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Heterogeneidade linguística no português popular do Brasil: a polarização

2 FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

2.1 A LINGUA SOB O ENFOQUE DA SOCIOLINGUÍSTICA VARIACIONISTA

2.1.1 Heterogeneidade linguística no português popular do Brasil: a polarização

Tal como as demais línguas, o português é também variável e está em constante estado de mudança. Isso é evidente, sobretudo, no contraste entre as variedades nacionais brasileira e europeia. Para além das variedades nacionais do idioma, nossa atenção volta-se especificamente para a consagrada diversidade do português brasileiro, justificável na afirmação de Cardoso: “Se intimamente se liga à cultura do povo que dela faz uso, a língua, necessariamente, refletirá a diversidade e a variabilidade desse mesmo povo.” (CARDOSO, 1994, p. 230).

No caso brasileiro e de sua tão diversa cultura, identificamos diferenças dialetais que caracterizam variações diatópicas e, sobretudo, diastráticas em suas manifestações. Nesse ponto, recorremos ao conceito de norma, inicialmente esboçado por Coseriu (1979 [1921]) e retomado por Lucchesi (2004) para a distinção entre as normas cultas e populares brasileiras:

Não apenas as diferenças nas frequências de uso das diversas variáveis linguísticas, mas, sobretudo, os distintos sistemas de avaliação das variantes linguísticas e as diferentes tendências de variação e mudança definiriam normas linguísticas distintas dentro de uma mesma comunidade de fala. (LUCCHESI, 2004).

As normas populares que integram o que designamos português popular brasileiro teriam sido afetadas particularmente pela influência do contato entre línguas. Esse seria um dos principais fatores que explicariam a consagrada pluralidade do nosso idioma. De acordo com Lucchesi (2004), diferentemente das normas cultas, constituídas a partir do modelo

lusitano e adquiridas de maneira regular, as normas populares brasileiras teriam sido produto de um processo histórico que marcou a aquisição e a difusão do português por falantes menos prestigiados, principalmente escravos, descendentes de escravos e indígenas. Apesar das mudanças mais recentes na configuração social do Brasil, a realidade linguística brasileira ainda pode ser equacionada em termos de uma polarização. Na Figura 8, as setas (a e b) representam as tendências opostas de mudança, mas a linha que separa os polos encontra-se descontínua, ilustrando uma situação de influência mútua.

Figura 8 – A polarização sociolinguística do PB

Fonte: Elaborado pela autora

Desse modo, teríamos a origem da polarização sociolinguística do Brasil: de um lado, as variedades da língua adquiridas pelos falantes plenamente escolarizados, uma variedade de língua decalcada dos modelos lusitanos; do outro, as formas do português popular, adquiridas a partir da nativização do modelo defectivo dos escravos. Na contemporaneidade, os caminhos bifurcados de aquisição e mudança da língua apresentam-se, conforme descrito por Lucchesi:

No nível dos padrões coletivos de comportamento linguístico, a língua no Brasil se divide entre uma norma culta, constituída pelos usos de uma minoria de privilegiados, e uma norma popular, constituída pela fala da grande maioria da população, com pouca ou nenhuma escolaridade. (LUCCHESI, 2012, p. 50).

Lucchesi (2003, 2004, 2006, 2012) defende, portanto, o argumento de que a realidade linguística brasileira é composta por um todo plural e polarizado. O argumento do autor fundamenta-se na identificação de dois polos com sistemas de avaliação e processos de mudança distintos. Assim, distinguir-se-iam no PB dois subsistemas: a norma culta, característica dos segmentos plenamente escolarizados e economicamente favorecidos, e a norma popular, concernente à maioria da população, desprovida de recursos financeiros e carente de educação formal.

a b

NORMAS CULTAS

NORMAS POPULARES

Modelo defectivo adquirido pelos escravos Decalcadas do

O português popular da Bahia, a fala de comunidades rurais e urbanas do estado, consiste, portanto, numa variedade integrante das normas populares brasileiras. Pela importância do estado para a formação histórico-cultural e linguística do país, acreditamos que essa variedade reúne elementos significativos para a compreensão da difusão das normas populares no país.

Sobre a origem dessas normas populares da Bahia, acreditamos que teriam sido afetadas, seguindo o quadro geral do português descrito acima, pelo processo designado transmissão linguística irregular (TLI). Segundo Lucchesi (2001, 2003, 2009), tal processo integraliza-se em duas etapas: 1ª) aquisição de uma segunda língua por uma população de falantes adultos sob condições precárias; 2ª) nativização desse modelo como língua materna das novas gerações39

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O conceito de TLI recobre, então, as situações em que uma grande parte da população de adultos de línguas distintas precisa aprender uma segunda língua emergencial em circunstância de sujeição. Esse tipo de situação aconteceu especialmente durante o colonialismo europeu, sobretudo no contexto das sociedades de plantação (plantations)40, nas quais esteve presente um grande contingente de escravos africanos, retirados de suas terras e culturalmente expropriados, sob uma violenta condição de dominação e sujeição.

O modelo de língua adquirido nesse contexto sociocultural caracteriza-se pela: i) perda de morfologia flexional e sintaxe aparente41, ii) alteração do valor de parâmetros sintáticos em favor de valores não marcados; iii) e gramaticalização de itens lexicais a fim de substituir gerações. Assim, o resultado do processo é determinado pelo nível de erosão gramatical sofrida pela língua alvo no estágio inicial do contato, associado à reestruturação (ou não) da gramática original. Este modelo defectivo inicialmente gerado determina o grau de alterações que a língua alvo sofrerá na sua transmissão para as novas gerações (LUCCHESI, 2003; LUCCHESI; BAXTER, 2009). Assim, como resultados, teríamos, num extremo mais radical e intenso do processo, as línguas pidgins e crioulas e, de forma mais branda, alterações significativas que resultam em variações e mudanças na língua alvo. Este último teria sido o caso do português popular brasileiro, que, afetado pelo processo de TLI, teve como resultado a perda de marcas de morfologia verbo-nominal, dentre outros aspectos.

39 O conceito de Transmissão linguística irregular tem suas primeiras formulações fundamentadas a partir das

discussões de Baxter e Lucchesi, entre as décadas de 80 e 90. Para mais detalhes sobre o processo, ver Baxter (1995), Lucchesi (2001, 2003) e Lucchesi e Baxter (2009).

40 Sistema agrícola de monocultura de exportação, realizado em latifúndios e com mão de obra escrava. 41 Marcação explícita, do ponto de vista morfofonológico, de processos gramaticais.

Tais assunções teóricas para a explicação da heterogeneidade do português brasileiro justificam em parte a seleção dos corpora em estudo. Na seção subsequente, descreveremos o universo de observação definido como representativo do português popular, apontando a caracterização dos corpora e as decisões metodológicas que orientaram sua delimitação e coleta.