• Nenhum resultado encontrado

O tratamento do modo imperativo segundo as gramáticas normativas

1 A EXPRESSÃO DO MODO IMPERATIVO NA LÍNGUA PORTUGUESA

1.1 CARACTERIZAÇÃO DO MODO IMPERATIVO

1.1.1 O tratamento do modo imperativo segundo as gramáticas normativas

Embora o objeto da pesquisa sociolinguística seja o vernáculo de uma comunidade, não se exclui a compreensão do fenômeno em seus aspectos normativos (TARALLO, 1985). Assim, cabe ao pesquisador entender o encaixamento linguístico da variável e de suas variantes no que se refere aos padrões prescritos, bem como a normalização das variantes na língua. Nesse sentido, apresentamos agora as considerações acerca do modo imperativo no português contemporâneo presentes em algumas gramáticas, a saber: Bechara (2002); Cunha e Cintra (2002) e Rocha Lima (2003). Esta seção cumpre o objetivo principal de identificar como o fenômeno em estudo é percebido e descrito pela tradição gramatical. Observamos ainda se a diversidade linguística, tão forte na expressão do fenômeno em estudo, é referida e como se distinguem as abordagens normativas tradicionais das concepções mais contemporâneas de gramáticas, a exemplo de Castilho (2010).

O modo imperativo, ainda que não seja um aspecto linguístico indicador de tensões sociais preocupantes, uma vez que não parece denotar uma avaliação linguística de caráter social explícita9 entre os falantes, revela-se um aspecto interessante de estudo, quer pelo seu caráter dialetal (uso das formas conforme a região geográfica do Brasil), quer pelo constante desconhecimento por parte dos utentes da língua das prescrições gramaticais a respeito deste item. Essa realidade pode ser a justificativa para o pouco enlevo conferido pelas gramáticas normativas ao tema. Nas gramáticas observadas, pouco espaço é conferido à explanação do modo imperativo; na maioria delas, pouca ou nenhuma consideração é feita sobre seu uso na fala e, consequentemente, sobre sua importância na caracterização dialetal do Brasil.

A Moderna gramática portuguesa, de Evanildo Bechara, por exemplo, ao versar sobre os modos verbais e defini-los como forma de expressão da “posição do falante em face da relação entre a ação verbal e o seu agente”, apenas informa que o imperativo seria o modo usado “em relação a um ato que se exige do agente” (BECHARA, 2002, p. 283). A apresentação do modo imperativo passa, portanto, primordialmente, pela designação de sua

9

Toma-se aqui como parâmetro o contraste da variação do imperativo com fenômenos como a variação nas concordâncias verbal e nominal, para os quais a avaliação social revela-se de modo marcado. Nas palavras de Lucchesi (2015, p. 206), “[...] a falta de concordância é claramente um estereótipo na avaliação subjetiva dos falantes considerados cultos [...].”.

função discursiva. Nada é aludido sobre sua estrutura, funcionamento, ou padrões de uso. A única informação complementar apresentada diz respeito ao emprego do infinitivo com valor de ordem, com ou sem o uso do verbo querer como modalizador, conforme exemplos extraídos de Bechara (2002, p. 283):

(22) Todos se chegavam para o ferir, sem que a D. Álvaro se ouvissem outras palavras senão estas: Fartar, rapazes.

(23) Queira aceitar meus cumprimentos10 .

A função do imperativo, de modo semelhante, é também apontada pelo gramático Rocha Lima (2003). Segundo o autor, esse modo verbal é empregado na direção a um ou mais interlocutores a fim de manifestar uma atitude que queremos que este(s) execute(m). Esse sentido interativo do imperativo caracteriza-o como um modo pragmático, cujo objetivo não é comunicar um conteúdo em seu sentido denotativo, mas sim agir sobre o interlocutor, conduzindo-o à execução de determinado comportamento.

Ao lado de sua função eminentemente discursiva, algumas gramáticas se debruçam em explicar a constituição morfológica do imperativo em português (CUNHA; CINTRA, 2002; ROCHA LIMA, 2003), apontando a existência de duas formas básicas: a afirmativa e a negativa.

Segundo esses gramáticos, o imperativo afirmativo constitui um tempo misto, pois, para sua formação, concorrem as formas do presente do indicativo sem o -s final (para 2as pessoas singular e plural - tu e vós) e as formas do presente do subjuntivo (para as demais pessoas verbais). Como modo dirigido ao interlocutor, não são, em geral, admitidas as formas de 1ª pessoa, tanto no singular quanto no plural. Rocha Lima (2003) destaca, entretanto, que a forma da 1ª pessoa do plural (nós) pode denotar a disposição do falante em associar-se àqueles a quem a ordem se dirige (Vamos levantar), o que justifica a inclusão desta forma no quadro geral do modo imperativo por parte de alguns gramáticos, como Cunha e Cintra (2002).

O imperativo negativo, por sua vez, é formado pela anteposição do advérbio não às formas do presente do subjuntivo (para todas as pessoas previstas). Portanto, na norma- padrão, o modo imperativo configura-se como exposto no Quadro 2, a seguir:

10

Quadro 2 – Uso do modo imperativo na língua portuguesa, conforme a prescrição gramatical PRESENTE DO INDICATIVO PRESENTE DO SUBJUNTIVO IMPERATIVO AFIRMATIVO IMPERATIVO NEGATIVO eu falo eu fale

tu falas tu fales fala (tu) não fales (tu)

você fala você fale fale (você) não fale (você)

nós falamos nós falemos falemos (nós) não falemos (nós)

vós falais vós faleis falai (vós) não faleis (vós)

vocês falam vocês falem falem (vocês) não falem (vocês)

Fonte: Cunha e Cintra (2002)

Castilho (2010) avalia como “esquisita” a explicação dada para constituição do imperativo afirmativo de 2ª pessoa (forma indicativa sem o -s). Segundo o autor, a motivação mais coerente para a constituição das formas teriam sido as alterações fonológicas ocorridas ainda no latim.

As alterações fonológicas ocorridas nesse modo verbal deram origem a uma regra mnemônica divulgada nas gramáticas, segundo a qual se obtém o imperativo retirando o {s} do presente do indicativo. Esquisito, não? Derivar um modo de um tempo, e ainda por cima de um tempo integrado em outro modo verbal! O resultado é muito mais fruto de coincidência [...]. Pode até ter rimado, mas não é a solução. (CASTILHO, 2010, p. 153).

A respeito do quadro de formação do imperativo, é notório que as considerações propostas pelas gramáticas e materiais pedagógicos estão muito aquém da realidade linguística brasileira, pois ignoram, além da rica diversidade, também os padrões de uso dos pronomes, os quais não seguem as prescrições morfológicas previstas pelas gramáticas normativas, especificamente sobre o uso não flexionado do tu, o desuso do pronome vós e a mescla de formas imperativas derivadas do indicativo e do subjuntivo com o pronome você.

Da observação geral das gramáticas, dois aspectos centrais se destacam: i) o desprezo dado ao caráter dialetal que marca a diversidade linguística brasileira no que diz respeito tanto ao uso do modo imperativo quanto ao uso das formas pronominais tu e você; ii) a pouca dedicação ao tema, que algumas vezes é resumido em econômicas definições baseadas em sua função (em alguns casos pouco mais de uma linha), o que revela a superficialidade da abordagem.

Para o primeiro caso, ressalte-se que não são feitas, nas gramáticas observadas, referências aos usos reais da língua nas diferentes regiões brasileiras, o que não deve ser visto com surpresa, dado o caráter eminentemente prescritivo de tais compêndios. Destacamos, contudo, que, apesar de a função primordial das gramáticas normativas não se concentrar na descrição das variedades dialetais, a defasagem dos modelos de referência fixados frente à realidade atual da língua e sugere a necessidade de atualização dos modelos de ensino, haja vista a recorrência do comportamento em outros fenômenos.

No segundo ponto, a definição do imperativo sustenta-se exclusivamente nos critérios semântico/pragmático e na descrição da constituição morfológica. No curto espaço dedicado ao imperativo, não são tecidos comentários sobre aspectos sintáticos ou demais traços característicos desse modo.