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2 FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

2.2 DELIMITAÇÃO E CONSTITUIÇÃO DOS CORPORA

2.2.1 A preparação das amostras

Para a pesquisa sociolinguística, a escolha, a coleta e o tratamento do corpus são etapas cruciais da investigação, pois a consistência dos dados analisados parte da condição de que a fala coletada corresponda ao registro mais informal e, portanto, mais vernacular dos informantes.

Dada a importância da tarefa, pode-se dizer que a investigação sociolinguística inicia- se no próprio projeto de concepção do trabalho, de modo que a falta de critério ou cuidado no planejamento e constituição das amostras pode comprometer os resultados e a interpretação dos dados relativos ao fenômeno em estudo, fornecendo evidências pouco elucidativas ou incoerentes com a estrutura sociocultural e a variedade da língua em estudo. Por essa razão, a coleta dos dados de fala deve ser precedida de um estudo acurado da realidade sociocultural a ser investigada e deve estar firmemente associada às especificidades do fenômeno e aos objetivos propostos.

Os três corpora coletados pelo Projeto Vertentes, embora tenham sido compostos em momentos diferentes, mantêm o mesmo modelo de entrevista e os mesmos métodos de coleta. Nesse sentido, como aspectos diferenciadores, destacam-se apenas a evolução dos instrumentos físicos de coleta e registro de dados que possibilitaram o aprimoramento das gravações e as transcrições, os quais serão oportunamente descritos.

O modelo de entrevista coletado pelo Projeto Vertentes caracteriza-se como diálogo espontâneo entre documentador e informante. Os diálogos gravados possuem duração média de uma hora e primam por motivar ao máximo a expressão linguística não monitorada dos falantes. Para cumprir esse objetivo e superar os efeitos do paradoxo do observador43 (LABOV, 2008 [1972]), as entrevistas seguiram algumas orientações apresentadas a seguir.

A primeira foi a entrada mediada na comunidade, isto é, a aproximação às localidades deu-se, tanto quanto possível, por intermédio de um membro da comunidade. Assim, para o

43 O paradoxo do observador diz respeito à situação contraditória de o documentador ter que coletar a fala

vernácula numa situação em que sua inevitável presença pode ativar o monitoramento do falante e inibir a captação de uma fala verdadeiramente espontânea e irrefletida.

contato com os possíveis informantes, os documentadores contaram com a colaboração de líderes locais, professores ou representantes educacionais e religiosos. Especificamente no corpus do português popular de Salvador, contamos ainda com a colaboração dos próprios informantes que, em alguns casos, além de cooperar fornecendo seu relato pessoal, conduziam os documentadores a outros informantes, servindo de facilitadores do processo de seleção de alguns participantes. Dessa forma, foi possível que o informante estabelecesse uma relação mais espontânea com o documentador e, assim, reduzisse o nível de formalidade durante a entrevista.

O segundo cuidado foi a seleção temática das entrevistas. Embora os inquéritos tenham sido realizados sem um roteiro prévio, coube aos entrevistadores o cuidado na seleção e condução de temas que motivassem o falante. Vale salientar que a escolha dos temas está relacionada ao contexto sociocultural dos falantes e, portanto, sofre variação conforme o perfil das comunidades. Nas comunidades rurais investigadas, por exemplo, os temas principais foram: história da comunidade ou dos municípios; infância; festas religiosas; casamentos, namoros, vida conjugal; doenças; risco de vida. Este último tema apresenta-se como um traço distintivo entre os três corpora. No corpus do português afro-brasileiro, as narrativas de risco de vida concentraram-se em torno de animais peçonhentos como cobras, lacraias, escorpiões etc., pois são raros os informantes que não tiveram algum tipo de experiência com esses animais. No português popular do interior, os riscos envolvidos com o trabalho figuraram como principal tópico ao lado de situações familiares, doenças e, no caso específico do município de Santo Antônio de Jesus, uma tragédia que envolveu muitas pessoas do município – a explosão de uma fábrica de fogos de artifício. No corpus do português popular de Salvador, os riscos de vida relacionaram-se ao desenvolvimento da capital e seus consequentes problemas de crescimento populacional desordenado, característico dos grandes centros urbanos. Violência, drogas, mortes, falta de saneamento, transporte, educação e o sistema de saúde foram assuntos bem recorrentes. Isso não excluiu também assuntos mais pessoais, histórias da infância e adolescência, assim como assuntos sobre os projetos futuros.

Em todos os contextos investigados, a experiência pessoal dos indivíduos entrevistados mostrou-se produtiva. Ao narrar suas experiências, os informantes envolveram- se emocionalmente com o que estavam narrando, dando pequena atenção ao como estavam narrando. Como se trata de um tipo de entrevista sem roteiro predefinido, contamos ainda com a sagacidade e a percepção dos documentadores na identificação e abordagem de temas que despertassem o interesse do informante ao longo do diálogo. Isso foi facilitado pelo

envolvimento dos documentadores com a pesquisa sociolinguística, uma vez que todos eram vinculados ao Projeto Vertentes.

O Quadro 8 aponta o período de coleta de dados de cada comunidade, bem como os documentadores envolvidos.

Quadro 8 – Período e responsáveis pela documentação dos inquéritos

Corpus Comunidades Ano de gravação Documentadores44

português afro- brasileiro

Helvécia 1994

Dante Lucchesi, Alan Baxter, Marcos Luciano Messeder e Nara Barreto Cinzento 2003 Jorge Augusto Silva

Sapé 2004 Maria Cristina Silva

Rio de Contas 1992

Dante Lucchesi, Alan Baxter, Marcos Luciano Messeder

português popular do interior

Santo Antônio de Jesus 2003

Silvana Araújo,

Sônia Coutinho, Patrícia Andrade e Rute Mendes. Gravações complementares (Maria Cristina Silva, Luanda Figueiredo, Lanuza Lima em 2004)

Poções 2004 Jorge Augusto Silva

português popular urbano de Salvador e região metropolitana

Itapuã

2007-2008

Luanda Figueiredo, Lanuza Lima, Manuele Bandeira, Shirley Freitas

Liberdade

Renata Macambira, Luanda Figueiredo, Vivian Antonino

Cajazeiras Vivian Antonino, Cleber

Tourinho, Telma Assis

Plataforma Elisângela Mendes, Telma

Assis

Lauro de Freitas Camila Melo

Fonte: Elaborado pela autora

44

Todos os documentadores envolvidos na coleta e etapas subsequentes de tratamento de dados, além do coordenador, Dante Lucchesi, e dos professores pesquisadores, Alan Baxter e Maria Cristina Figueiredo, fazem ou fizeram parte do Projeto na condição de bolsistas de iniciação científica ou estudantes de pós- graduação.

Nas três etapas, a seleção dos informantes partiu do estudo prévio das comunidades e contou com a rigorosa orientação do coordenador do Projeto, o professor Dante Lucchesi. Em algumas circunstâncias, recorreu-se ainda à colaboração de consultores externos da área de geografia – prestadores de auxílio na compreensão e seleção das comunidades – e da área tecnológica, os quais forneceram os subsídios necessários para o tratamento do áudio.

No caso específico do corpus do português popular de Salvador, antes da gravação dos dados, foi feita uma etapa prévia de identificação de potenciais informantes e preenchidas fichas com seus dados. Após essa seleção preliminar, os indivíduos mais representativos do perfil dos bairros foram recontatados e as entrevistas foram gravadas.