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A serialidade na TV: folhetinização, repetição e fragmentação

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CAPÍTULO II – NARRATIVA SERIADA FICCIONAL NA TELEVISÃO

2.1 A serialidade na TV: folhetinização, repetição e fragmentação

Antes do surgimento da televisão, a ficção era explorada majoritariamente por outras linguagens, como a literatura, o teatro e a música, ainda que já estivesse presente em outras mídias como o rádio e o cinema. Como herança de todas as invenções anteriores, a televisão absorveu e se apropriou de um largo conjunto de processos e de técnicas para fazer da ficção televisual um de seus principais produtos, em especial a ficção seriada. A ficção televisual soube acumular a experiência adquirida pelo teatro e pelo cinema, acrescentou recursos do rádio e mergulhou numa das “mais ricas e permanentes fontes de matéria ficcional, a narrativa pura, a literatura de gênero épico, escrita ou não” (PALLOTTINI, 2012, p. 24).

A ficção seriada televisual também se inspirou no romance popular, criado na década de 1830 na França para encantar a burguesia, assim como no melodrama, gênero teatral nascido a partir do universo do romance popular e que ganhou grande popularidade com a TV e com o cinema. Caracterizado por combinar sentimentalismo, excessos estéticos, personagens esquemáticos e emoção, o melodrama encontrou nas narrativas cinematográficas e, principalmente, nas narrativas seriadas visuais – sendo grande exemplo dessas as telenovelas brasileiras – uma fórmula de sucesso, arrancando lágrimas do público ou provocando ódio sobre determinado personagem (ZANETTI, 2009).

Anna Maria Balogh (2002), por sua vez, afirma que a narrativa ficcional na televisão abriga estruturas antigas e possui certas características da literatura descritas por estudiosos da Narratologia, como a necessidade de ser finita; possuir um esquema mínimo de personagens; que esses personagens sigam algum tipo de qualificação ao longo da história (bons ou maus, por exemplo) e executem ações que garantam o andamento da história; de promover uma temporalização perceptível entre um momento passado e outro futuro, entre outras. Além disso, a autora defende que a ficção na TV se apoia e se desenvolve de acordo com uma gama de padrões que passam “pelos modos de narrar, pela adscrição a formatos e grade horárias marcadas, pela maior adesão a gêneros consagrados e todo um vasto universo de elementos que a existência da TV nas últimas décadas tornou codificados” (BALOGH, 2002, p. 52).

Desde seu início, a serialização da ficção na TV apoia-se na estrutura narrativa tradicional, composta por elementos como narração, personagens, tempo, espaço e acontecimentos. Mas foi no folhetim que a narrativa seriada de ficção na TV encontrou um modelo para prender a atenção das audiências. Jesús Martín-Barbero (2015) resgata o histórico do folhetim e o caracteriza como “fato cultural” ao romper com a literatura tradicional e abrir a narrativa para a pluralidade e para a heterogeneidade das experiências literárias (MARTÍN- BARBERO, 2015, p. 176). O autor também posiciona o folhetim como um formato literário popular publicado em episódios, implicando em diferentes modos de escrever e de leitura. Esses

aspectos são importantes para a criação da narrativa seriada ficcional televisual, uma vez que o processo de produção da narrativa passa a ser ligada à periodicidade e à pressão salarial, além de romper com o anterior distanciamento do escritor e do leitor, que passa a interpelar pelos rumos da história.

Martín-Barbero (2015) ainda destaca o surgimento da dialética entre escritura e leitura, que ajuda a compreender o novo gênero literário. Segundo ele, o universo do leitor acaba sendo incorporado ao processo de produção do folhetim, deixando traços do popular no texto. Em um primeiro nível, o autor ressalta que a organização material do texto, as escolhas de composição tipográficas, fazem com que o leitor tenha vontade de ler a narrativa. Em segundo, terceiro e quarto níveis, os quais nos interessam aqui, há um sistema de dispositivos de fragmentação da leitura e de sedução, além do suspense. Quanto aos dispositivos de sedução, o autor ressalta a estrutura que ele chama de aberta.

É através da duração que o folhetim consegue “confundir-se com a vida”, predispondo o leitor a penetrar a narração, a ela se incorporando mediante o envio de cartas individuais ou coletivas e assim interferindo nos acontecimentos narrados. A abertura aberta, o fato de escrever dia após dia conforme um plano que, entretanto, é flexível diante da reação dos leitores também se inscreve na confusão da narrativa com a vida, permitida pela duração (MARTÍN-BARBERO, 2015, p. 187).

Sobre o quarto nível da organização em episódios, Martín-Barbero aponta que o suspense é o elemento buscado pelo autor para fazer com que o leitor retorne à narrativa no próximo dia e desenvolva interrogações que disparem sua curiosidade para o próximo episódio. Esse elemento precisa captar a atenção do leitor, seja o que acompanha a narrativa há tempos ou aquele que está chegando naquele episódio. “O suspense introduz assim outro elemento de ruptura com o formato-romance, já que não terá um eixo, e sim vários, que o mantêm como narrativa instável, indefinível, interminável” (MARTÍN-BARBERO, 2015, p. 188). Ao observarmos as narrativas seriadas ficcionais televisuais, todas inspiram-se nesses quatro níveis colocados por Martín-Barbero sobre o folhetim.

Uma vez que a narrativa seriada ficcional para televisão encontrou no folhetim um modelo de inspiração para atrair (e conquistar) as audiências, Omar Calabrese (1987) e Umberto Eco (1989) buscaram entender como a repetição é uma estratégia bem-sucedida para consagração do produto serializado. Para Calabrese (1987), a repetição na ficção seriada televisual não significa apenas as continuações das ações e das tramas dos personagens, mas também os recursos utilizados, como os temas abordados e os cenários apresentados. O autor

estabelece três noções de repetição – “modo de produção de uma série a partir de uma matriz única”, “como mecanismo estrutural de generalizações de texto” e como condição de consumo (CALABRESE, 1987, p. 43). Essas noções fazem com que Calabrese entenda a repetição como geradora de dois tipos de obras que seguem fórmulas repetitivas, mas opostas: variação de um idêntico, caso de séries como Rin-tin-tin e Lassie, isto é, narrativas seriadas ficcionais que se iniciam de uma mesma ideia e são replicadas em inúmeras situações, e identidades das mais diferentes, caso da soap operas Dallas e Dinastia, obras que nascem de ideias diferentes, mas que desenvolvem as mesmas histórias, gerando material idêntico.

As reflexões de Calabrese foram importantes para que Eco pensasse sobre o produto seriado e se, a partir de uma produção repetitiva que segue fórmulas com objetivo de lucro, é possível encontrar alguma inovação nessa ideia de repetição. Para Eco (1989, p. 122), as narrativas seriadas televisivas recebem a característica de uma “tipologia da repetição” porque são prolongadas além do necessário, visando aumentar o lucro ao máximo, mas fazendo com que a própria história que está sendo contada se repita, tirando, portanto, toda a possibilidade de inovação sobre o texto. No entanto, buscando uma definição mais adequada para o termo repetição nos estudos de serialidade, Eco compara a serialidade dos meios de comunicação de massa com a estética moderna a respeito das obras de arte e de como, para serem reconhecidas como tais, apresentam-se como “únicas (isto é, não repetíveis) e ‘originais’” (ECO, 1989, p. 120). Para o autor, a noção de originalidade ou de inovação das obras de arte entende-se por “um modo de fazer que põe em crise as nossas expectativas, que nos oferece uma nova imagem do mundo, que renova as nossas experiências” (ECO, 1989, p. 120).

No caso das narrativas seriadas ficcionais na TV, Eco passa a ver o conceito de repetitividade e serialidade desses produtos como “alguma coisa que à primeira vista não parece igual a qualquer outra coisa” (ECO, 1989, p. 122), e elenca gêneros dessas narrativas ficcionais que podem apresentar elementos repetidos, mas que também são mostradas como originais e diferentes – retomada (continuação ou nova história de um tema de sucesso), decalque (reformulação de uma história de sucesso, também conhecido como remake), série (história com o mesmo número de personagens que rodam e apresentam as mesmas tramas – retorno do idêntico), saga (sucessão de eventos que seguem um tempo histórico e mostram o crescimento e envelhecimento dos personagens), e dialogismo intertextual (citações indiretas ou explícitas de histórias ou textos do passado).

Assim, para encontrar elementos de inovação na serialidade televisiva, Eco esclarece que o espectador pode fazer duas leituras de um mesmo produto: o leitor de primeiro nível é o leitor ingênuo, que se satisfaz apenas com a história que lhe é contada; o leitor de segundo nível

é o mais exigente, aquele que vai além da simples decodificação e que permite ser provocado pelas entrelinhas do texto audiovisual – é esse espectador que busca (e até exige) alguma inovação na serialidade.

Por fim, a serialidade televisiva é marcada também pela fragmentação. Com base no conceito de fluxo e de programação para estabelecer a presença da publicidade na televisão, Machado (2000) explica que

[...] a programação televisual é muito frequentemente concebida em forma de

blocos, cuja duração varia de acordo com cada modelo de televisão. Em geral,

televisões comerciais têm blocos de menor duração que as televisões públicas, pela razão óbvia de que precisam vender mais intervalos comerciais. Uma emissão diária de um determinado programa é normalmente constituída por um conjunto de blocos, mas ela própria também é um segmento de uma totalidade maior – o programa como um todo – que se espalha ao longo dos meses, anos, em alguns casos até décadas, sob a forma de edições diárias, semanais ou mensais. Chamamos de serialidade essa apresentação

descontínua e fragmentada do sintagma televisual. No caso específico das

formas narrativas, o enredo é geralmente estruturado sob a forma de capítulos ou episódios, cada um deles apresentado em dia ou horário diferente e subdivido, por sua vez, em blocos menores, separados uns dos outros por

breaks para a entrada de comerciais ou de chamadas para outros programas

(MACHADO, 2000, p. 83).

Dessa forma, as narrativas seriadas para TV são concebidas de forma segmentada, escritas e desenvolvidas para que acomodem as interrupções comerciais. Machado (2000, p. 83) destaca ainda que é comum que as narrativas seriadas apresentem, no início, um rápido resumo dos acontecimentos anteriores e, ao final do episódio, um gancho de tensão, “que visa manter o interesse do espectador até o retorno da série depois do break ou no dia seguinte”. Esquenazi (2011) afirma que esse é um dos motivos pelos quais a serialidade televisiva parece mais rigorosa que outras serialidades, pois os produtos gerados pela TV são criados a partir de fórmulas que respeitam esse conceito. Esquenazi reforça também a ideia de que as narrativas seriadas ficcionais televisivas são concebidas de acordo com as interrupções comerciais e que a duração dos episódios/capítulos obedece com exatidão o tempo destinado na programação e consideram o período destinado a cada break. Para Machado (2000), respeitar a inserção dos intervalos comerciais não é apenas uma obrigação de natureza econômica, mas também de organização, garantindo que o espectador tenha tempo de respiração e de absorção da narrativa. Porém, ao mesmo tempo, Esther Van Ede (2015) ressalta que o respeito a esses comerciais e temporalidades pode levar espectadores a esquecer personagens e linhas narrativas do produto. Por isso, essa condição da narrativa seriada televisiva exige que roteiristas utilizem ganchos

como recursos para apreender a atenção dos espectadores. Os ganchos são comparáveis ao suspense citado por Martín-Barbero (2015) a respeito do folhetim, ou seja, situações cruciais que serão resolvidas somente no capítulo seguinte ou que preparam uma ação ou um conflito. De acordo com Flavio de Campos (2009, p. 243), “se suspense é a expectativa de um incidente, o gancho é a interrupção da narrativa na expectativa de um incidente”. Já Pallottini (2012, p. 103) entende o gancho como um “truque usado, geralmente, para criar suspense ou expectativa sobre uma revelação, o fim de uma dúvida, a resolução de um dilema: enfim, a novidade”.

Ainda segundo Machado, há três tipos de narrativas seriadas na televisão: as narrativas teleológicas ou seriais, em que há uma ou várias narrativas entrelaçadas que se sucedem ao longo dos capítulos (caso das telenovelas, alguns tipos de séries ou minisséries); narrativas episódicas, em que “o que se repete no episódio seguinte são apenas os mesmos personagens principais e uma mesma situação narrativa” (MACHADO, 2000, p. 84) – caso dos seriados como CSI ou Law & Order; e narrativas em que a única coisa que se mantém é a temática da narrativa, porém, utilizando personagens e cenários distintos – caso da série Além da

Imaginação.20

Para entendermos como as narrativas seriadas ficcionais televisivas ganharam um papel de destaque entre as produções da televisão, vamos analisar a evolução desses produtos na cultura norte-americana, uma vez que as narrativas produzidas naquele país, conforme reforça Esquenazi (2011, p. 11), “continuam à frente das outras produções nacionais que, em muitos casos, as copiam”.

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