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A presença de uma estética esportiva nas aulas

Outro elemento importante para o ensino de esportes coletivos entre todos(as) alunos e alunas refere-se ao uso de roupas e calçados adequados à prática de amplos movimentos do corpo. Nesse sentido, as narrativas docentes apontaram que também investiam esforços para essa constituição e demandavam aos discentes uma preparação para as aulas que pressupu- nha um cuidado anterior a elas, que se iniciava em casa, num preparo que também proporcionava uma maior disponibilidade corporal para a prática da educação física escolar. O oposto a isso, a utilização de roupas e sapatos impróprios, pode assumir também um caráter de resistência aos fazeres durante as aulas.

Não pode fazer de calça jeans, chinelo ou descalço, nada disso. Tem que ser com uniforme. Quem não tem uniforme vem com uma bermuda dessas de surf ou uma bermuda para esporte mesmo, menina pode ser calça leg (...) quem não vem, eu até falo na reunião de pais, eu mando bilhete, não é para dar castigo, é só para avisar os pais para prestarem atenção (Professor Nilton).

Também o professor Edson, queixou-se do uso de roupas e sapatos inadequados para a prática esportiva, “é uma briga: é rasteirinha, tênis é pouco [usado], por mais que você brigue, calça jeans”. A vestimenta esporti- va surgiu nas narrativas como algo importante para estes docentes, algo que facilitava a participação e a realização de amplos movimentos corporais, pre- parando melhor alunos e alunas para a prática corporal esportiva na escola.

Segundo Carmen Lúcia Soares (2012), as roupas confi guram me- diações na relação entre os seres humanos e o mundo natural, assim como condensam modos de ser:

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No que se refere às roupas, não seria anódino afi rmar que a todo mo- mento elas revelam ligações com poderes e saberes, sugerindo hierar- quias sexuais e de gênero, sublinhando a força das crenças, seja pelos detalhes que portam, seja mesmo pelo que oferecem como conjunto coeso. Uniformes para diferentes atividades e locais que vão da escola ao exército, do clube à igreja, passando pelo esporte e pela educação física, parecem uniformizar, também, as maneiras de se portar conforme as circunstâncias, valorizando hábitos e costumes públicos (SOARES, 2012, p. 21).

Mais do que preparar para participar da aula, ao solicitar roupas confortáveis para a prática corporal, docentes investiam em novas formas de alunos e alunas estarem no contexto escolar e de se relacionarem com seus corpos. Ao lhes solicitar tênis e vestimentas confortáveis, professoras(es) sugeriam também modos de ser, pois as vestimentas e outros artefatos se vinculam também às maneiras de se comportar, de aprender, de experimen- tar o contexto escolar.

No que se refere às meninas, é específi co que este estilo esportivo solicitado para melhor participar das aulas divergia em muitos aspectos de outra estética recorrente no modelo de feminilidade enfatizada, que também se faz presente no contexto escolar. Tal modelo tende a confi gurar a mulher nos marcos da imobilidade do corpo, do padrão de vestir, maquiar-se e se comportar de modo moderado e contido, como exposto e criticado por Fernanda Roveri e Carmen Lúcia Soares (2011) em suas pesquisas sobre a feminilidade, que revelaram investimentos em modos de ser distintos da plasticidade do corpo.

Quando nasce uma menina, logo a embrulham em cor-de-rosa, selam- -na e estampam-na com uma marca: Barbie. Sua mãe a enfeita com laços, fi tas e apetrechos que evocam a imagem da deusa, fada loura e fi el companheira de todas as garotas. É preciso fazê-la crescer meiga, gracio- sa, delicada. Ensiná-la a ser menina, sensível e romântica... (ROVERI; SOARES, 2011, p. 148).

Professoras e professores lidam diariamente com situações enreda- das por este modelo de feminilidade. A concorrência entre este modelo de feminilidade enfatizada e a estética esportiva na escola confi guraram especifi cidades com relação aos cuidados com os modos de apresentação do corpo de uma parcela das meninas nas aulas e demandaram intervenção docente diferenciada.

A menina tem que estar sempre com o cabelo arrumadinho (Professora Paula).

Capítulo 2 – A educação esportiva e gênero na escola pública: posicionamento docente positivo diante do fazer esportivo de meninas

Correr, elas não gostam porque sua (Professor Edson).

A menina você precisa convencer, ela não quer transpirar, ela tem unha e não quer, tem medo de quebrar a unha, e é cheio de adornos e adereços, tem que falar para tirar o brinco, tem que falar que não pode, que é perigoso (Professor Nilton).

Tais apontamentos com relação aos cuidados do corpo de uma par- cela das meninas revelaram que, para algumas alunas investirem em seus aprendizados esportivos na escola, fez-se necessário um desfazer corporal acerca de como se apresentavam para as demais aulas. Todos estes cuidados (e o desfazer-se deles) se relacionam diretamente ao controle do corpo fe- minino. Susan Bordo (1997) pontuou que a feminilidade no modelo sobre gênero hegemônico “lança uma sombra carregada e inquietante”, pois as mulheres gastam muito mais tempo com o tratamento e a disciplina dos corpos no sentido da sua contenção. A autora revela os regimes de controle do corpo feminino por meio das demandas da constituição de um modelo de feminilidade:

Através da busca de um ideal de feminilidade evanescente, homogenei- zante, sempre em mutação – uma busca sem fi m e sem descanso, que exige das mulheres que sigam constantemente mudanças insignifi cantes e muitas vezes extravagantes da moda – os corpos femininos tornam-se o que Foucault chama de “corpos dóceis”: aqueles cujas forças e energias estão habituadas ao controle externo, à sujeição, à transformação e ao ‘aperfeiçoamento’. Por meio de disciplinas rigorosas e reguladoras da dieta, a maquiagem e o vestuário [...] somos convertidas em pessoas menos orientadas para o social e mais centradas na automodifi cação (BORDO, 1997, p. 20).

Os fazeres nos esportes coletivos impactam com esse modelo de femi- nilidade. As demandas hegemônicas sobre as formas de controle do corpo das meninas na escola, nas quais se reconhece os cabelos bem penteados, maquiagem e adornos corporais são constantes, e evidenciam que, para elas realizarem os gestos esportivos com efi cácia, é necessário investir em outros cuidados específi cos. Os cabelos longos e soltos, por exemplo, podem atra- palhar o fazer do corpo quando o gesto demandar um movimento rápido. Se durante a prática esportiva é bastante comum o corpo suar, re- tornar à sala de aula com o mesmo uniforme utilizado na educação física é algo desconfortável para alunas e alunos. Nesse sentido, a ausência de locais adequados para a troca de roupas nas escolas, tais como vestiários, conside- rando que difi cilmente as meninas trocam camisetas e coletes na quadra de

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aula com a mesma facilidade que os meninos, constituem fatores a serem considerados que tendem a diminuir a intensidade da realização das lições corporais nas aulas.

A preocupação com a beleza enfatizada, em vários momentos, se opunha a outros elementos, tais como a funcionalidade da roupa e calça- do, o conforto e a mobilidade do corpo, e algumas escolhas podem impor restrições de movimentos às meninas na escola. Ao solicitar a utilização de roupas confortáveis, docentes incentivaram as meninas a viver o espaço escolar com maiores possibilidades de movimento do corpo e ocupação dos espaços, construindo também disponibilidade corporal para a realização da aula na quadra.

Com o decorrer do aprendizado ocorre também uma ampliação das formas de adquirir status entre colegas, que se distingue daquelas circunscri- tas pelo ideal hegemônico de beleza. Essa outra forma advém das conquistas no campo esportivo, pois um fazer esportivo efi caz ocasiona também status às meninas, um lugar de destaque nas relações sociais escolares. Segundo Laura Hills (2007), a aquisição de um saber corporal esportivo possibilita converter este capital físico em capital social nas relações entre escolares, visto que o esporte é um fenômeno cultural bastante apreciado e realizado em equipe, o que ocasiona sociabilidades.

O posicionamento positivo docente diante do fazer esportivo das meninas