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Na cela de aula: modelos de educação interventiva e social

No documento EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (páginas 140-145)

[...] por intervenção, entende-se, numa primeira aproximação, a ideia de uma ação, no quadro de uma atividade relacional que vem modificar um processo ou um sistema. Intervir é vir entre, interpor-se, inserir-se, deslizar entre, introduzir-se, envolver-se com, executar uma ação para mudar alguma coisa em alguém, para resolver um problema (identificado, ou melhor, construído) no outro. (LENOIR et al., 2002, p. 3)

Como asseguram os autores, o ato de intervir pressupõe que se queira modificar alguma coisa em algum lugar. Desse modo, práticas interventivas no âmbito educacional visam mudar uma realidade que sempre esteve presente na sociedade brasileira: as lacunas no ensino, independentemente da modalidade a qual o indivíduo se insere. Observa-se, com isso, um comprometimento da aprendizagem, além das disparidades socioeconômicas que dis- tanciam ainda mais o acesso à educação de qualidade, apesar dos avanços ocorridos nas últimas décadas.

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Nessa lógica, deve-se pensar a intervenção educativa como um conjunto de atos e discursos singulares, ambivalentes, finalizados, motivados e legitimados, mantidos por uma pessoa com mandato de in- terventor numa perspectiva de formação, ou de ensino em um ambiente institucionalmente específico, neste caso, a instituição escolar, com o fim de perseguir os objetivos educativos socialmente determinados. No que concerne a intervenções educativas nas prisões, é necessário, como defende Vieira (2012, p. 8), que a educação seja pensada:

[...] no sentido de responder às necessidades e anseios da po- pulação atendida, através de propostas mais adequadas ao tipo de vida e às histórias passadas, presentes e perspectivas futuras dos apenados, entendendo que nesse sistema, a maioria dos su- jeitos tem sua história marcada pela exclusão e o não acesso a bens culturais e materiais que os tornou marginalizados e distan- ciados de uma trajetória escolar.

E quando a escola está inserida numa prisão? Como pensar em discursos, atos, formação, processo de ensino-aprendizagem, se o públi- co alvo dessas possíveis intervenções encontra-se privado da liberdade? Tais questões são importantes para discutir a educação prisional dentro de uma perspectiva duplamente interventiva, pois o preso desconfia da proteção que o Estado lhe oferece na condição de apenado, quanto mais na oferta de ensino, já que, fora das celas, a educação também enfrenta dilemas diariamente. Assim, a intervenção educativa, deve ser encai- xada como:

[...] uma categoria geral sintética que agrupa perspectivas, estados de espírito, maneiras de pensar e de fazer contemporâneas que generalizam e modulam cada vez mais práticas que se denomi- navam – e ainda têm a necessidade de se denominar – ajudar, aconselhar, formar, assistir, dar suporte, cuidar, adaptar, inserir, animar, dirigir, advertir, vigiar e assumir. (NÉLISSE; ZÚÑIGA, 1997, p. 5)

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Por esse ângulo, a intervenção educativa dentro dos presídios, seguindo a definição acima, necessita de uma práxis2mais atenta às

necessidades do preso, que já possuem limitações de espaço, haja vis- ta que o Brasil possui uma população carcerária de 711.463 presos, quantidade infinitamente superior às vagas disponíveis, que é de 317.733, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional. (DEPEN, 2016) Conforme Foucault (2012, p. 252), em Vigiar e Punir:

O sentimento de injustiça que um prisioneiro experimenta é uma das causas que mais podem tornar indomável seu caráter. Quando se vê assim exposto a sofrimentos que a lei não orde- nou nem mesmo previu, ele entra em um estado habitual de cólera contra tudo que o cerca; só vê carrascos em todos os agentes da autoridade: não pensa mais ter sido culpado; acusa a própria justiça.

Nesse contexto, a ressocialização através de práticas educa- tivas se mostra como medida eficaz tanto no enfrentamento de preconceitos quanto na reincidência ao crime. Dissertar acerca da educação no sistema penitenciário é pensar na reconstrução dos indivíduos:

A especificidade da educação em espaços prisionais será sem dúvida ajudar o detento a identificar e hierarquizar as apren- dizagens para lhes dar um sentido: para que elas possam lhe oferecer possibilidades de escolhas com conhecimento de causa, para que a faculdade de escolher reencontre seu campo de ação, a saber, o eu aprisionado, mas aprisionado por um certo tempo apenas. (MAYER, 2013, p.39)

2 Conforme Konder (1992, p.115), a práxis “é a atividade concreta pela qual os sujeitos se afirmam no mundo, modificando a realidade objetiva e, para poderem alterá-la trans- formando-se a si mesmos. É a ação que, para se aprofundar de maneira mais conse- quente, precisa de reflexão, do autoquestionamento, da teoria; e é a teoria que remete à ação, que enfrenta o desafio de verificar seus acertos e desacertos, cotejando-os com a prática”.

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A educação é um direito de todas as pessoas, inclusive daquelas que estão em sistemas de privação de liberdade. Em relação aos presos, no Brasil, o direito ao ensino está previsto no artigo 17 da Lei de Execução Penal, de 1984. Todavia, mesmo constando na lei, apenas atinge 11% dos detentos que praticam atividades educativas, conforme o DEPEN, denotando que a violação dos direitos humanos nos pre- sídios do país se estende também no acesso à educação.

A ampliação da oferta de ensino de qualidade para a população car- cerária contribui para a restauração da autoestima e a ressocialização, mas o que se vê é uma realidade bastante excludente, dentro e fora das prisões. As iniciativas de mudança por meio da educação são escassas, advém do voluntariado, que, em geral, dependem da concordância da direção de cada estabelecimento penal. Portanto, numa integração administrativa, as pastas da Educação e da Segu- rança Pública devem atuar juntas, a fim de viabilizar uma oferta sistemática, com bases conceituais mais precisas.

Nesse seguimento, falar em educação interventiva se coaduna à noção de Educação Social, pois é na sociedade que acontecem todos os atos de interação entre os sujeitos, sobremaneira numa realidade como a nossa, repleta de mazelas que impedem o crescimento hu- mano em seus mais variados níveis. Agir num dado contexto social, como por exemplo, ofertar ensino nas prisões, amplia o entendimento sobre educação, tratando-a na perspectiva dos indivíduos que possuem dificuldades de integração social, e no caso dos presos, de reintegração. Assim sendo, a Educação Social é:

Aquela ação sistemática e fundamentada, de suporte, mediação e transferência que favorece especificamente o desenvolvimen- to da sociabilidade do sujeito ao longo de toda sua vida, circuns- tâncias e contextos, promovendo sua autonomia, integração e participação crítica, construtiva é transformadora no marco sociocultural que lhe rodeia, contando em primeiro lugar com os próprios recursos pessoais, tanto do educador quanto do su- jeito e, em segundo lugar, mobilizando todos os recursos socio- culturais necessários do entorno ou criando, finalmente, novas alternativas. (SERRANO, 2003, p. 136)

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Nesse sentido, a educação prisional abarca o conceito de Educa- ção Social proposto por Serrano, na medida em que está diretamente relacionada a práticas de ressocialização, pois há um senso comum que compreende a oferta de educação à população carcerária como um benefício ou mesmo um privilégio concedido a criminosos, e a educação social busca avançar junto à sociedade no entendimento de que a educação é um direito, sem distinções, e dever do Estado.

Fomentar discussões em torno da questão da educação nas pri- sões, além de obrigação dos gestores, é papel de toda a sociedade, dos estudantes, pesquisadores, comerciantes, bem como quaisquer agrupamentos humanos que estejam preocupados com o outro. Não apenas teorizar para demonstrar erudição, mas problematizar o assunto, e, através de intervenções reais, tentar amenizar as dis- paridades que nos assombram durante décadas, senão iremos fazer de conta que estamos fazendo algo. Segundo Regina Leite Garcia (2011, p. 40):

Este me parece um momento desafiador a que os intelectuais públicos são chamados a participar se comprometendo com a radicalização da democracia, pondo suas pesquisas, os seus escritos e as suas falas a serviço de um projeto emancipatório.

“O resto é silêncio”, sentencia Regina Garcia ao findar seu texto. Não basta apenas levar fábricas para dentro dos presídios, se as políticas sociais apenas querem dar atividades laborais aos detentos sem outra finalidade; como também é pouco relevante abrir escolas nas penitenciárias sem despertar nos apenados que a educação fará uma mudança substancial no modo como eles se veem, enquanto presos, mas indivíduos dotados de direitos iguais a todo mundo. E a sociedade passará a enxergar o detento como alguém que, depois de cumprida a sua pena, passado por um processo intenso de res- socialização, poderá conviver e exercer sua cidadania plenamente.

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A práxis pedagógica no cárcere:

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