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2 FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

2.2 DELIMITAÇÃO E CONSTITUIÇÃO DOS CORPORA

2.2.3 O corpus do português afro-brasileiro

2.2.3.3 Rio de Contas

As entrevistas coletadas no ano de 1992 em Rio de Contas recobriram as comunidades geminadas de Barra e Bananal. Situado no Centro Sul baiano, o município integra a Região do Parque Nacional da Chapada Diamantina, importante polo de Ecoturismo da Bahia, distante de Salvador cerca de 736 km.

A ocupação do município data do final do século XVII e foi atravessada pela exploração das Bandeiras e pela descoberta de ouro na região, elemento crucial para o seu desenvolvimento. Como importante rota dos caminhos reais e de mineração, Rio de Contas experimentou crescimento expressivo até o início do século XIX.

Do ponto de vista da composição social, Rio de Contas, durante seu período áureo, caracterizou-se pela clivagem étnico-racial, com classes hierarquizadas principalmente pelo critério de cor, conforme descreve Capinan (2009, p. 134):

[...] em Rio de Contas existiam, basicamente, duas classes sociais caracterizadas pela hegemoneidade étnica de seus membros. A organização das classes numa pirâmide social permitia a averiguação de que o branco ocupava o topo (a elite) e o negro a base (o pobre). Entre um e outro extremo da pirâmide existia uma classe média, composta por brancos e negros ricos, porém, por meio de uma clivagem racial, essa classe era subdividida, cabendo ao negro um status social inferior e próximo à base da pirâmide. Tal estrutura social era reforçada ideologicamente pelo preconceito de cor.

Parte da realidade social retratada pode ser associada ao forte insumo escravocrata que fundamentou o desenvolvimento econômico da cidade, uma vez que essa era a mão de obra

principal do município até o começo do século XIX. É registrada, inclusive, a posse de escravos por proprietários de classe baixa e também a existência de cativos possuidores de escravos, com os quais pagavam a própria alforria. Segundo Capinan (2009), no município, a convivência dos escravos rio contenses com os trabalhadores livres e a proximidade das relações com os senhores diferenciam-se do processo geral de escravidão aplicado no Brasil.

As comunidades de Barra e Bananal, oficialmente certificadas como remanescentes de quilombo em 1999, se constituem em meio a esse cenário marcado pela exploração escrava e preconceito racial. Sua composição histórica escravo-descendente é pouco evidenciada nas narrativas dos moradores, de modo que, por vezes, é apagada uma possível associação com a escravidão na região, sendo referenciadas outras origens.

Dentre os mitos fundacionais, Capinan (2009) destaca, a partir de relatos de moradores, duas versões divergentes. A primeira remonta ao período anterior à chegada dos bandeirantes, segundo a qual os primeiros moradores seriam sobreviventes de um naufrágio de navio escravo e teriam seguido o curso do rio, fixando-se em diferentes áreas da Chapada Diamantina. Quando os bandeirantes chegaram e povoaram a região de Mato Grosso, encontraram esse povo escondido, que passou a ser escravizado em troca de roupa e comida. O presidente da Associação de moradores, um dos informantes entrevistados, destaca o preconceito racial e a segregação sofridos por esses escravos que eram usados exclusivamente para o trabalho, sendo obrigados a retornar à sua terra ao fim do serviço. A segunda versão, contada por uma informante de 68 anos, nega claramente a gênese escrava da comunidade:

Escravo não tinha tempo de fugir não. Escravo era... escravo quando sai do serviço era pé amarrado e braço. Aí ó, tá amarrado. Quando fugia um, era disnortiado [sic]. Não ia fugir de Rio de Contas mais Livramento pra ficar aqui não. Ele ia pra outro lugar mais distante.51 (CAPINAN, 2009 p. 44).

Essa versão associa a fundação da região à exploração garimpeira, descolando sua formação de um passado escravo. Para Capinan (2009), destaca-se, no mito e no comportamento dos informantes durante as entrevistas, o fato de resistirem a um suposto passado escravo na gênese da comunidade.

51 Relato colhido por Ubiraneila Capinan com moradores locais em sua tese dissertação de mestrado: CAPINAN,

Ubiraneila. O quilombo que renasce: estudo de caso acerca dos impactos da política pública de certificação e de titulação do território sobre a identidade étnica dos quilombos remanescentes Barra e Bananal em Rio de Contas, Bahia. 2009. 205 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009.

Em certa medida, a análise de Capinan (2009) sobre o processo identitário das comunidades, revela que, após a abolição da escravatura no Brasil, “a presunção negra era manipulada depreciativamente pelo outro”. Em Rio de Contas, isso se acentuara de tal forma que ao negro restou a definição de um status social inferior se comparado com pessoas brancas, com fortes manifestações de preconceito racial. Para o autor, “é presumível que a escravidão, melhor dizendo, a possibilidade de antepassados terem sido subjulgados a essa condição, foi elaborada de forma a se constituir em amnésia estrutural” (CAPINAN, 2009, p. 142). Isso justificaria a evasão ao tema e a negação da ancestralidade escrava por parte de alguns membros da comunidade.

Atualmente, alguns fatores comprometeram o relativo isolamento da comunidade, como as relações com o entorno, ocasionadas pelo desenvolvimento turístico do município; a assunção de valores do catolicismo, religião predominante; e os incentivos advindos do reconhecimento como comunidade quilombola. Os incentivos chegam sob a forma de infraestrutura local e também como apoio concedido por Organizações não governamentais (ONGs) na educação de jovens, estimulados a frequentar a universidade dentro e fora do país (Cuba). Obviamente, esses fatores afetam também as trocas linguísticas, motivando a incorporação de alguns traços externos.

No entanto, de acordo com Lucchesi et al. (2009), no ano da gravação das entrevistas, a comunidade ainda preservava algumas características que revelam certo grau de isolamento, tais como a agricultura de subsistência, a endogamia e as condições precárias de saneamento e educação. Além disso, a forte manifestação do preconceito racial teria dificultado, no passado, o estreitamento da integração linguística desses indivíduos com as comunidades do entorno. Esse isolamento, motivado por diferentes fatores, pode ter afetado a constituição do português da comunidade, deixando marcas que nos fornecem evidências linguísticas interessantes.