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14 Dinheiro próprio: autonomia e independência

14.3 Renda e retorno financeiro

Sobre a distribuição da renda:

M - E a renda que vocês obtêm, quem administra?

Ah, é uma ideia assim dos dois né, um dá uma ideia se o outro acha que não dá, dá outra ideia e a gente vai conversando né. (Flávia)

Quem administra é o marido né, mais. (Neuza)

M - E Rosa qual é o destino da renda obtida, e quem cuida das contas, do que comprar?

É pra pagar as contas mesmo, porque... e a gente administra junto, tudo junto. (Rosa)

Sobre a distribuição da renda, há uma constante de ser em conjunto, e é semelhante para todas as famílias:

M - E o destino da renda?

É investir na propriedade, né! (Neide)

Não, a gente decide junto, mas quem lida com isso é o meu marido, mas o investimento é tudo pra roça né, é: comprar adubo, compra veneno, é dando giro como se diz, porque dinheiro...essa safra paga a outra e se dá certo vai pagando, e vai indo, é um giro. Se sobra um pouquinho a gente investe ou em cima de máquinas ou pra casa né, pra melhoria da casa, porque a gente tá morando dentro de um rancho velho, vamos assim dizer... (Inês)

Se o gasto é retornado à terra, este é feito também por meio da compra de insumos, e isto ainda se mantém na família da maioria das participantes como tarefa dos homens, bem como em relação à comercialização da produção, como é visível nas falas das participantes:

M - Como e quem comercializa a produção?

F - É ele sempre...

M - E os insumos, quem compra?

F - É ele também que sabe. (Flávia)

Nos brócolis, que nem assim, a gente tem uma firma. É tudo ele que faz essas coisas, o meu marido. (Inês)

Que vende é o Raul, quem puxa é o Jairo. Nós vendemos pros fruteiros e depois eles levam pros mercados, mas nós vendemos pros fruteiros. (Neide)

A gente vende pra cooperativa de leite e compra os insumos da própria cooperativa. (Rosa)

Já a fala de Neide traz exatamente a dinâmica não apenas do papel deste sujeito masculino, mas a perspectiva geracional, ao filho foi repassada a função de negociar, enquanto o marido transporta e entrega a produção na cidade.

Outro fator que carece de análise é a representação que se tem do homem no espaço rural, o papel que se espera que desempenhe, a socialização que o coloca num lugar que ‘precisa’ ser ocupado por ele, daí as falas reproduzidas reforçarem a questão do ‘é ele quem decide’, quando no cotidiano, vê-se que é ele também, mas não somente ele.

Sobre os preços dos insumos, o retorno financeiro pra dar ‘o giro’, os altos preços pagos pelos agricultores, são fatores econômicos cuja interferência e preocupação é constante. Nas lavouras desde o cuidado com a terra, os tratamentos necessários, a compra das sementes, o plantio, àqueles que não possuem os maquinários seja pra plantar, colher ou para a manutenção dos tratamentos, necessitam pagar alguém que tenha para fazer este serviço. Ademais os imprevistos que geram

outros gastos, como no caso de pragas específicas nas plantações ou doenças no gado, fazem parte da realidade nestas famílias.

M - E o que vocês acham que poderia melhorar nesta atividade que vocês fazem?

Poderia ser o preço né, principalmente o leite, as coisas, o preço da produção. A gente vai comprar um saquinho de milho, paga uma loucura, o adubo uma loucura e quando a gente vai vender...tudo. E depois a gente faz a silagem, dá pras vacas, elas não cobrem o prejuízo. (Neide)

O preço tá de arrasto! Nós temos com treze mil litros de leite, o Raul fez as contas, sete mil só dá de ração e sobra pra gente fazer o rancho quatrocentos reais e fora as outras despesas de remédios e outras coisas que precisa pra elas. Mal e mal dá pra fazer o rancho. (Mariana)

Que tivesse valor né, que as coisas tivessem mais valor, tipo o preço do leite tivesse mais valor, que fosse mais valorizado. O trabalho no geral né, da agricultura, nem só no preço do leite, tudo né, porque não é nada valorizado né. (Rosa)

Porque daí aqui nós também, na roça pra produzir a gente tem bastante gasto, desde trator, óleo, essas coisas assim, tá tudo caro, gasolina, tudo caro. (Inês) Eu acho que quando tu tem que fazer um galpão novo, alguma coisa que a prefeitura também ajudasse né, porque depois vai o retorno pra prefeitura e também estrada mais boa , acascalhada, esse negócio de leis teria que melhorar um pouco porque tem leis que nem precisaria [aqui ela refere-se especificamente a algumas leis ambientais do município], que é só pra incomodar e por dinheiro né. (Neuza)

Das mulheres que lidam na ordenha das vacas uma constante é o preço pago pelo litro de leite, desde o início desta pesquisa a variação dele foi de noventa centavos até um real e quinze centavos, conforme: a cooperativa para qual vendem, litragem (quantidade), a análise de qualidade do leite, enfim, as variáveis são inúmeras e correspondê-las para receber todo o valor passível de ser pago é tarefa impossível.

O leite envolve: o plantio de milho nas lavouras para que no tempo correto seja colhido e moído, no feitio da silagem, que servirá como um dos alimentos mais importantes para as vacas na região, a silagem precisa ser acompanhada pela ração, milho moído acrescido de vitaminas, balanceada conforme os demais alimentos

consumidos pelos animais, esta ração as produtoras compram, seja da própria cooperativa para qual vendem o leite ou de outra empresa. É necessário também que haja pastagem para os animais, e esta precisa ser plantada, adubada e cuidada para que as vacas consumam no tempo certo, altura da cobertura, entre outros. Alimento: silagem, ração e pastagem.

As vacas são ordenhadas duas vezes ao dia, este acompanhamento diário permite que qualquer desempenho diferenciado ou adoecimento dos animais sejam notados, quando percebem alguma doença, as mais comuns neste caso são a tristeza e a mastite, inicia-se, o mais rápido possível, o tratamento.

A lida com gado também segue os preceitos exigidos pela vigilância sanitária quanto a regularidade da vacinação e exames periódicos, além da instalação do tambo leiteiro conforme as leis ambientais. Sobre as últimas, os critérios precisam ser atendidos em toda a amplitude da propriedade, em relação à água, às árvores, às construções, para atendê-las é necessário dispor de projetos e processos burocráticos bastante encarecidos.

Sua queixa é que no interior se trabalha muito, se gasta muito pra investir e pra trabalhar com o mínimo de conforto e os próprios vizinhos e conhecidos denunciam, logo eles que passam por situações semelhantes. (Diário de Campo, Neuza)

Cabe mencionar também as legislações ambientais repletas de regras que pouco contribuem para os trabalhadores, que são severamente punidos quanto ao descumprimento (muitas vezes de práticas que eles ignoram ser proibidas). Os termos rígidos em relação ao plantio das árvores nativas, de perfuração de poços, da limitação de técnicas tradicionais, enfim, impõem restrições, mas não oferecem uma contrapartida (financeira ou de capacitação) àquelas pessoas cuja extensão de terra é pequena e que precisam trabalhar somente naquilo que tem.

“Não há como negar a urgência da adoção de práticas agropecuárias conservacionistas e da implantação de medidas restritivas do uso abusivo dos recursos naturais, mas elas devem ser implantadas pelo conjunto dos produtores rurais, e não apenas pelos pequenos produtores (grifo nosso)” (Scopinho, 2017)

Os gastos com os maquinários, seja proveniente da prefeitura, de terceiros ou de troca entre vizinhos, significa o pagamento das máquinas, combustível e da hora do funcionário ou vizinho que planta.

Cada item destes representa um gasto. Dependendo da quantidade de vacas e litros de leite entregues, as agricultoras garantem uma renda mensal, porém, desta renda bruta, o que resta ao fim do mês, é pouco, já que mais da metade do ganho é revertido em investimentos para os animais e lavouras.

Complemento da renda

Com a obtenção de implementos agrícolas, os maquinários possibilitam que, além da renda da propriedade, os agricultores possam aumentá-la fazendo serviços em outras propriedades, como é o caso de Flávia e também de Inês, quando da contratação:

É, às vezes, que nem, é dois anos que agora que nós temos a plantadeira nova, daí ele planta pros vizinhos aí por aí. Dois anos que plantou, agora não vai mais plantar. (Flávia)

Além da mão de obra familiar, na época da colheita:

Familiar e na hora da colheita, tipo dos brócolis daí precisa né, porque a mão de obra é bastante, daí só dois a gente não vence, e tem que ser no tempo certo, tem que ser hoje, tem que ser hoje porque amanhã tu já tá perdendo produto. (Inês)

A contratação acontece justamente nas famílias cujo trabalho é realizado somente pelo casal, restringe-se a dias e épocas específicos. Esta estrutura agrícola familiar diz da posse dos meios de produção, porém seu diferencial é que não há exploração de terceiros para a acumulação de capital, visto que o trabalho agropecuarista possibilita somente que as pessoas se mantenham no interior (Coutinho & Graf, 2010), e ainda assim, “por teimosos” (p.187), utilizando a expressão de Neide.

O excedente das lavouras

É, e se não é a gente produzir a comida, os da cidade não comem, mas o serviço é bastante e é pesado, a gente ainda ganha uma miséria, olha o preço do leite, sem falar no brócolis e no repolho, tudo que fica na roça, não vencemos nem dar pros bichos comerem, quem lucra mesmo são os atravessadores e os mercados, nós não. (Neide)

Também os vegetais são pauta quanto aos preços dos mercados, as dificuldades vivenciadas quando na época do plantio os produtos estão com bons preços e na época da venda, preços baixos e pouca ou nenhuma procura, obrigando muitas vezes a deixar o produto apodrecendo na lavoura.

É uma lavoura com plantas distribuídas em longas fileiras, vamos caminhado pela estrada, passamos ao lado do que sobrou de uma plantação de repolhos, vários apodrecendo na terra porque os mercados para os quais vendem, não quiseram comprar. Chegamos numa outa estrada vicinal e seguimos para lavoura de milho, Mariana quis me levar até lá pra eu ter noção de quantos pés de tomates eles plantaram no ano passado. Narra os processos, o plantio de milhares de mudas, o manejo do agrotóxico, a colheita, a embalagem, o armazenamento e a entrega, sempre seguindo os padrões exigidos. Por vezes os compradores encomendam uma determinada quantia, porém, na época de venda acabam reduzindo a quantidade de compra, o excedente fica todo na lavoura, uma parte é destinada à alimentação das criações, porém grande parte é perdida, apodrece na terra (Diário de Campo).

Para as agricultoras cujo contato com o plantio, a terra e o tempo são diferenciados, ter de deixar os alimentos perecendo é grande fonte de desânimo. Afinal despenderam tempo para se dedicar àquele trabalho e sentem que ao final, quando o clima colaborou, os preços baixaram e seus produtos não são valorizados, todo o empenho, todo o trabalho transforma-se em tristeza, frustração e prejuízo econômico. A retribuição financeira pelas atividades reflexo da desvalorização do trabalho agrícola familiar como um todo é talvez a principal ameaça para a continuidade das pessoas nesta prática. Os investimentos para plantar e o pagamento pelos produtos que, em muitos casos, não paga a própria despesa, caracteriza a preocupação que traz a insegurança (Stolf, 2007) para estes ambientes rurais comumente conhecidos como tranquilos. A tranquilidade cede lugar para a insegurança e até para o incentivo de que

os filhos tenham outras profissões, não porque não quisessem que estes seguissem a profissão de agricultor da qual falam com tanto orgulho, tanto de si quanto de seus antepassados, mas principalmente para que não precisem viver se equilibrando nesta corda bamba que hoje é o trabalho nas pequenas propriedades familiares.

Esta situação precisa ser ponderada se pensarmos que a alimentação no país é majoritariamente proveniente da agricultura familiar, se a permanência das famílias no campo é ameaçada devido aos poucos investimentos em políticas públicas rurais, se o incentivo é de que os filhos estudem e se estabeleçam em outras área profissionais, estamos falando de um fenômeno cujo impacto em termos alimentícios é sentido diariamente por toda a sociedade. Portanto, ratifica-se a urgência de olhar com cuidado para o rural de nosso país, para as demandas das agricultoras e agricultores, se queremos pensar numa sociedade que ofereça condições mínimas de bem-estar e justiça social para toda a sua população.