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Quem são os outros?

No documento EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (páginas 189-192)

Com a indagação que nomeia esse tópico busca-se saber “quem são os outros?”, os que estão fora do que é considerado normal, humano, metropolitano, não passível de ser entendido e considerado “nós”. Santos (2007, p. 2, grifo do autor) define esta divisão como abissal, escrevendo:

O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sen- do que as invisíveis fundamentam as visíveis. As distinções invisíveis são estabelecidas através de linhas radicais que di- videm a realidade social em dois universos distintos: o univer- so ‘deste lado da linha’ e o universo ‘do outro lado da linha’. A divisão é tal que ‘o outro lado da linha’ desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e é mesmo produzido como ine- xistente. Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível. Tudo aquilo que é produ- zido como inexistente é excluído de forma radical porque per- manece exterior ao universo que a própria concepção aceite de inclusão considera como sendo o Outro.

E duca çã o , Socieda de e Int er ven çã o 188

Diante da definição de Sousa Santos de um pensamento abissal – referente a abismos que dividem – se produz a figura do outro e sua aniquilação, reproduzindo-o como inexistente/invisível, sendo estes outros afastados de todo e qualquer tipo de lógica que possa ser utili- zada do lado metropolitano de organização da vida cotidiana.

A linha que divide os dois lados, mesmo que de forma inconsciente, determina o lugar de cada um dentro da sociedade, seja no mercado de trabalho, seja na educação, ou ainda, nos espaços urbanos. A tentativa de transgressão e acesso à lógica de humanidade são, a todo momento, reprimidos pela lógica do pensamento abissal, que pode ser reconhe- cida também como formas de racismo institucional que dificultam o acesso igualitário a bens e serviços.

Diante dos obstáculos ao acesso à igualdade, Frantz Fanon, um escri- tor martinicano, escreve sobre a tentativa de acesso dos moradores daquela ilha, colonizada pela França, ao reconhecimento como franceses. Pode-se perceber que, ao chegar na França para estudar, os jovens vindos da ilha não eram vistos como franceses mesmo se esforçando ao máximo para falar e agir de forma igual, não sendo aceitos (incluídos). No livro Pele negra, máscaras brancas (2008), Fanon coloca como uma marca que “persegue” os martinicanos a vontade de ser francês (pertencer à cultura dominante), negando as- sim todo resquício cultural de sua ilha (o lado subalterno e marginal):

Todo povo colonizado - isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural - toma posição diante da linguagem da na- ção civilizadora, isto é, da cultura metropolitana. Quanto mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapara da sua selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será. (FANON, 2008, p. 34)

A marca abissal seguirá os transgressores, mesmo que estes não estejam dentro das delimitações geográficas destinadas a eles. Quanto a isso, Santos (2007, p. 8) destaca:

No vas f or mas de subjetiv açã o e or ganiza çã o c omunitár ia 189

cebido como uma intromissão ameaçadora do colonial nas sociedades metropolitanas. Este regresso assume três formas principais: o terrorista, o imigrante indocumentado e o refugia- do de formas distintas, cada um deles traz consigo a linha abis- sal global que define a exclusão radical e inexistência jurídica. Por exemplo, em muitas das suas disposições, a nova vaga de legislação antiterrorista e de imigração segue a lógica regula- dora do paradigma da apropriação/violência. O regresso do colonial não significa necessariamente a sua presença física nas sociedades metropolitanas. Basta que possua uma ligação relevante com elas.

A invenção dos outros surge com a modernidade, pautada na Europa como centro, quando o etnocentrismo europeu promoveu barbáries em nome do desenvolvimento e da “difícil” missão de tirar vários povos selvagens da escuridão e trazê-los à razão, uma vez que eles próprios se representavam como povo moderno.

Por tudo isso, se se pretende a superação da ‘Modernidade’, será necessário negar a negação do mito da Modernidade. Para tanto, a ‘outra-face’ negada e vitimada da ‘Modernidade’ deve pri- meiramente descobrir-se ‘inocente’: é a ‘vítima inocente’ do sacrifício ritual, que ao descobrir-se inocente julga a ‘Moder- nidade’ como culpada da violência sacrificadora, conquistado- ra originária, constitutiva, essencial. Ao negar a inocência da ‘Modernidade’ e ao afirmar a Alteridade do ‘Outro’, negado antes como vítima culpada, permite ‘descobrir’ pela primeira vez a ‘outra-face’ oculta e essencial à ‘Modernidade’: o mundo periférico colonial, o índio sacrificado, o negro escravizado, a mulher oprimida, a criança e a cultura popular alienadas, etc. (as ‘vítimas’ da ‘Modernidade’) como vítimas de um ato irracional (como contradição do ideal racional da própria ‘Modernidade’). (DUSSEL, 2005, p. 8, grifo do autor)

A partir daí surgem os outros que, sempre em comparação com a Europa (modelo a ser seguido de civilidade), eram meramente menores, piores, incapazes de alcançar a perfeição do modelo Europeu que se coloca como centro, inventa e reinventa sua própria cultura, e na

E duca çã o , Socieda de e Int er ven çã o 190

maioria das vezes, violentamente, impõe sua hegemonia cultural, política e econômica.

Diante do que já foi dito, pode-se perceber que só existe o outro quando há uma concepção etnocêntrica, o outro é uma invenção de uma cultura sobre a outra. Tomando emprestadas as palavras de Fanon (p. 90, 2008, grifo do autor), “A Inferiorização é o correlato nega- tivo da superiorização europeia. Precisamos ter a coragem de dizer: é o racista que cria o inferiorizado”, ou seja, o racista coloca o con- ceito de raça no patamar da natureza, quando na verdade este é resultante de uma criação histórica e social.

No documento EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (páginas 189-192)

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