)

Porém, quando questionadas sobre as decisões relativas à casa:

-Ah daí sou eu... (Neide) -Todos também... (Mariana)

-É, todo mundo...junto, junto. (Neide)

Inês também está na posição de nora que mora com os sogros, ambos já com idade avançada e várias complicações de saúde que os impede de trabalhar. Ali, seu marido e ela assumiram a posição de tomada de algumas decisões, mas antes passam pelo crivo dos mais velhos, estes já aposentados, com idades entre 70 e 80 anos. Sobre as decisões:

I - Não, a gente decide junto, mas quem lida com isso é o meu marido, mais é meu marido...

M - Banco essas coisas...

I - É tudo ele que lida com isso.

M - E as decisões relacionadas à casa?

I - É junto daí.

M - E pros teus sogros?

I - Sim, sim, também é junto.

A família de Neuza, atualmente conta com a presença do genro na propriedade, e há algo de novo nesta relaçõe, uma vez que Neuza e o marido pagam um salário para o genro, ou seja, não há divisão total nos termos ‘tudo é de todos’, mas uma porcentagem relativa aos ganhos, o que também sinaliza uma tensão no habitus (Bourdieu, 2005). Situação diferente da vivenciada por Neuza após o casamento.

Talvez um elemento seja a idade dos ditos ‘mais velhos’ dos pais e/ou sogros, quando variam entre 40 e 60 anos, ainda em idade dita ‘produtiva’ eles participam diretamente da organização e das decisões sobre o trabalho e os investimentos. Já quando em idades mais avançadas, ou quando impedidos por problemas de saúde, então atribuem mais autonomia para os sucessores.

Sobre a participação conjunta, ouvi comentários não somente de Mariana, mas também de seu companheiro Raul sobre as necessidades da atualização nas atividades e os enfrentamentos necessários no convencimento do pai e sogro que resiste e evita mudanças, afinal o casal concorda que investir é necessário “Pra conseguir fazer as coisas e ter algum lucro com elas” (Diário de Campo, Mariana).

A modernização, principalmente para esta geração, é permeada por ‘fantasmas’ da dissolução do tradicional, simbologias e significados, o que provoca atritos e necessidade de negociação entre as gerações visando o aumento na qualidade de vida destas pessoas. O saber tradicional ocupa um lugar de hegemonia frente aos “modernismos” (expressão utilizada no cotidiano com função pejorativa às mudanças), ambos em constante tensão, ambos produzindo outros modos e práticas possíveis.

Isto remete a complexidade instaurada no rural entre as velhas formas de fazer e as novas formas de fazer, com seus benefícios e desafios.