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Cenário: Jogos Pan-americanos no Rio, 2007. Nilo V.O., um gara- nhão branco elegante e bem treinado, desfi la nas pistas. Seu cavaleiro, ves- tindo um casaco de cauda e uma cartola, tenta ser discreto. Afi nal, conforme as regras da competição de adestramento todas as atenções durante o desfi le devem convergir ao cavalo que, na modalidade, não é um objeto por meio do qual o cavaleiro atinge índices, mas sim o sujeito deste esporte. No en- tanto, a discrição do cavaleiro esbarra em um detalhe: Rogério Clementino é o primeiro negro da história dos Jogos Pan-americanos a fazer parte de um time de adestramento. Ao fi nal dos Jogos de 2007, ele conquista uma medalha de bronze cavalgando Nilo. Em 2008, novamente com Nilo, Roger seria o primeiro negro a participar de uma equipe de adestramento nos Jogos Olímpicos. Infelizmente, o conjunto “Ebony and Ivory” (KNIJNIK, et al. 2008) não foi capaz de competir em Pequim, pois Nilo não passou nos exames médicos antes do início da competição.

“Tal como humanos, os cavalos-atletas têm o poder de nos inspirar e, às vezes, de partir nossos corações” (WARREN, 2003, p. 1). Na primei- ra vez que assisti à apresentação do Nilo/Roger na Rio 2007 –eu estava na competição com o objetivo de estudar as “masculinidades delicadas” (ROJO, 2015) - fi quei impressionado com a metáfora “Ebony and Ivory” e a delicadeza de suas apresentações. O fl uxo de sua dança mostrava como era forte a sua conexão. Eles não eram um humano montado em um cavalo ou um cavalo sendo montado por um homem; eles eram outra “criatura” (GAME, 2001, p.1-2). Essa unicidade harmônica me inspirou a seguir essa “criatura” no meu projeto de pesquisa sobre masculinidades.

Minha inspiração se justifi cou. Roger e Nilo começaram como ‘mar- ginais’ na cena esportiva equestre brasileira; Nilo tinha sido um cavalo abandonado no estábulo de Victor Oliva quando Roger começou a lhe dar alguma atenção; ao mesmo tempo, Roger era um empregado humilde no

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Jorge Knijnik

rancho quando começou a trabalhar com Nilo. O relacionamento entre eles fortaleceu ambos e impactou o cenário das relações de gênero no adestra- mento brasileiro (BUTLER, 2006).

É a relação humano/cavalo encarnada por Roger e Nilo e as tensões dessa relação com Victor Oliva − o homem “hegemônico” (CONNELL, 1995a) que ganham importância na construção do que eu chamo de mas- culinidades fl uidas no campo do adestramento. A imagem da guerreira amazônica (ADELMAN, 2004) é apenas um exemplo que ilustra como a interação humanos/cavalos pode se tornar um fator nas “desestabiliza- ções das fronteiras de gênero” (PLYMOTH, 2012, p. 345). Birke e Brandt (2009, p. 189), em um trabalho seminal sobre relações humanos/cavalos, argumentam que a incorporação mútua que ocorre dentro dessas relações oferece “várias maneiras pelas quais o gênero pode ser produzido”. As auto- ras observam que os seres humanos têm experiências de gênero singulares ao lidar com animais, mas “os próprios animais se tornam generifi cados por meio da interação” (2009, p. 189).

Em um país onde apenas uma minoria é ‘cavaleiro’ de elite, enquan- to a maioria ainda é tratada como animais de carga, este artigo mostra como as interações entre Roger e Nilo e entre os dois e Victor Oliva fazem fl uida a noção de uma masculinidade única no mundo equestre brasileiro (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2005). Os dados para minha análise vêm de duas fontes: entrevistas em profundidade conduzidas com Roger e minhas anotações etnográfi cas feitas durante competições de adestramento nas quais Roger estava competindo e/ou trabalhando como treinador para o fi lho de Victor Oliva, ou durante visitas ao rancho de Victor Oliva.

O artigo começa com uma explicação do cenário da competição de adestramento e da minha rota de pesquisa nos esportes equestres brasileiros. Em seguida, descrevo alguns aspectos relevantes das vidas interconecta- das dos três protagonistas deste artigo – Roger, o negro; Nilo, o branco e Victor Oliva, o ‘verde’. Depois disso, realizo uma análise do discurso (DENSCOMBE, 2003) de minhas entrevistas com Roger, usando insights de minhas anotações etnográfi cas para refl etir sobre as questões de gênero que surgem das relações entre os três protagonistas. Nesta análise, mostro como a conexão interespécies (Nilo/Roger) fortalece a masculinidade de Roger, ao mesmo tempo em que transforma a de Victor Oliva. Meu arca- bouço teórico é baseado na pesquisa de Birke e Brandt (2009, p. 189) na qual as autoras discutem a “corporeidade mútua”, ou a “copersonifi cação” que ocorre entre cavalos e humanos, a qual produz novas tensões dentro da ordem de gênero. Como as autoras afi rmam, “a presença de cavalos possi- bilita uma subversão das práticas de gênero dominantes, particularmente

Capítulo 7 – Cavalgando no arco-íris: masculinidades fl uidas no adestramento brasileiro

em nível privado”. (p. 189). Concluo refl etindo sobre o que pode ser não apenas o desenvolvimento de novas pesquisas sobre questões de mascu- linidade no campo equestre do Brasil, mas também novas possibilidades trazidas para a arena esportiva pelas relações humanos/cavalos (ADELMAN; THOMPSON, 2017).

Adestramento

Ao contrário de outras formas de competição equestre que são ba- seadas em realizações mensuráveis do cavalo/cavaleiro, o adestramento é subjetivo. Em competições de adestramento, o tandem - o par formado por cavalo e cavaleiro – é avaliado por um grupo de juízes por sua harmonia e movimentos específi cos que ele tem que demonstrar na arena (ROJO, 2015).

As particularidades da competição de adestramento - progressões rítmicas e delicadas que são comparadas a movimentos de dança - criaram um estereótipo de gênero para a modalidade e seus competidores. (ROJO, 2015). Mesmo tendo em suas origens o objetivo de mostrar o controle do macho sobre seus cavalos, hoje em dia dentro do mundo equestre, o adestramento é visto como uma arena feminilizada (ADELMAN, 2004; BIRKE; BRANDT 2009). Dashper (2012) aponta que homens afeminados e gays tendem a ser mais bem aceitos no contexto do adestramento do que em outros campos dos esportes equestres e mesmo em outras modalidades esportivas.