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1 A EXPRESSÃO DO MODO IMPERATIVO NA LÍNGUA PORTUGUESA

1.2 O USO DO MODO IMPERATIVO NO PORTUGUÊS FALADO

1.2.4 O modo imperativo nas línguas crioulas

As demandas relativas à compreensão da influência do contato na formação do português nos conduziram à busca pelo conhecimento acerca do imperativo em variedades linguísticas claramente marcadas pelo processo de convivência entre as línguas portuguesa e africanas, a saber, as línguas crioulas19. Essas considerações, associadas às descrições do imperativo no português europeu e no português brasileiro neste capítulo apresentadas, nos permitirão, oportunamente, estabelecer a pertinência de uma relação com a origem das variedades populares do português do Brasil.

19

As línguas crioulas surgem de uma situação de contato entre falantes de línguas ininteligíveis entre si, obrigados a conviver e interagir por determinado período numa situação de subjugação. Diante da necessidade de interação, os falantes dominados tentam aprender a língua alvo, no entanto o acesso precário ao modelo da língua alvo e a carência de uma ação normativa condicionam a formação de uma nova língua, que passa a ser nativizada pelas gerações seguintes. O modelo adquirido costuma caracterizar-se pela: i) perda de morfologia flexional e sintaxe aparente; ii) alteração de valores sintáticos em favor de valores não marcados; iii) e gramaticalização de itens lexicais a fim de substituir as estruturas linguísticas perdidas (cf. LUCCHESI, 2003, p. 276).

Em que pese a dedicação ao tema, pouco tem sido escrito especificamente sobre o modo imperativo em línguas crioulas. Nossas considerações partem de gramáticas e estudos linguísticos genéricos sobre as línguas crioulas (GOILO, 1953; QUINT, 2000, 2003; AGOSTINHO, 2015), bem como de extratos de línguas e análises gentilmente partilhadas por pesquisadores de outros aspectos das línguas crioulas (LIMA, 2015; FREITAS20

, 2015). O modo imperativo, tal como nas demais línguas, é empregado nos crioulos para destinar uma ordem, pedido ou conselho a um interlocutor. Como suposto, haja vista a redução da morfologia flexional que caracteriza essas línguas, não há formas específicas para expressão do imperativo; as línguas observadas, em geral, empregam a forma básica do verbo. A seguir apresentaremos a descrição do modo imperativo em diferentes línguas crioulas de base portuguesa.

Em Lung’Ie21

, o imperativo afirmativo e negativo é expresso pela mesma forma verbal, a forma base do verbo, correspondente ao nosso infinitivo, conforme descrição apresentada por Agostinho (2015). Para as realizações negativas, mantêm-se as mesmas formas verbais, sendo acrescida a partícula de negação fa ao fim da sentença. As realizações do imperativo no Lungu’Ie seguem exemplificadas no Quadro 4.

Quadro 4 – O imperativo no Lungu’Ie

IMPERATIVO AFIRMATIVO IMPERATIVO NEGATIVO

(29) Xtuda ô! Estudar ENF22 . Estude! (30) Xtuda fô Estudar NEG23 ENF ‘Não estude!’ (31) Kopa izêtxi Comprar azeite ‘Compre óleo de Palma’

(32) Kopa izêtxi fa Comprar azeite NEG ‘Não Compre óleo de Palma’ (33) Daka kadenu!

Trazer caderno ‘Traga o caderno’!

(34) Daka kadenu fa! Trazer caderno NEG. ‘Não traga o caderno!’

Fonte: Dados extraídos de Agostinho (2015, p. 299-300)

20Shirley Freitas Sousa é doutoranda do programa de pós-graduação em Filologia e língua portuguesa da USP,

atualmente trabalha com a Contribuição dos caboverdianos e judeus sefarditas na formação do papiamentu. 21

O Lung’Ie é uma das quatro línguas crioulas do Golfo da Guiné, é falada na ilha de Príncipe (AGOSTINHO, 2015).

22

Sigla empregada por Agostinho (2015) para designar partícula enfática. 23

A ausência de forma flexionada para as diferentes pessoas é o traço recorrente em línguas crioulas, tal como depreendemos da descrição do imperativo no Papiamento, língua crioula falada nas Ilhas do Caribe (Curaçao, Bonaire e Aruba). No Papiamento, também não há, conforme a “Gramatica Papiamentu” de Goilo (1953), uma forma exclusiva para expressar o imperativo.

(35) kome; bebe; sínta; drumi24

. ‘come; bebe; senta; dorme’

(36) No hasi ku outro loque bo no ke pa nan hasi ku bo! NEG fazer com outro REL25

PRO NEG querer CON26

PRO fazer com PRO ‘Não faça com o outro o que não quer que façam com você!’

São pontuadas pelo autor algumas observações em relação a determinadas formas verbais que ganham ou perdem itens morfofonológicos nas realizações imperativas. Este é o caso dos verbos Bai, Bini e Ta:

Bai (ir): possui uma forma específica para expressar a referência ao plural: (37) Ban kas27

! Ir casa

‘Vamos para casa!’

Bini (vir): perde a última letra diante de outro verbo. (38) Bin’ kome!

Vir comer ‘Vem comer’!

24

Os exemplos do Papiamento foram extraídos de Goilo (1953) e adaptados à grafia mais atual, conforme orientações de Freitas (2015).

25

Pronome relativo.

26 Conjunção.

27

(39) Bin’ bebe te Vir beber chá ‘Vem beber chá!’

Ta (ser/estar): o verbo, no imperativo, assume a forma sea. (40) Sea un bon mucha

Ser um bom criança ‘Seja uma boa criança’

(41) Sea kordial ku bo amigonan

Ser cordial com 2P. POSS amigo + PL ‘amigos’ ‘Seja cordial com seus amigos’

Para a formação do imperativo negativo, acrescenta-se a partícula negativa no, conforme o exemplo apresentado (29) e as formas retomadas abaixo, no exemplo (35).

(42) No kome; no bebe NEG comer; NEG beber Não coma; não beba

Quint (2000; 2003), numa exemplificação que confirma a redução morfológica das formas imperativas, apresenta a descrição sistematizada no Quadro 5 para o imperativo no crioulo caboverdiano:

Quadro 5 – Expressão do imperativo no crioulo caboverdiano

IMPERATIVO AFIRMATIVO

IMPERATIVO NEGATIVO

2ª P.S kánta! ka-u kánta!

2ª pessoa (o senhor) nhu kánta! ka-nhu kánta!

2ª pessoa (a senhora) nha kánta! ka-nha kánta!

1ª pessoa do plural nu kánta! ka-nu kánta!

2ª P. P nhós kánta! ka-nhós kánta!

Conforme os dados do Quadro 5, proposto a partir da exemplificação do verbo kánta (cantar), não há flexão verbal específica para o imperativo, o verbo é mantido na mesma forma em todas as pessoas, tanto no afirmativo como no negativo. Como particularidade do crioulo caboverdiano, destaca-se a presença do pronome sujeito associado à forma base do verbo. Quint (2000, p. 275) enleva a ausência da forma pronominal para a segunda pessoa afirmativa “à persone bo, ce pronom n’est pas exprimé.”. Para a composição da forma negativa do imperativo, adjunge-se a partícula negativa ka antes do pronome.

As descrições das línguas crioulas revelam a inexistência de formas flexionadas para expressão do imperativo como traço categórico dessas línguas. Também se evidencia o emprego da forma negativa diretamente negada nas línguas aqui descritas. Tais dados aduzem ao efeito simplificador da morfologia verbal, característico das situações em contato que marcam a formação das línguas crioulas. Ademais, destaca-se a inexistência de alternância de formas na expressão do modo imperativo, seja de caráter variacionista dialetal, como acontece no português brasileiro (cf. seção 1.2.3), seja a especialização pragmático-discursiva característica do português europeu (cf. seção 1.2.2).

As conclusões destacadas nos permitirão possíveis associações com as variedades populares do português da Bahia, sobretudo com as variedades etnicamente marcadas, no intuito de compreender a configuração da expressão do modo imperativo e suas aproximações ou distanciamentos com as variedades urbanas – o português popular de Salvador. Levantamos a hipótese de que será priorizado, em variedades do português marcadas pelo contato, o emprego de formas base do indicativo, menos marcadas do ponto de vista flexional, haja vista o efeito semelhante indicado para as línguas crioulas. Supomos que as formas indicativas teriam se fixado nas variedades rurais, sendo paulatinamente suplantadas pelas formas subjuntivas na zona urbana, seja pelo efeito da influência da mídia, seja da escolarização. Lembramos, nesse sentido, que os dados de Sampaio (2001) apontam um crescimento do emprego de subjuntivo da década de 70 para a década de 90, o que pode indicar um possível processo de mudança. Resta-nos observar os dados e investigar em que medida eles confirmam ou refutam a hipótese.

1.3 OS CONDICIONAMENTOS EXERCIDOS SOBRE OS USOS DO IMPERATIVO NO