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A práxis pedagógica no cárcere: educar na contemporaneidade

No documento EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (páginas 145-148)

Toda prática social é determinada: por um jogo de forças (inte- resses, motivações, intencionalidades); pelo grau de consciência de seus atores; pela visão de mundo que os orienta; pelo contex- to onde esta prática se dá; pelas necessidades e possibilidades próprias a seus atores e própria à realidade em que se situam. (CARVALHO; NETTO, 1994, p. 59)

A primeira função de um verbo é indicar ação, ou seja, estamos sempre realizando alguma atividade, seja a leitura de um livro, compras do mês, corrida matinal no parque, debatendo assuntos relevantes, ou não. O que importa é: o ser humano está sempre bus- cando desenvolver alguma tarefa. Puxando o gancho para o excerto acima, quando a ação envolve práticas que impactam na sociedade, como apontam Carvalho e Netto, alguns aspectos influenciam o exercício de tais práticas, favorecendo para seu sucesso ou fracasso, a depender das expectativas manifestadas por cada participante da ação social.

Conforme Santomé (1991, p.3), a prática pedagógica “vai sendo construída pouco a pouco, sobre a base das interpretações das si- tuações em que se vê envolvido em suas escolas e salas de aula e, do resultado das decisões que adota”. Desse modo, é salutar que o professor tenha em mente o lugar onde suas falas, bem como pos- turas e métodos, serão disseminados, assumindo, dessa maneira, uma consciência da práxis a partir da realidade na qual pretende transmitir saberes. Acerca disso, a ação do professor é:

[...] um processo que ao mesmo tempo se reafirma e se supera a si mesmo: ele só é possível mediante a repetição mecânica de determinadas ações, porém simultaneamente leva o sujei- to a enfrentar problemas novos e o incita a inventar soluções para tais problemas. Com isso o trabalho abre caminho para o sujeito humano refletir, no plano teórico, sobre a dimensão

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criativa de sua atividade, quer dizer, sobre a práxis. No trabalho se encontra, por assim dizer, o caroço da práxis; mas a práxis vai além do trabalho. (KONDER, 1992, p. 11)

Como a própria dinâmica da vida, tudo à nossa volta sofre mu- danças diárias, e não seria diferente com a docência. Cada sala de aula é um espaço diferente de outros dentro da escola, mesmo se o professor lecionar em outra sala da mesma série e aplique os mes- mos conteúdos, a manifestação e os anseios de todos os indivíduos exigirão do profissional uma mudança na sua prática. No que con- cerne à educação nas penitenciárias, a práxis não pode, de maneira alguma, deixar de olhar a condição dos alunos enquanto privados da liberdade, mas que permanecem detentores de direitos.

Olhar para a cela de aula — a alegoria surge em face da relação sala, ambiente externo, próprio da escola comum, e cela, ambiente fechado, no qual também é ofertado ensino —, sem o estigma que ela carrega, encontrando mecanismos para mudar o quotidiano dos alunos du- rante o cárcere e após o cumprimento da pena, assim, enxergar o quotidiano das prisões, entendendo o ensino nesses espaços como algo diferenciado, mas não diferente da educação fora dos presídios. Desse modo, Santos (2007, p. 88) propõe que:

Para uma ecologia de saberes, o conhecimento como interven- ção no real — não como representação do real — é a medida do realismo. A credibilidade da construção cognitiva é men- surada pelo tipo de intervenção no mundo que ela proporcio- na, auxilia ou impede. Como a avaliação dessa intervenção sempre combina o cognitivo com o ético-político, a ecologia de saberes distingue a objetividade analítica da neutralidade ético-política.

É preciso ter um olhar diferenciado diante da contemporaneidade, sobremaneira em relação ao ensino ofertado nas penitenciárias brasileiras. E já que uma das marcas do homem contemporâneo é o extremo individualismo (AGAMBEN, 2009), pensar numa práxis transformadora do coletivo exige esforços hercúleos. Na atualidade,

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cada vez mais os sujeitos estão se tornando invisíveis sob o prisma do outro, ampliando as desigualdades em todas as suas formas, o que demonstra que somos produtos da cultura, do momento e do lugar:

Cada sistema cultural está sempre em mudança. Entender esta dinâmica é importante para atenuar o choque entre as gera- ções e evitar comportamentos preconceituosos. Da mesma forma que é fundamental para a humanidade a compreensão das diferenças entre povos de culturas diferentes, é necessário saber entender as diferenças que ocorrem dentro do mesmo sistema. Este é o único procedimento que prepara o homem para enfrentar serenamente este constante e admirável mundo novo do porvir. (LARAIA, 2004, p. 101)

Apesar dos desafios da educação para detentos, mesmo com a existência de políticas públicas que asseguram o direito ao ensino, compreendendo o caráter heterogêneo da população carcerária, e apesar dos esforços de Organizações Não Governamentais (ONGs) e iniciativa privada, falta uma conscientização real de todos os ci- dadãos sobre o poder que a educação tem em mudar a mentalidade de uma nação, educação como prática libertadora, intervindo dire- tamente nessa transformação. De acordo com Freire, tal caminho é possível trilhar se:

Constatando, nos tornamos capazes de intervir na realidade, tarefa incomparavelmente mais complexa e geradora de novos saberes do que simplesmente a de nos adaptar a ela. É por isso também que não me parece possível nem aceitável a posição ingênua ou, pior, astutamente neutra de quem estuda, seja o físico, o biólogo, o sociólogo, o matemático, ou o pensador da educação. Ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra. Não posso estar no mundo de luvas nas mãos constatando apenas. A acomodação em mim é apenas caminho para a inserção, que implica decisão, escolha, inter- venção na realidade. (FREIRE, 1997, p. 46)

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Portanto, façamos das palavras de Paulo Freire uma reflexão diária, mesmo que nos sintamos inertes em mudar algo em nosso entorno, mas só o ato de refletir diante de uma realidade aterradora pode mexer nas estruturas, a exemplo das prisões, que há séculos tranca- fiam os indivíduos em espaços humilhantes. Educar é transgredir, e se pretendemos alçar condições menos degradantes, a transgres- são engloba desnudar visões preconceituosas que marginalizam ainda mais os sujeitos, mesmo após terem cumprido suas penas. A educação dentro das prisões é, antes de tudo, um ato de libertação.

No documento EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (páginas 145-148)

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