• Nenhum resultado encontrado

Narração

No documento Download/Open (páginas 58-61)

CAPÍTULO II – NARRATIVA SERIADA FICCIONAL NA TELEVISÃO

2.3 Recursos narrativos da ficção televisual

2.3.1 Narração

Narrar pode ser considerada uma ação que consiste no relato de um acontecimento real ou imaginário, e é possível narrar por meio das palavras, das ações e até da música. Segundo Marc Vernet (1995), o ato de narrar implica em duas situações. A primeira delas é que o desenrolar da história contada deve estar plenamente à disposição de quem a conta, do seu narrador; a segunda é que essa história precisa seguir o desenvolvimento organizado por quem a conta e pelos modelos aos quais se adapta. Isso significa que a narração deve dar um desenvolvimento lógico para a história que está sendo contada e deve encerrar em uma solução. Em produções audiovisuais, essa ação pode ser exercida de diversas maneiras e por formas distintas, não só por um personagem da história. O roteirista e o diretor também são considerados narradores, ao imprimirem sua visão ao construir o roteiro e as cenas.

Para Campos (2009), o narrador é um recurso da narrativa que ama se disfarçar. Essa ideia é corroborada por Pallottini (2012), ao ressaltar que o narrador, em última instância, assume o papel onisciente daquele que tudo sabe e tudo vê sobre a narrativa. Segunda a autora, “a narração total, o conjunto formado por áudio e vídeo (criados a partir do ponto de vista do narrador onisciente) é o que produz, afinal, toda a história” (PALLOTTINI, 2012, p. 147). Na narração clássica cinematográfica, segundo David Bordwell (2005, p. 285), o narrador “tende a ser onisciente, com alto grau de comunicabilidade e tende a ser apenas moderadamente autoconsciente”, ou seja, o narrador que sabe mais do que os personagens, esconde pouco e quase nunca se dirige ao público. Como cronista da história contada, o narrador deve englobar a ação, o movimento e a passagem de tempo da narrativa, podendo se integrar à história como personagem ou tomar parte dela como observador (COMPARATO, 2016).

Sendo aquele que conta a história, o narrador é um recurso da narrativa que, “a partir de um ponto de vista, recebe, interpreta, seleciona, organiza e, por fim, narra os pontos de foco que selecionou” (CAMPOS, 2009, p. 47). Ainda de acordo com Campos (2009), dessa maneira, o narrador pode assumir seis pontos de vista da história que está contando: acima da história, do lado do personagem principal, do lado do personagem secundário, dentro do personagem principal, dentro do personagem secundário e voltado para dentro dele mesmo.

No primeiro caso, acima da história, o narrador assume a postura onisciente e onipresente, aquele que sabe tudo sobre os personagens e que transita entre todos eles. Quando está do lado do personagem, o narrador não tem acesso a toda história e não consegue estabelecer, a priori, todos os fios da narrativa. Dentro do personagem, por sua vez, o narrador conta apenas o que o personagem sabe ou percebe e mergulha na essência dessa figura, causando identificação entre narrador, personagem e espectador. Por fim, dentro dele mesmo, o narrador conta o que sabe e percebe da história sem a visão de um personagem, promovendo

identificação apenas entre narrador e espectador. Para Campos (2009, p. 62), quando o objetivo do narrador é criar ou aumentar “simpatia, empatia ou identificação do espectador com o personagem, ou grifar uma emoção, o narrador desce do ponto de vista de cima e vai para o lado ou para dentro do personagem que quer focalizar”.

Ao estudar a lógica das narrativas populares, Noël Carroll (1994) notou uma característica comum a grande parte delas, que chamou de narração erotética. Segundo ele, cenas, situações e acontecimentos que aparecem no início das narrativas estão relacionadas a cenas posteriores. Carroll entende que toda série, especialmente as de suspense ou horror, são iniciadas por questões em forma de cenas e respondidas somente no fim. Para o autor, “tal narração, que está no coração da narração popular, gera uma série de perguntas que o enredo vai em seguida responder” (1994, p. 187). Em histórias de mistério, por exemplo, Carroll lembra que o assassinato sempre gera uma questão – quem cometeu o assassinato? –, resposta que será dada ao espectador por meio de pistas ou da perspicácia do detetive. Já em um thriller de espionagem, deseja-se saber quem executou o roubo ou por quais razões. Carroll (1994, p. 188) afirma também que nas ficções populares não só os grandes arcos do enredo são ligados pela narração erotética, mas ela também “tende a fornecer o elo retórico para unidades de narração menores”.

Para exemplificar como a narração erotética funciona, Mittell (2015) analisa o piloto da série Veronica Mars, que utiliza o voice-over29 em primeira pessoa para estabelecer uma série de perguntas (e, automaticamente, respostas) que dirigem não só aquele episódio, mas toda a temporada. Esse recurso é, segundo o autor, “um aspecto vital da estrutura narrativa do programa, uma dimensão temática que se repete ao longo do episódio” (MITTELL, 2015, p. 75). Mittell destaca ainda que a mescla do voice-over com a narração erotética serve para direcionar o público sobre como assistir à série. Sobre um dos episódios da primeira temporada, Mittell descreve que a personagem-título Veronica faz diversos questionamentos sobre o assassinato de Lily Kane, a relação de sua mãe com Jane Kane e por que seu pai tem mentido para ela. Ao final, ela afirma ao público que descobrirá a verdade.

A lógica narrativa dessa sequência configura os principais arcos de história da temporada, estabelece a narração erótica do programa e garante que esses arcos não fiquem suspensos sem resposta. Como diz o monólogo final de Veronica: “Eu prometo isto: vou descobrir o que realmente aconteceu, e eu vou reunir essa família novamente”, uma declaração que serve também para assegurar aos telespectadores que essas perguntas têm respostas que serão reveladas no devido tempo e entregará resoluções emocionalmente

satisfatórias, pelo menos enquanto a rede permitir que a série continue no ar30 (MITTEL, 2015, p. 82-83).

Também chamada de modelo pergunta/resposta por Carroll, a narração erotética serve para delimitar as possibilidades do enredo. Para Carroll, “os vínculos que as perguntas narrativas colocam sobre o que vai acontecer em seguida são a origem da coerência da história” (CARROLL, 1944, p. 190).

No documento Download/Open (páginas 58-61)