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Depois de vários anos trabalhando juntos, a relação Nilo / Roger fi cou muito bem estabelecida. Eles estavam se saindo bem em competições locais e nacionais. No entanto, o apoio que recebiam de Oliva ainda era mínimo; eles tinham acesso a treinamento formal de adestramento, mas não com os melhores instrutores. Então, o tandem Nilo / Roger foi convidado para fazer parte de uma série de workshops de adestramento, dirigidas por Eric Lette, que seria o técnico da seleção brasileira nos Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro em 2007. As memórias de Roger daqueles dias são claras:

Houve uma competição interna neste workshop. No início, havia mais de 20 tandens e o Sr. Eric estava eliminando alguns pares para o próximo workshop. E fomos fi cando, fomos fi cando... e fi quei como reserva da equipe. Eu ainda estava sozinho, com Nilo, mas nossas manobras eram tão boas, nosso conjunto estava tão legal, o cavalo estava em tão boa forma, que um dia o Sr. Oliva veio até mim e disse: “Você vai praticar com Joham Zagers” um famoso treinador sueco que morava no Brasil. Isso sairiam realmente caro, e o Sr. Oliva pagou tudo e lá fomos nós! Joham tornou-se meu treinador!

O treinamento formal era o que Nilo / Roger estavam procurando e esse treino mais qualifi cado tornou-se central para ampliar e solidifi car a conexão de ambos. O rigor do treinador sueco fez-se presente na criação

Capítulo 7 – Cavalgando no arco-íris: masculinidades fl uidas no adestramento brasileiro

do centauro bicolor e fl uido em que Nilo/Roger foram se transformando. Como Game (2001, p. 5) argumenta, “adestramento é trazer à vida a rela- ção entre cavalo e cavaleiro, envolvendo uma reciprocidade crescente entre ambos, na percepção e amalgama entre um e outro”.

No entanto, não foi apenas o relacionamento deles que mudou du- rante o treinamento. O aprimoramento do relacionamento Nilo / Roger foi o início de mais uma virada nesse intrincado jogo de masculinidades. À medida que a “corporeidade mútua” experimentada por Nilo / Roger se tornou mais reconhecida e valorizada, Roger tornou-se mais assertivo com Oliva, que, ao mesmo tempo, começou a se mover de sua posição hegemô- nica de “super-homem”, aceitando as opiniões e ideias de Roger.

Logo após o almoço com Oliva e seus amigos, Roger me contou algo que parecia inacreditável. Pode parecer um simples pedido, mas na verdade é um exemplo de um grande passo e um grande desafi o para os dois homens. Roger me disse que pouco antes dessa competição nacional ele pediu melhores condições:

Eu queria dormir em uma cama boa e quente, queria um banheiro tomar um banho quente. Então, algumas semanas atrás eu perguntei se eu poderia ir a um hotel no período da competição, em vez de fi car na baia junto com os cavalos. O Sr. Oliva concordou ...

No grupo social de elite ao qual pertencem homens brancos, ricos e poderosos como Oliva, permitir que um humilde empregado negro vá ao hotel e almoce na mesma mesa com o dono do cavalo não é bem visto. É considerado um tipo de fraqueza, uma ameaça a masculinidade dominante. Os patrões e proprietários de cavalos e fazendas devem estar no controle, exalando sua poderosa masculinidade (CONNELL, 1995a) e não se mistu- rando com os subordinados. Os primeiros devem demonstrar por diversos meios que suas masculinidades são socialmente centrais, e estão acima nas hierarquias sociais do que as demais (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2005). Entretanto, o desenvolvimento do centauro bicolor infl uenciou de tal forma a conexão entre Roger e Vitor que esta passou a ser mais fl uida, com crescentes intercâmbios entre ambas masculinidades. Uma nova forma de relação entre os dois homens estava se afi rmando.

Roger atesta que Oliva estava mudando seu comportamento em relação a ele. Eles conversavam muito mais e Oliva começou até a aconselhar Roger sobre questões importantes como preconceito racial. “Seu conselho para mim era simplesmente ignorá-los se eles dissessem algo sobre a minha cor, apenas ignorá-los. Ele insistia para que eu continuasse com meu traba- lho duro, sempre de olho nos meus objetivos, e que não parasse de caminhar

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Jorge Knijnik

por nada, seguisse andando ”, me contou Roger, com um sorriso largo e inocente. Oliva estava usando sua posição como um homem hegemônico local para ensinar Roger a usar um tipo de ação e discurso para “promover o autorrespeito em face do descrédito, por exemplo, da humilhação racista” (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2005, p. 842).

No entanto, Roger nunca foi ingênuo. Tinha uma experiência in- corporada aos longos anos de labuta física. Ele sempre foi inteligente o sufi ciente para perceber que o reconhecimento de Oliva do valor de sua parceria com Nilo signifi cava outras coisas também. “É negócio, compa- nheiro, tudo negócio. Ele está ganhando dinheiro conosco e, se é bom para o senhor Oliva, é bom para nós também ”.

A maneira de Roger negociar e desafi ar a posição de Oliva na hierar- quia masculina (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2005) estava contri- buindo para suavizar a dureza e a rigidez do patrão. Isso estava evidenciado pela abertura de Oliva para um maior diálogo com seu cavaleiro. Mas há outras evidencias que deixavam esta nova situação ainda mais clara.

Uma tarde eu estava no clube de equitação assistindo à competição infantil de adestramento, na qual o fi lho mais velho de Oliva, João, de 12 anos, competia. Oliva, agitado e nervoso, não se conteve sentado na arqui- bancada no papel de espectador e foi conversar com o fi lho e com Roger. Foi então que percebi que Roger havia assumido o papel de treinador de João, um trabalho que ele abraçou a pedido do próprio Oliva. Fiquei atento observando a conversa, a qual terminou com Roger sorrindo e Oliva par- tindo com raiva. A mãe de João (Hortência) que estava ao meu lado, sorriu nervosa e comentou: “ O Vitor é louco”.

Mais tarde, Roger me contou que Oliva tinha uma postura muito dura com o fi lho; ele queria que seu fi lho fosse “o melhor homem em toda a competição”. Roger queria que o menino brincasse e se divertisse com os cavalos. Para ele João ainda era uma criança. Oliva discordava, e isso foi gerando um nível crescente de tensão entre os dois homens. Tais batalhas entre masculinidades são observadas também por Connell e Messerchmidt (2005, p. 841), que mostram como o cotidiano de meninos e homens é infl uenciado por divergências e pela sobreposição de várias masculinidades, “incluindo as incompatibilidades, as tensões e as resistências”. A intera- ção descrita acima mostra como Roger estava aprendendo como praticar e exercitar, em sua vida cotidiana, “ o poder e a resistência de gênero” (CONNELL; MESSERSCHMIDT 2005, p. 841).

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