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Concepção espaço-temporal em Dark

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CAPÍTULO IV – ANÁLISE DE PRODUÇÕES ORIGINAIS DA NETFLIX

4.2 Sense8

4.4.3 Concepção espaço-temporal em Dark

Devido à proposta da história, Dark é exemplo interessante para a concepção espaço- temporal em sua versão mais intrincada. A complexidade da narrativa se dá, principalmente, pela manipulação do tempo que os roteiristas propõem à audiência. Logo no primeiro episódio,

a epígrafe de Einstein é seguida por um discurso declamado pelo narrador onisciente, discurso que deixa claro a importância do tempo para a série e que a há uma junção espaço-temporal que vale ser guardada na memória.

Nós acreditamos que o tempo decorre de forma linear. Que ele avança uniformemente para sempre. Até o infinito. Mas a diferenciação entre presente, passado e futuro não passa de uma ilusão. O ontem, o hoje e o amanhã não se sucedem, mas estão conectados em um círculo infinito. Tudo está conectado (Dark, Episódio 1, 2017).

Enquanto esse trecho ganha a tela, a introdução visual mostra todos os personagens presentes na série e suas imagens em todos os tempos em que atuam (1953, 1986 e 2019). Essa escolha aparentemente aleatória das fotos combina com o texto e reforça a ideia de que tudo está ligado e que o tempo proposto é sempre o mesmo, circular. Ao final da apresentação das fotos, o mural se abre e é possível ver que todas as imagens estão interligadas por fios de lã (Figura 29). Essa introdução não-linear ajuda a garantir o ar de mistério à narrativa.

O conflito central da história parece estar relacionado ao desaparecimento de Erik Obendorf e Mikkel Nielsen, ambos ocorridos nos meses de outubro e novembro de 2019. Porém, há outros elementos que despertam a atenção do espectador para a temática do tempo/espaço. Além da epígrafe de Einstein e do discurso acima, após a vinheta, a data “21 de junho de 2019” é inserida, em formato de letreiro na tela, para que o público se localize no tempo presente da história. A cena que segue mostra um homem (Michael Kahnwald) que se enforca, deixando uma carta com a inscrição: “não abrir antes de 4 de novembro de 2019, às 22h13”, recurso que cria expectativa na audiência. Em seguida, Jonas acorda de um pesadelo e uma nova data é inserida, “4 de novembro de 2019”. Essa escolha pela inserção clara de datas faz com que o público acompanhe o tempo diegético e sinta que algo está prestes a acontecer. O tema tempo é sugestionado de outra maneira, quando Mikkel faz uma brincadeira de ilusionismo com o pai Ulrich e diz: “a questão não é onde. Mas quando”. Toda a ação do primeiro episódio ocorre em 2019, o que muda a partir do fim do episódio 2.

No segundo capítulo, a audiência descobre que Mikkel Nielsen está vivo, mas que viajou no tempo. A última cena do episódio mostra Mikkel saindo das cavernas de Winden, percorrendo a cidade até chegar em sua casa. Entretanto, ele vê uma moto de modelo antigo, assim como um carro que não é o de seus pais. Ao ser recebido por um jovem desconhecido, ele diz que esta é sua casa e que ele mora ali; o jovem diz que Mikkel está enganado e que seu nome é Ulrich, e ele é morador da casa. Sozinho, Mikkel percebe um jornal na soleira de sua residência. A notícia principal aborda o desastre de Chernobil, ocorrido em 1986 na cidade

ucraniana: “Chernobyl, um ano depois”. Em seguida, a câmera guia o olhar de Mikkel para a data do jornal, 5 de novembro de 1986 (Figura 24). Essa pista obriga o espectador a compreender duas temporalidades, a do presente, em 2019, e a do passado, em 1986.

Figura 24: Jornal de 1986 sobre desastre de Chernobil

Fonte: Dark, Episódio 2, Netflix.com

Nos próximos episódios, as diferenças entre as duas temporalidades podem ser percebidas por meio das linhas narrativas dos personagens e também por recursos audiovisuais. No terceiro capítulo, novos personagens são introduzidos, como uma enfermeira responsável por cuidar de Mikkel no hospital, um delegado de polícia próximo da aposentadoria e uma garota que pega pássaros mortos e os desenha em um caderno – são Ines Kahnwald (avó de Jonas e mãe de Michael), Egon Tiedemann (pai de Claudia e avô de Regina) e Charlotte Doppler, respectivamente. Em paralelo, dentre os recursos audiovisuais utilizados para marcar 1986 estão a trilha sonora – com o uso da canção “Shout”, do grupo Tears for Fears –, o figurino – casacos coloridos, cabelos armados e cacheados, estampas xadrezes e ombreiras (Figura 25), elementos muito presentes na moda da década de 1980 – e objetos como cubo mágico e telefone a disco.

Figura 25: Katharina e Hannah nos anos 1986, as roupas condizentes com a época

Fonte: Dark, Episódio 3, Netflix.com

Há também induções mais sutis nos diálogos, como quando Katharina diz a Mikkel que ele deve tomar ácido por falar coisas tão desconexas (o uso do ácido foi potencializado na década de 1980) ou quando Bernd Doppler fala a Claudia Tiedemann que, após “o acidente”, ela deve escolher qual história contar sobre o que acontece na usina nuclear de Winden, uma forma enrustida de abordar o vazamento nuclear de Chernobyl, ocorrido em 26 de abril de 1986. É somente com a inserção desses recursos que o espectador começa a questionar alguns dos pontos soltos deixados no fim do primeiro episódio, como o corpo desconhecido encontrado na floresta (ele carregava um walkman que tocava a música “Irgendwie Irgendwo Irgendwann” (Em algum lugar, algum dia, em tradução livre), da cantora Nena, lançada em 1984) ou onde está Erik Obendorf. Erik é mostrado em um quarto azul e preso em uma espécie de cadeira elétrica, enquanto a TV transmite o videoclipe da música “You Spin Me Round (Like a Record)”, da banda Dead or Alive.

Até o episódio 6, “Assim foi criado o mundo”, o espectador entende que precisa seguir as duas temporalidades propostas (presente e passado). Contudo, no fim do episódio 7, a última cena mostra um homem lavando o chão do bunker, suas costas cobertas com uma tatuagem da Tábua de Esmeralda – é Noah. Ele, então, escreve na parede a data 9 de novembro de 1953, logo abaixo de outra data, 5 de novembro de 1953. Abre-se a possibilidade, portanto, de uma terceira temporalidade na série, o que se confirma no episódio seguinte. Aparentemente, o capítulo 8 acontece inteiramente no ano de 1953, uma vez que os carros são antigos e os

personagens usam roupas das décadas de 1940-50, como vestidos rodados e cinturas que começam a ser marcadas nas mulheres e roupas sociais para meninos e homens. Egon Tiedemann é apresentado na segunda cena do episódio, ele está bem mais novo do que quando aparece na temporalidade de 1986, e seu carro de polícia é um Volkswagen Fusca. A usina nuclear de Winden também está sendo construída. O ano de 1953 é confirmado quando Ulrich Nielsen de 2019 chega ao outro lado da caverna e é interceptado por uma mulher e seu filho em uma estrada, ela confirma que estão em 1953. Ulrich também se choca ao descobrir que a mulher e rapaz que o interrompem são sua avó, Agnes Nielsen, e seu pai, Tronte, ainda adolescente (Figura 26). Tronte, inclusive, possui um visual muito semelhante ao do ator James Dean, muito famoso nas décadas de 1940-50. A terceira temporalidade também apresenta ao público Helge Doppler quando criança.

Figura 26: Ulrich de 2019 viaja para 1953 e encontra sua avó, Agnes, e pai, Tronte

Fonte: Dark, Episódio 8, Netflix.com

Os episódios 9 e 10 trabalham com as três temporalidades simultaneamente. No capítulo 9, a série apresenta claramente as datas de 1953, 1986 e 2019 em formato de letreiro para posicionar o público e direcionar seu olhar para os acontecimentos em ordem cronológica, o que não havia acontecido até o momento. Essa estratégia é uma forma de esclarecer como as três temporalidades estão conectadas e, de certa forma, acontecem “ao mesmo tempo”, pois ocorridos nos três tempos se influenciam entre si. Essa ideia também é confirmada por meio

dos diálogos estabelecidos entre o Estranho/Andarilho e o relojoeiro e cientista H. G. Tannhaus, responsável por construir a máquina do tempo que cria a fenda entre as temporalidades.

Após orientar o olhar e o entendimento do espectador sobre os três tempos, o último episódio tem início com um flashback, em que são mostrados Peter Doppler e Tronte Nielsen na noite do desaparecimento de Mikkel – esse flashback é acionado como um recurso de tempo para confirmar que o corpo desconhecido encontrado na floresta é de Mads Nielsen e que Peter e Tronte nada tem a ver com o que aconteceu, ainda que agissem de maneira suspeita até então. Depois, o episódio intercala as três linhas temporais, mostrando as ações de todos os personagens da história até o momento em que o Estranho/Andarilho, que é Jonas no futuro, provoca uma nova abertura do buraco de minhoca. Ainda que o espectador já saiba que os acontecimentos do passado influenciam no futuro e vice-versa, a ordem cronológica da série é abalada quando Charlotte encontra uma notícia de 1953 nos arquivos da polícia sobre o sequestro de Helge em 1953, e o suspeito de tê-lo raptado é Ulrich Nielsen, o Ulrich de 2019 (Figura 27).

Figura 27: Ulrich Nielsen preso em 1953

Fonte: Dark, Episódio 10, Netflix.com

Outro evento que bagunça o entendimento cronológico da série é o aparecimento de Helge Doppler no bunker de 1986, uma vez que ele envelheceu no tempo correto e apareceu mais velho também em 1986 – dessa forma, como será que ele retornou a 1953? Por fim, é

possível perceber que Claudia Tiedemann é capaz de viajar além das duas temporalidades apresentadas, 1953 e 2019, sendo ela de 1986. Ela também aparece na floresta de Winden, carregando uma espécie de arma, envolta por uma poeira. Esse mesmo ambiente é repetido quando Jonas adolescente viaja pelo buraco de minhoca e vai parar, aparentemente, no futuro. Em relação ao espaço, a história se passa em Winden, município da Alemanha. Dentre as locações da série, destacam-se a floresta e as cavernas de Winden, a usina nuclear, o asilo, o colégio, o hotel e o hospital da cidade, as residências das famílias Nielsen, Kahnwald, Doppler e Tiedemann, além da cabana e do bunker misterioso dos Doppler. Todas as locações aparecem nas três temporalidades da narrativa seriada, com sutis mudanças, como, por exemplo, a mansão dos Doppler em 1953 que se torna o Waldhotel em 2019, propriedade dos Tiedemann, ou o bunker dos Doppler que passa por transformações em 1986, enquanto parece abandonado tanto em 1953 quanto em 2019. Nesse sentido, as locações também são importantes para o desenrolar da trama e para situar e direcionar a audiência sobre os acontecimentos nas temporalidades.

Embora a série deixe claro em diversos momentos (por meio de datas e recursos audiovisuais já sinalizados) em que ano os personagens estão, acompanhá-los nas três temporalidades facilmente confunde o espectador e exige que sua atenção seja muito maior para buscar a solução para os mistérios, entender as ligações e consequências das ações de cada personagem para a progressão da história.

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