• Nenhum resultado encontrado

2 FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

2.3 O ENVELOPE DA VARIAÇÃO

Os falantes de uma língua têm a seu dispor diferentes formas linguísticas para expressar um significado. Dessa forma, podemos dizer que um fenômeno linguístico encontra-se em variação quando apresenta duas ou mais formas de ser expresso no mesmo contexto, conservando seu significado referencial. Tomando de empréstimo o jargão da estatística, designa-se o fenômeno em variação como variável dependente e suas diferentes formas de realização como variantes.

Conforme já descrito no primeiro capítulo, este trabalho centra-se no estudo das realizações do modo verbal imperativo. Esta é, portanto, a nossa variável dependente, definida como uma variável binária, realizada conforme o Quadro 10, a seguir:

Quadro 10 – Descrição da variável dependente Variável dependente Variantes Exemplos Realização do modo imperativo a) Forma do indicativo

Bota sabão em pó e quiboa (Inf. ITA-01)

b) Forma do

subjuntivo

Bote as criança pra dormi cedo (Inf. ITA-01)

Fonte: Elaborado pela autora

As variantes do modo imperativo apresentam designações divergentes. Alguns autores, tais como Scherre et al. (2007), designam a forma (a) como imperativo verdadeiro, com base nas considerações sintáticas de Rivero (1994) e Rivero e Terzi (1995), ou ainda

assumem a designação de forma padrão para as formas (b) do Quadro 10, tendo em vista o uso do pronome você ser a forma mais empregada no português brasileiro. Outros, como Sampaio (2001), ainda preferem a associação com as formas pronominais, assumindo os rótulos formas de 2ª e 3ª pessoa para as variantes (a) e (b), respectivamente. As diferentes designações, além de opções metodológicas, correspondem a diferentes interpretações teóricas e sócio-históricas do fenômeno.

O conceito de normas assumido nesta tese (LUCCHESI, 2004) leva em conta os usos e avaliações das formas linguísticas por uma comunidade de fala. Por esta razão, tratar as variantes como formas padrão e não padrão, sem uma reflexão sobre as diferentes formas de recepção por parte das comunidades de fala, seria, dentro dessa perspectiva, incompleto ou inadequado. As designações formas de 2ª e 3ª pessoa também não recuperam a distinção presente entre as formas, uma vez que, no português popular, as formas pronominais de 2ª e 3ª pessoa do indicativo apresentam a mesma flexão verbal (tu/você pega). Assim, nos parece mais adequado tratar as formas por meio de sua derivação morfológica, como formas do indicativo (pega) e de subjuntivo (pegue).

Consideramos, para a definição das variantes, o sentido proposto por Labov (1978): “[..] duas sentenças que se referem ao mesmo estado de coisas possuem o mesmo valor de verdade.”61

(LABOV, 1978, p. 2, tradução nossa). Assim, assumimos que as formas por nós designadas como indicativa (canta/não canta) e subjuntiva (cante/não cante) apresentam o mesmo valor referencial de expressão do modo imperativo e, portanto, constituem-se variantes de uma mesma variável.

As variantes aqui definidas foram levantadas e codificadas conforme uma chave de fatores que considerou aspectos do encaixamento linguístico e social. Nas próximas seções, apresentamos os critérios de levantamento dos dados, os fatores considerados na codificação e o instrumento estatísticos utilizado na análise.

2.3.1 Considerações sobre o levantamento da variável dependente

O levantamento das ocorrências descritas no envelope da variação deu-se de modo exaustivo. Assim foram recolhidas todas as ocorrências do modo imperativo referentes à segunda pessoa, expressas na forma do indicativo (canta) ou subjuntivo (cante), em construções afirmativa ou negativa. A opção pela exaustão tem em vista a particularidade da

estrutura imperativa e a baixa ocorrência do fenômeno em estudo no gênero textual analisado, as entrevistas sociolinguísticas. Nos diálogos entre documentador e informante nem sempre situações que envolvem ordem, pedido ou exortação são evidenciadas, pois o tipo de enunciação mais frequente é a narrativa de eventos. No entanto, além de atos de fala diretivos dirigidos ao interlocutor (Apareça umas hora pra você vê o corre-corre – SUB-0562

), foram encontradas nas narrativas empreendidas pelos falantes situações de discurso reportado em que o falante simula uma ordem dada ou recebida de um interlocutor (Daí, ligô pra mim, falô: Rapaz, volte logo – LAU 02). Além disso, há muitas situações em que o falante interage com um interlocutor circunstante impelindo-lhe determinado comportamento, tais como vizinhos ou crianças que aparecem esporadicamente durante as entrevistas (Vá brincá pra lá – SUB- 10). Foram levantadas, portanto, todas as ocorrências do modo imperativo, conforme definido no envelope da variação, nos inquéritos que compõem o universo de observação.

Durante o levantamento, identificaram-se alguns contextos inválidos para a análise do fenômeno. Vale destacar que, em algumas circunstâncias, as ocorrências a serem descartadas são tão importantes para a obtenção de bons resultados quanto os dados válidos. Isso porque, dados que envolvem neutralizações, cristalizações ou contextos impróprios para o estudo do fenômeno podem fornecer falsos resultados e comprometer a análise. Dessa forma, partindo do pressuposto de que podem comprometer análise da variação, foram descartadas as seguintes ocorrências:

a) Expressões cristalizadas: expressões consolidadas nos usos, empregadas como

expressões idiomáticas, gírias ou letras de música;

(44) DOC 1: Inventaram até uma musiquinha, num foi... inventaram até uma musiquinha, só porque tem os... a ôtra.

INF: “Chupa que é de uva” (INF12 CAJ)

A sentença exposta no exemplo é proveniente de uma letra de música popular usada como grito de provocação de uma torcida de futebol baiana. Acredita-se que, embora o contexto admita a variação, trata-se de um uso cristalizado, um trecho musical reportado pelo falante, não correspondente a um dado variável de fala vernácula.

62 As siglas apresentadas após os exemplos extraídos dos corpora dizem respeito ao bairro e informante em que

foram coletadas. Assim, LAU corresponde a Lauro de Freitas; SUB, ao bairro de Plataforma, no Subúrbio Ferroviário; ITA, Itapuã; CAJ, Cajazeiras e LIB, Liberdade.

b) Neutralizações: situações em que não é possível precisar a variante empregada.

(45) a. Ah, ôh mãe, dêxa a gente brincá mai um pôquinho. (INF07 - LAU) b. Ah dêxe ela ir63

(INF07 - LAU) c. Bot’uma aí (Inf 03 - SUB)

Nos casos de neutralização, nem sempre é possível atestar a realização do morfema de indicativo (deixA) ou de subjuntivo (deixE) devido à amálgama do morfema com o elemento subsequente. Na elisão do morfema modo temporal ilustrada nos exemplos em (45), não é possível precisar o processo fonológico envolvido de maneira a garantir a variante empregada. Assim, num exemplo como Ah, dêx’ela ir pode estar presente uma ressilabação (deixa + elisão + ela) ou uma crase com a vogal subsequente (deixe + ela). Mesmo que assumamos como parâmetro o emprego da forma mais frequente da comunidade, isso não passaria de uma conjectura e ainda não teríamos certeza de qual é a variante efetivamente usada, o que poderia afetar a quantificação dos dados. Por esta razão, nos casos em que a pronúncia dos dois segmentos é fundida, optou-se pela exclusão da ocorrência.

As formas em que a realização morfológica de uma das variantes apresenta diferenciações em seu radical foram mantidas, bem como as situações em que os segmentos são claramente pronunciados, sendo possível sua identificação no nível fônico.

Levando em conta a definição da variável e de suas variantes, bem como dos contextos a serem descartados, passamos à codificação dos dados, a qual considerou os hipotéticos encaixamentos linguísticos e extralinguísticos a serem analisados.