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Modos de problematizar os processos de normalização do gênero e da sexualidade

No plano metodológico, priorizo a escuta dos sujeitos privilegiando as suas falas localizando-as como produções que possibilitam analisar uma trama discursiva. Para isso, nesta trajetória investigativa e na pesquisa citada acima, operei com grupos focais, entrevistas e questionários, prioritaria- mente.

Em tempo, considerando o papel social da universidade e, de modo mais importante, a potência investigativa e de luta das micropolíticas, tra- mam-se de tensões e desafi os para as disputas pelos modos de (re)conheci- mento dos corpos pelo Estado na modernidade. “Caminhos que complexifi - cam as análises sociais no campo da educação e da Educação Física escolar”, bem como visibilizam as relações de poder-saber gênero-sexualizadas que produzem desigualdades sociais no Brasil, de modo determinante quando interseccionadas por raça e classe.

Modos de problematizar os processos de normalização do gênero e da

sexualidade

Como decidir do desejo? Algum padrão diz do que e de quanto vive?

Ele vive do que deseja? É uma necessidade?

Subsiste no fundo do tempo?  Faz-se num minuto? Morre 

no outro? Perdura uma existência inteira? O desejo que não desejamos,

refreá-lo como? Respiramos. Há interromper-lhe o passo? O desejo nos ouve? 

É cego? É doido? O desejo vê  mais que tudo? São os nossos  os seus olhos? Se os fechamos,  ele fi nda? Quem pôs o desejo em nós? Onde está posto? E onde não?

Penetra o sonho, o trabalho, infi ltra nos livros, no óbvio, nos óculos,  na cervical, na segunda-feira e os versos  não sabem outro tema [...]3.

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Priscila Gomes Dornelles

(A questão, Eucanaã Ferraz)

Como problematizamos o desejo, as normas de gênero e sua pro- dução na modernidade? “Quem pôs o desejo em nós? Onde está posto? E onde não?” Distinta de uma implicação que busca a origem, como propõe a poesia, assumo caminhos que se preocupam em compreender o “como” da produção gênero-sexualizada do desejo e dos corpos. Deste lugar, priorizo evidenciar os modos pelos quais as normas defi nidoras dos corpos funcio- nam no campo da educação, da Educação Física e, mais recentemente, na Educação do Campo4 - áreas onde os grupos aos quais me vinculo atuam de

modo prioritário. Este lugar é localizado cotidianamente, é construído e se torna possível a partir dos estudos feministas em diálogo com a teoria queer e com os estudos foucaultianos pós-estruturalistas. Neste rastro, durante a pós-graduação, no mestrado e no doutorado, me detive a compreender alguns processos pedagógicos da Educação Física escolar – prioridade do meu trabalho também na UFRB.

Deste modo, junto a estes grupos, tratamos de pesquisas em espaços educativos por assumirmos uma concepção de educação como “um pro- cesso pelo qual os outros são trazidos ou conduzidos para a nossa cultura” (VEIGA-NETO, 2006, p. 29-30). Isso signifi ca apontar para um conjunto de práticas que investem na condução da conduta do outro, as quais são mais amplas e plurais do que os processos institucionais escolarizados, mes- mo considerando certa prioridade em dialogar e compreender as relações sociais na escola.

Essa compreensão segue na esteira da proposição elaborada por Meyer (2009), ao conceituar educação como

[...] o conjunto de processos através do qual indivíduos são transforma- dos ou se transformam em sujeitos de uma cultura. Tornar-se sujeito de uma cultura envolve um complexo de forças e de processos de apren- dizagem que hoje deriva de uma infi nidade de instituições e ‘lugares pedagógicos’ para além da família, da igreja e da escola, e engloba uma ampla e variada gama de processos educativos, incluindo aqueles que são chamados em outras teorizações de “socialização” (p. 222).

4 O Centro de Formação de Professores da UFRB apresenta os cursos Licenciatura em Educação

do Campo e Mestrado Profi ssional em Educação do Campo nos quais atuo, além do curso de Licenciatura em Educação Física.

Capítulo 5 – Caminhos teóricos, metodologias e proposições políticas para “caminhar” com gênero e sexualidade na educação física: alinhavos com os estudos queer

No excerto acima, a autora trata da importância de considerar as pedagogias que são colocadas em ação no âmbito da cultura para além dos processos educativos formais. Mesmo sem tanto ‘peso’ e/ou reconhecimento acerca do seu caráter educativo, os efeitos de poder na produção dos sujeitos são potentes e, por isso, é importante ater-se para a sutileza e a naturalização das estratégias postas em movimento por essas pedagogias culturais (idem, 2005). É na esteira das discussões sobre cultura postas pelos estudos cul- turais que esse conceito é aqui compreendido e investigado, também, pelo seu caráter pedagógico.

Assim, investi ‘olhares’ sobre os espaços culturais de modo a visibilizar e evidenciar os modos através dos quais o gênero regula, organiza e defi ne o que conta como narrável, vivível e concebível em relação aos sujeitos so- ciais. Para isso, primeiramente, assumo o gênero como uma norma que atua performativamente (BUTLER, 1990) como uma série de ações normativas constritivas que ‘adjetivam’ o sujeito de modo binário em masculino ou em feminino. Dialogo com Beatriz Preciado (2008), ao propor o conceito de tecnogênero compreendendo-o como uma norma que investe em técnicas farmacopornográfi cas que constituem a materialidade do sexo. A assunção deste conceito aciona caminhos teóricos e analíticos que buscam evidenciar “por onde o processo de normalização passa, por onde se infi ltra e como se infi ltra” (LOURO, 2007, p. 146).

Convoco também a heteronormatividade, pautando um feminismo implicado com a implosão dos binarismos, inclusive aqueles construídos na ação política das minorias (como as homonormatividades, por exem- plo). Reafi rmo, com isso, que analisar a produção (hetero)normativa do sujeito signifi ca considerar a relação do desejo no campo da experiência, investindo nas possibilidades que se colocam nos rumos ambíguos, no des- locamento pelas fronteiras e nos “esboços grosseiros de formações iden- titárias” (HALBERSTAM, 2012, p. 2). Tramas corrosivas daquilo que a modernidade e o Estado buscaram/buscam normatizar/normalizar como um humano-corpo-viável e que importa socialmente.

Trato as identidades de gênero (masculino e feminino) acionadas em algumas perspectivas feministas e/ou identitárias tanto como produtos epistemológicos quanto como base binária de uma lógica heteronormativa que naturaliza a heterossexualidade – e, aqui, temos um amálgama potente entre gênero e sexualidade na produção teórica e analítica que acionamos. Nesta linha, ‘fl erto’ com a interseccionalidade (PISCITELLI, 2008; BILGE, 2009; POCAHY, 2013) considerando outras categorias que funcionam na produção normativa deste sujeito moderno. Tangencio o conceito de interseccionalidade ao propor distâncias políticas de certa causalidade e/ou

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articulação sobreposta entre as categorias que constituem diferentes formas de dominação e de desigualdade produzidas pelos discursos generifi cados e sexualizados.

Isto signifi ca operar com táticas da complexa interimplicação entre gênero e sexualidade, considerando, ainda, a inter-relação de outras bases identifi catórias constituidoras dos jogos prescritivo-restritivos dos corpos na Educação Física. O investimento nessa proposta entrecruzada é político. Com isso, aponto para as

[...] condições políticas e epistemológicas para consubstanciar relações sociais e culturais, tanto em suas formas de dominação, quanto nas possibilidades de experimentação e produção de novos modos de vida em seus arranjos éticos, estéticos e políticos (POCAHY, 2013, p. 70).

Por fi m, investimos e destrinchamos o conceito de norma e situamos sua potência como “uma maneira de produzir uma medida comum [...] a partir do que se dá a possibilidade de um direito nas sociedades modernas” (EWALD, 2000, p. 111) em uma conjuntura em que há a produção e o investimento em uma política do cálculo e do gerenciamento das popu- lações – a biopolítica. Foucault (1999) explica este conceito investindo em visibilizar um dos modos de funcionamento do poder assumidos pelo Estado na modernidade. Aquele que investe na produção regulatória dos corpos, sem abandonar as táticas disciplinares.

As aproximações entre gênero, sexualidade e biopolítica acionadas por Beatriz Preciado (2014) ao explicar a biopolítica como a produção de um corpo em vida importante para o Estado e para o mercado, o qual é regulado pelo dispositivo da sexualidade para garantia de vidas heterossexuais. Deste modo, investimos na compreensão teórica da normalização disciplinar e regulatória como meios/modos de investigar e disputar a operacionalização normativa considerando as tramas de gênero.