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A prática contemporânea do binge-watching

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CAPÍTULO III – A ERA DO ON-DEMAND

3.5 A prática contemporânea do binge-watching

A possibilidade de se assistir a conteúdo sob demanda e, portanto, fora da linearidade e por diversos dispositivos ampliou a imersão profunda nas narrativas seriadas pela audiência. A partir da estratégia do binge-publishing, por exemplo, é comum que usuários da plataforma assistam mais de um episódio por vez, passando horas e horas à frente da televisão, do computador, do celular ou do tablet. Esse hábito de assistir horas seguidas a um programa, em especial séries, é caracterizado como binge-watching pelos estudiosos contemporâneos, caso de Jenner (2015), Matrix (2014), Saccomori (2016), por exemplo. No Brasil, esse termo é entendido como “maratona de vídeo”.

Apesar de haver aparições da palavra binge em relação ao consumo de narrativas televisivas seriadas já na década de 1990, Saccomori (2016) afirma que a expressão binge-

watching popularizou-se na crítica televisiva norte-americana a partir do ano de 2013, período

em que passou a ser adotada na literatura acadêmica. Ainda segundo Saccomori (2016, p. 26), “não há correspondência exata do termo em português, mas é possível compreender seu sentido como uma espécie de ‘orgia televisiva’: binge significa ‘farra’, um comportamento de excessos em um curto período de tempo, enquanto watching significa ‘assistindo’”. O termo foi adicionado ao dicionário Oxford de língua inglesa no mesmo ano, da maneira a seguir:

A palavra binge-watch tem sido usada em círculos de fãs de televisão desde o fim dos anos 1990, mas sua explosão para o uso pela cultura de massa se deu em 2013. O contexto original era assistir a programas em temporadas completas por caixas de DVD, mas a palavra teve seu próprio (contexto) com o advento do assistir sob demanda e do streaming. Em 2013, binge-watching ganhou um novo impulso quando a empresa de videostreaming Netflix começou a disponibilizar episódios de sua programação seriada toda de uma vez81 (WORD..., 2013).

Embora o termo seja vinculado inicialmente à era digital recente e ao streaming (especialmente com o advento da Netflix), o consumo sequencial de produtos audiovisuais data

79 http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/tv/noticia/2016/08/antes-da-estreia-minisserie-justica-da-globo-tera-

capitulos-iniciais-divulgados-na-internet-7295392.html Acesso em 15 jan. 2019.

80 https://f5.folha.uol.com.br/televisao/2018/10/globo-exibira-primeiro-capitulo-da-serie-assedio-na-

segunda.shtml Acesso em 15 jan. 2019.

de décadas anteriores, por volta dos anos 1980 com a popularização do videocassete, seguido pelos boxes de temporadas de séries em DVD e, então, por meio do download de episódios via internet. A partir da criação e do acesso a essas tecnologias e de seu crescente uso, a prática da recuperação de conteúdos audiovisuais possibilita que fãs possam gravar seus materiais favoritos para visualização posterior. Uma das primeiras ocorrências do termo binge é feita por Jenkins (2015) na obra Invasores do texto, de 1992. Ao falar sobre o comportamento de um grupo de fãs da série A Bela e a Fera (Beauty and the Beast; CBS, 1987-1990), Jenkins lembra que, ao se encontrarem para assistir a episódios da série em sequência após gravação em VHS, apelidaram a atividade de “Beastasthon” [“Feratona”]. “Outra reunião do clube foi uma

maratona na qual os fãs traziam episódios de seriados prediletos que outros integrantes talvez

não conhecessem” (JENKINS, 2015, p. 87, grifo nosso). Em 2005, Mittell também utiliza a expressão ao explicar que baixara a temporada da série Veronica Mars e assistira todos os episódios sem pausa.

De certa forma, podemos entender a prática do binge-watching semelhante ao que Pallottini (2012) atribui aos leitores de romances policiais. Segundo ela, a literatura policial apresenta “a totalidade da narrativa ao alcance do leitor. É ele quem dosa a quantidade de ansiedade que pode suportar. Se quiser, o fruidor de um romance policial pode lê-lo de uma sentada e ficar sabendo logo que o assassino é o mordomo” (PALLOTTINI, 2012, p. 51). No caso do binge-publishing, por exemplo, a Netflix possibilita que, da mesma forma, o consumidor mergulhe o tempo que desejar na narrativa ao maratonar aquele conteúdo e descobrir o final da história proposta em um curto espaço de tempo, o que é impossível no formato de fluxo televisivo tradicional.

Embora não seja o criador do binge-watching, o serviço de streaming certamente tem contribuído para sua popularização, juntamente com outros avanços tecnológicos como boxes de DVD e os downloads ilegais de episódios. Assim, argumentamos que o potencial para a prática do binge-

watching sempre existiu, porém ele era dependente da grade televisiva e de

demais tecnologias de acesso ao conteúdo. Esse potencial, agora, tem florescido numa prática cada vez mais relevante dentro do circuito de produção e comercialização da ficção seriada televisiva e a importância dos serviços de streaming é inegável. A Netflix constantemente incentiva a prática, liberando episódios de suas produções originais às sextas-feiras, em vésperas de feriados e durante os “hiatus” das produções televisivas. Nesse sentido, a empresa se aproxima do modelo econômico hollywoodiano, uma vez que os grandes blockbusters são estrategicamente espalhadas ao longo do ano, durante os principais feriados e períodos de férias (CASTELLANO; MEIMARIDIS, 2016, p. 204).

Além de esse comportamento ser, portanto, ampliado e rotinizado com a existência das plataformas de streaming e de estratégias como a do binge-publishing, o hábito de assistência sequencial de narrativas seriadas também é atribuído à comunidade de fãs. Uma das referências no estudo desse grupo, Jenkins (2015) lembra que já na década de 1980 havia uma espécie de intercâmbio underground de fitas VHS entre fãs de séries, em especial para com seriados britânicos que não eram exibidos nos Estados Unidos. Segundo o autor, em um ano, a esposa e ele assistiram à primeira temporada da série Blake’s 7 (BBC1, 1978-1981) e buscaram fãs que possuíam outras temporadas da produção para negociação. Dessa forma, construíram uma rede de fãs que trocavam cópias de VHS de diversas produções e, posteriormente, os consumiam de forma vertiginosa.

A fita de vídeo amplia o controle sobre os programas, permitindo que assistamos com frequência ou no contexto que se desejar. Os fã-clubes podem dedicar uma noite inteira a assistir aos episódios prediletos, que se estendem por várias temporadas ou mesmo décadas na história de exibição. Eu e minha esposa assistimos à última temporada de Blake’s 7 em menos de uma semana, tendo às vezes assistido a três ou quatro episódios na sequência; nosso fascínio com o desenrolar da trama era satisfeito por meio de nosso controle sobre as fitas, de uma forma que não era possível nas exibições semanais. Quando enfim chegamos ao episódio climático, assistimos várias vezes seguidas para ter melhor noção de como as personagens atingiram seus destinos (JENKINS, 2015, p. 87).

Para Jenkins (2015, p. 84), “releitura é central ao prazer estético do fã. Boa parte da cultura fã predispõe a encontros recorrentes com textos queridos”. Consequentemente, o acesso facilitado às cópias em VHS possibilitou a criação de novos fandoms, tornando o intercâmbio dessas um ritual essencial do funcionamento do grupo como uma comunidade. Ao estudar a cultura das séries, Marcel Vieira Barreto Silva (2014) afirma que a emergência do fandom é essencial para se entender o sucesso das narrativas seriadas hoje e que a imersão nas séries é importante para que se fortaleça esse tipo de consumo. Uma vez que a sociedade em rede possibilitou quebrar barreiras físicas e até mesmo culturais, os fãs costumam trocar opiniões, reflexões e até mesmo produções próprias (fanfictions, fan-arts ou fanfilms) sobre suas obras favoritas. Para Silva (2014, p. 248), a era digital ajudou com que os fãs passassem a mergulhar em séries de uma maneira mais profunda, para além do tradicional fluxo televisivo, demonstrando “um conhecimento amplo sobre os modos de encenação, os diálogos, a caracterização dos personagens, o desenvolvimento das tramas e a montagem das cenas”. Com o binge-watching, portanto, o fã alcança uma imersão completa com o objetivo de buscar a

máxima fruição, fazer novas conexões, encontrar pontas soltas e até solucionar tramas e mistérios.

Para autores como Jenkins (2014; 2015), Mittell (2012), Jenner (2015) e Matrix (2014), essa relação dos fãs com o material audiovisual pode ser ainda mais forte quando se está diante de uma narrativa complexa – o que, consequentemente, também reforça a interação e o engajamento das comunidades com o produto. Para eles, o fã envolve-se profundamente com a trama proposta, com o mundo ficcional e com os personagens. Segundo Steven Johnson (2005), esse tipo de narrativa exige da audiência uma quantidade maior de esforço cognitivo, o que ele chama de ginástica cognitiva. Somente com atenção e esforço é possível que o público entenda a complexidade da narrativa, resolva mistérios e conflitos e organize as tramas propostas. Para Corrêa (2017), esse esforço cognitivo torna-se ainda prazeroso e desafiador quando se pode dividi-lo com outros fãs pelo mundo. E no caso do binge-publishing, em que os episódios são disponíveis para o prazer rápido e total do fã, “a prática da reassistência dos episódios faz com que o fã se torne um detetive, busque novos fatos, diferentes pontos de vista e formem novos quebra-cabeças” (CORRÊA, 2017, p. 147). Massarolo (2015, p. 53) também entende que a narrativa complexa exige dos fãs habilidades de detetive para resolver os enigmas da trama e, assim, “passam a tecer comentários, em tempo real, via postagens em blogs ou tweets, sobre as séries. Os esforços cognitivos, introduzem novas formas de assistir televisão, como rever inúmeras vezes a mesma cena para capturar seu significado”.

Assim, a participação, o engajamento e até mesmo o ativismo dos fãs são não só peças- chave para o sucesso das séries, mas também para o sucesso do binge-publishing. Essa mudança na distribuição proposta pela Netflix é um exemplo do que Jenkins, Green e Ford (2014) afirmam ser uma remodelagem do próprio cenário da mídia atual:

Essa mudança – de distribuição para circulação – sinaliza um movimento na direção de um modelo mais participativo de cultura, em que o público não é mais visto como simplesmente um grupo de consumidores de mensagens pré- construídas, mas como pessoas que estão moldando, compartilhando, reconfigurando e remixando conteúdos de mídia de maneiras que não poderiam ter sido imaginadas antes. E estão fazendo isso não como indivíduos isolados, mas como integrantes de comunidades mais amplas e de redes que lhes permitem propagar conteúdos muito além de sua vizinhança geográfica (JENKINS, GREEN, FORD, 2014, pos. 229).

Sobre o binge-watching, em 2013, a empresa declarou que o consumo de séries em modo maratona era normal: “nossas produções originais são criadas para visualização multiepisódica”. Por meio de uma pesquisa realizada pela consultoria Harris Interactive, cerca

de 1,5 mil usuários da plataforma foram entrevistados a respeito de como assistiam os produtos no serviço. Intitulado Netflix declares binge watching is the new normal82 (Netflix declara que

binge-watching é o novo normal, em tradução livre), o estudo aponta que maratonar já era um

comportamento comum para 61% dos entrevistados. Do total, 75% definiram que o binge-

watching se configura a partir do momento em que se é assistido de dois a seis episódios de

uma mesma produção de uma só vez. Amanda Lotz (2014) reflete sobre como seu próprio consumo de produções audiovisuais seriadas mudou nos últimos anos com o streaming.

Em muitas formas, vejo um romance como a melhor analogia. Tenho passado a assistir episódios de uma série de ficção de forma consecutiva sempre que possível, como os capítulos de um livro. Às vezes interrompo o streaming se não estou mais no clima para tal, enquanto escolho ler uma revista ou continuar com o livro de tempos em tempos. A grande portabilidade que me permite começar a ver um seriado na sala da minha casa, depois olhar outro episódio na manhã seguinte a caminho do trabalho ou na sala de espera, me recorda da maneira como consumo romances83 (LOTZ, 2014, pos. 6038).

Já em 2017, a companhia divulgou um novo tipo de usuário da plataforma, o binge

racer84, cunhando o termo binge-racing, atribuído àquele que inicia e termina uma temporada completa em até 24 horas após seu lançamento. Segundo a Netflix, cerca de 8,4 milhões de pessoas realizaram esse feito em 2017, sendo a série mais “maratonada” Gilmore Girls: um ano

para recordar (Netflix, 2016), revival da série Gilmore Girls (Tal Mãe, Tal Filha; The WB e

The CW, 2000-2007). O país com maior número de binge racers foi o Canadá; o Brasil ficou na décima posição. Para entender a quantidade de tempo e concentração do usuário que pratica

binge-watching na plataforma, Saccomori (2013) compara a dedicação para assistir à saga O Poderoso Chefão e à série original Netflix House of Cards: para assistir aos três filmes de O Poderoso Chefão no modelo binge-watching, a pessoa “dedicaria 488,4 minutos ou 8,14 horas

de visualização contínua” (SACCOMORI, 2016, p. 20). Para fazer o mesmo com a primeira temporada de House of Cards, a dedicação seria de 650 minutos, equivalente a 10,8 horas.

Ainda assim, segundo Van Ede (2015), mesmo que a Netflix estreite sua relação com os usuários que praticam binge-watching, a ideia de que esse tipo de usuário seja a maior parte

82 https://media.netflix.com/en/press-releases/netflix-declares-binge-watching-is-the-new-normal-migration-1

Acesso em 20 mar. 2018.

83 “In many ways, I find the novel the best analogy. I've come to view episodes of fictional series in consecutive

installments whenever possible, like chapters in a book. Sometimes I'll interrupt the stream if I'm just in a mood for something else, as I would choose to read a magazine instead of continuing with a book from time to time. The greater portability that allows me to start a show on my living room set, then watch an episode on my commute the next morning or in a waiting room also reminds me of how I consume novels”.

84 https://media.netflix.com/en/press-releases/ready-set-binge-more-than-8-million-viewers-binge-race-their-

dos assinantes da plataforma pode prejudicar o lucro da empresa. Isso porque, para a autora, o serviço se beneficiaria muito mais a partir dos usuários que não realizam maratonas.

A razão para isso tem a ver com o modelo de assinatura da Netflix. Os assinantes da Netflix pagam uma taxa mensal e podem cancelar sua assinatura sempre que desejarem. Como o binge-watching oferece aos espectadores a opção de assistir a uma temporada completa de uma série em um mês, semana ou mesmo dia, alguns espectadores podem optar por isso. Isso significa que esses tipos de espectadores pagam apenas um mês - ou não pagam nada, já que a Netflix oferece um mês de teste gratuito para novos assinantes. Consequentemente, quando os telespectadores não fazem maratona das séries publicadas de uma só vez porque acompanham os episódios ao longo de vários meses, a Netflix lucra mais. Mesmo que muitos espectadores não o façam, a segmentação em episódios por meio de intervalos não temporais, pelo menos, facilita a possibilidade de os telespectadores “recriarem esse intervalo em uma série ao seu próprio tempo” (“Serial Boxes”)85 (VAN EDE, 2015, p. 48).

No próximo capítulo, analisaremos três séries originais da Netflix – a norte-americana

Sense8 (2015-2018), a brasileira 3% (2016-presente) e a alemã Dark (2017-presente) –, com o

objetivo de observarmos como o binge-publishing pode ter influenciado em possíveis alterações da narrativa desses produtos seriados, de forma a intensificar a prática do binge-watching na plataforma.

85 “The reason for this has to do with Netflix’ subscription model. Netflix subscribers pay a monthly fee and can

cancel their subscription anytime they would like. Since binge-watching gives viewers the option to watch a season of the binge-published serial in one month, week, or even day, some viewers might opt for that. This means that these types of viewers only pay for one month – or not even pay at all, since Netflix offers a free trial month to new subscribers. Consequently, when viewers do not binge‐watch the binge-published serial because they pace the episodes over multiple months, Netflix profits more. Even though plenty of viewers will not do so, the segmentation into episodes by means of non‐temporal gaps at least facilitates the possibility for viewers to “recreate this gap by self-pacing a series” (“Serial Boxes”)”.

CAPÍTULO IV – ANÁLISE DE PRODUÇÕES ORIGINAIS DA

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