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CAPÍTULO IV – ANÁLISE DE PRODUÇÕES ORIGINAIS DA NETFLIX

4.1 Categorização

Conforme descrito no capítulo 3, a distribuição de produtos audiovisuais seriados no formato binge-publishing tornou-se possível visto que a plataforma Netflix não adota o sistema de programação e, por conseguinte, intervalos comerciais característicos da televisão. Ao encomendar temporadas fechadas de narrativas seriadas ficcionais para lançamento de uma só vez, a Netflix encerra com a assistência fragmentada da TV – acabam-se os intervalos dentro dos episódios e não há mais intervalos temporais entre episódios, uma vez que esse espaço temporal entre um capítulo e outro é determinado por quem assiste, acontecendo somente na hora que convém ao espectador. Sendo assim, como há apenas intervalos entre temporadas, a hipótese desse trabalho é a de que há alterações na estrutura narrativa dessas séries Originais Netflix, lançadas no sistema binge-publishing.

No capítulo 2, em que se abordam recursos narrativos da ficção televisual, fica evidente que a criação narrativa de uma série ficcional para a TV está relacionada à interrupção e à fragmentação características do meio em questão. Uma vez que o modelo televisivo necessitou (e ainda necessita) da publicidade para ser o que é, os intervalos comerciais que interrompem a fruição de narrativas seriadas (e também de outros programas) devem ser respeitados incondicionalmente, promovendo, assim, a inserção de ganchos – de maior ou menor tensão – entre intervalos comerciais, entre os intervalos temporais de um episódio a outro e entre temporadas. Outro elemento narrativo também ligado aos conceitos de interrupção e fragmentação da TV são as recapitulações, determinantes para que o telespectador acompanhe todos os desdobramentos da narrativa durante cada pausa inserida, seja ela em um mesmo episódio, entre episódios ou entre temporadas.

As seis categorias de análise estabelecidas aqui foram criadas a partir dos recursos/elementos narrativos presentes na ficção televisual e descritos no capítulo 2 (narração, tempo e espaço, formatos episódico e serial, ganchos e recapitulações). São elas:

1) Narração erotética: A narração é um recurso utilizado para o desenvolvimento lógico da

diegese e pode ser inserida de diversas formas, como por um narrador onisciente ou por um personagem que conta o que se passa em primeira pessoa. Partindo da ideia desse desenvolvimento lógico, Noël Carroll (1994) sugeriu o termo narração erotética para caracterizar a construção em que cenas, situações e acontecimentos que aparecem no início das narrativas estão relacionadas a cenas posteriores. Como um modelo de pergunta e resposta, a

narração erotética funciona para delimitar as possibilidades do enredo e estabelecer questões acerca da trama que devem ser respondidas até o fim da história proposta.

2) Formato episódico-serial: A narrativa ficcional televisual pode ser construída de formas

diferentes, mas geralmente respeita dois tipos de formatos, o serial e o episódico. O formato serial é aquele em que os arcos dramáticos são desenvolvidos mais longamente, muitas vezes por mais de uma temporada, e exige que o espectador assista a todos os episódios para compreender o desenrolar da série. Já o formato episódico apresenta estrutura autoconclusiva, com começo, meio e fim, e possibilita que a audiência assista a episódios soltos durante a temporada sem comprometer o entendimento do todo. Autores como Newcomb, Feuer (apud CAPANEMA, 2016) e Mittell (2015), no entanto, afirmam que a mescla dos dois formatos é o que a televisão pode oferecer de mais interessante em termos de serialização. Para Mittell (2015), uma narrativa pode ser considerada complexa quando une arcos longos (formato serial) a arcos curtos (formato episódico), satisfazendo ambos os tipos de espectador. Ao analisar o fenômeno do binge-watching e sua relação com as séries da Netflix lançadas de uma só vez, Massarolo et al. (2017) reforçam essa ideia.

O modelo da estrutura serial é o elemento diferencial utilizado pela Netflix, por exemplo, para “fisgar” o telespectador na primeira parte de uma temporada, funcionando como um gancho para o engajamento das audiências. Por outro lado, a estrutura narrativa episódica pressupõe uma trama híbrida, com dilatação dos arcos dramáticos. Trata-se de um modelo de narrativa autoconclusiva, que começa e termina no mesmo episódio, comum em séries de temáticas médicas e policiais (MASSAROLO et al., 2017, p. 277).

Esse modelo misto ganhou força em meados da década de 1970 e nos anos 1980, época em que surgiram os ensemble shows (ESQUENAZI, 2011), séries em que não há apenas um protagonista, mas vários personagens principais que ganham a mesma atenção da narrativa e estão presentes nos arcos dramáticos autoconclusivos (episódico) e nos arcos maiores (serial).

3) Concepção espaço-temporal: O tempo e o espaço da diegese são recursos importantes para

o desenvolvimento lógico e para o entendimento das narrativas propostas ao espectador. Segundo Marcel Martin (2003), o conceito de tempo pode ser identificado pelas noções de data (indicadas por letreiros, calendários, eventos sociais, figurino etc.) e pela de duração (tempo transcorrido da narrativa). Sobre a duração, quando há um tempo revertido, a narrativa apresenta um flashback, o retorno ao passado; há ainda flashforwards, que representam

acontecimentos no futuro. O espaço, por sua vez, funciona como um quadro de referência para posicionar os personagens na narrativa. Ambos os conceitos se interligam e atuam em um contínuo. De acordo com Mittell (2012, 2015), uma narrativa complexa pode ser caracterizada por uma concepção espaço-temporal intrincada, em que trabalha com diferentes temporalidades, dimensões e espaços durante uma única trama, o que exige do espectador mais atenção durante a assistência.

4) Multiplicidade de tramas: Assim como o formato episódico-serial trabalha arcos maiores

e menores durante uma temporada, a multiplicidade de tramas serve como termômetro para uma narrativa que exige a dedicação do espectador. Quanto mais personagens (principais ou não) são apresentados na diegese, mais difícil é acompanhar os desenvolvimentos do enredo – é preciso não só acompanhar os protagonistas e como eles se envolvem na trama principal, mas também entender com quais outros personagens se relacionam e têm suas linhas narrativas envolvidas. Para Mittell (2012, 2015), a complexidade advém do aparecimento de diversos protagonismos, tramas e perspectivas que se relacionam durante o desenvolvimento da história. Como exemplo, a série Game of Thrones, da HBO, se desdobra sobre diversas “casas” e “povos” e introduz novos personagens a cada temporada, que têm suas tramas convergentes (ou não) em relação a outros já desenvolvidos. É possível também indicar que a multiplicidade de tramas é um recurso que também se tornou popular após a criação dos ensemble shows, narrativas que precisam apresentar e desenvolver diversas linhas narrativas de maneira coerente. Essa categoria exige uma tabela própria, em que são descritas as “tramas principais” e as “tramas secundárias” de cada série analisada.

5) Ganchos: De acordo com Costa (2000), Pallottini (2012) e Van Ede (2015), o elemento

gancho é usualmente utilizado para manter a expectativa e a curiosidade da audiência em relação a algum acontecimento em uma trama quando há alguma interrupção da narrativa. É um momento de grande suspense, emoção ou mistério. Esse recurso assume duas funções importantes: a de delinear os intervalos existentes na narrativa (sejam intervalos dentro do episódio, intervalos entre episódios ou entre temporadas) e também de ser um catalisador para que a audiência queira assistir mais daquela história. É possível trabalhar ganchos aqui nomeados de “menor tensão”, posicionados antes dos blocos que dividem um episódio devido aos intervalos comerciais, e os cliffhangers, de grande intensidade e geralmente posicionados no fim de episódios ou na pausa entre temporadas. Para Van Ede, como o suspense ainda é uma das razões mais fortes que fazem o público continuar a assistir a uma série sem parar, e os

“cliffhangers são a epítome do suspense” (VAN EDE, 2015, p. 39), os ganchos continuam com sua importância para a estrutura narrativa, ainda que não sejam inseridos a todo o tempo (como entre os intervalos comerciais dentro dos episódios) ou com tanta intensidade. No caso da Netflix, esse recurso tem de ser algo que aguce a curiosidade do público para assista ao próximo capítulo logo em seguida. Mas também é necessário que esse gancho seja, de alguma maneira, retomado em um capítulo seguinte para que o espectador continue retendo a atenção. Além de ganchos de tensão menor, cliffhangers e retomadas, outro tipo de gancho popular é a elipse, voltada para passagens de tempo diegéticas e com a função de preencher um buraco temporal na narrativa, ligando uma ponta a outra. Em geral, a elipse é identificada pela sucessão de imagens, cobertas por trilha sonora. Para Van Ede (2015), no entanto, esse recurso é bem menos presente nas produções originais da Netflix, visto que a distribuição de uma só vez e o consumo em maratona fazem com que a noção de tempo na narrativa se transforme em um borrão, em que não é mais necessário marcar tão bem as passagens de tempo. Ao mesmo tempo, é possível identificar que parte das séries Originais Netflix são criadas em cima de um período diegético mais comprimido e, assim, sem a necessidade da inserção de elipses. Essa categoria, portanto, exige uma tabela própria, em que são identificadas a presença (ou a ausência) dos quatro tipos de ganchos: “ganchos de menor tensão”, “cliffhangers”, “retomada de ganchos” e “elipses”.

6) Recapitulações: Com a missão de repetir informações e acionar a memória da audiência, as

recapitulações dão sentido aos ganchos, às questões e aos pontos de virada inseridos nas narrativas seriadas ficcionais. Para isso, há dois tipos de recapitulações: as paratextuais, que repetem informações ou cenas da narrativa (caso do quadro "no capítulo anterior" ou das vinhetas feitas sobre cenas da série), e as diegéticas, que retomam informações por meio de diálogos, flashbacks ou sugestões visuais. Com a missão de “tampar buracos” de uma semana para a outra, a recapitulação tradicional tem passado por alterações diante de novas formas de distribuição de conteúdo audiovisual. Como os roteiristas criam uma narrativa a ser experimentada de uma só vez, é possível dizer que a audiência que pratica maratonas apresenta uma memória mais apurada sobre os acontecimentos da história, pois ela acabou de assisti-los, e não há uma semana. Porém, ao mesmo tempo, Van Ede (2015) lembra que aqueles que não assistem a narrativa de uma só vez necessitam da inserção de recapitulações para entender a complexidade da história proposta. Assim, o ideal é que haja um equilíbrio nas recapitulações para acomodar tanto aqueles que estão assistindo em maratona (e podem, portanto, avançar na narrativa e ignorar a recapitulação) quanto os que assistem um episódio de cada vez ou até perdem algum episódio, mas ainda necessitam entender o que está acontecendo. Essa categoria

também exige uma tabela própria, em que são identificadas as presenças (ou ausências) das “recapitulações paratextuais”, divididas em “no capítulo anterior”, “vinheta” e “episódios de recapitulação”, e das “recapitulações diegéticas”, divididas em “diálogos”, “sugestões visuais”, “voice-over” e “flashbacks”.

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