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A ‘nova criatura’, o centauro criado pela relação Nilo/Roger é o foco desta seção. Minhas conversas com Roger tornaram-se mais intensas, com pausas maiores, necessárias para uma maior refl exão e até para uma respi- ração mais profunda, quando começamos a falar sobre sua vida e a de Nilo, e sobre a afi nidade entre ambos. Em nosso segundo encontro, pedi a ele que falasse ‘um pouco’ sobre sua relação com Nilo. Roger estava relutante; eu podia sentir o quanto ele estava irrequieto enquanto falava sobre esse relacionamento. Como Game (2001, p. 4) afi rma “a relação é o que importa aqui - indivíduos, humanos e cavalos, e espécies, são esquecidos”

Cara, eu vou te dizer uma coisa ... Este cavalo para mim ... ele é ... ele é uma benção ... ele é uma bênção ... Foi Deus, só Deus que o colocou na minha frente ... Quando eu comecei no garanhão, ninguém cuidava dele… Ele foi o primeiro cavalo que tive a oportunidade de montar em uma competição… Então, tudo que aprendi com meus colegas eu ensinei a Nilo, tudo… Então eu trabalhei duro com ele, comecei a fazer adestramento com ele, e no nosso primeiro ano juntos fomos para o campeonato brasileiro, para iniciantes… E vencemos!

O conceito de ‘relacionamento’ também é central na conceptualiza- ção que Connell e Messerschmidt elaboram sobre gênero e masculinidades. Eles concebem a masculinidade não como um traço rígido com o qual alguém nasce; em vez disso, a masculinidade é encenada no mundo social, no cotidiano e nas práticas das pessoas. De acordo com Connell e Messerschmidt (2005: 836), “masculinidades são confi gurações de prática que são realizadas na ação social e, portanto, podem diferir de acordo com as relações de gênero em um ambiente social particular”.

O empoderamento de ambos, Nilo e Roger, em todo o relaciona- mento deles é evidente nas palavras de Roger e foi confi rmado em minhas observações. Roger afi rma que no início, Nilo era

Um patinho feio ... Era impressionante como ninguém iria falar sobre ele, exceto para reclamar ... O Sr. Oliva estava tentando vendê-lo, mas ele não conseguiu encontrar ninguém para comprar… Mas agora, uau! Estamos tentando acasalá-lo com algumas éguas ... o Sr. Oliva já vendeu seu sêmen uma vez, ele fez um pouco de dinheiro ... Ele me deu uma porcentagem também!

Capítulo 7 – Cavalgando no arco-íris: masculinidades fl uidas no adestramento brasileiro

Enquanto Roger explicava como Nilo subia na hierarquia econômi- ca e social, ele também me contava que ele, Roger, com a ajuda de Nilo, também subira alguns degraus nesta hierarquia. Como homem e como trabalhador, ele agora se sentia mais valioso.

Antes de Nilo e eu começarmos a ganhar as competições, eu era o cara que todos na fazenda vinham com uma ordem para fazer alguma coisa. Eu era o que eles chamavam de ‘faz tudo’, sempre feliz em ajudar. A diferença é que nunca tive que ouvir duas vezes. Eu sempre fi z o que eles pediram de mim. Acordava às 6 da manhã e ia para a cama depois das 10 da noite. Minha esposa estava sempre reclamando ... Mas eu disse que tinha que trabalhar duro para alcançar meus objetivos ... E eu estava frequentemente passando tempo com Nilo, tomando conta dele, falando com ele, fazendo carinho, beijando,...

Como pode ser visto pela sua fala, Roger estava na base da hierarquia social no rancho. No entanto, ao mesmo tempo, ele estava construindo seu relacionamento com Nilo; ele fazia isso com trabalho, mas também com gentileza e carinho. Plymoth (2012, p. 337) afi rma que “os meninos e os homens estão em um grau consideravelmente menor [do que as mulheres] engajados nas tarefas diárias de cuidar dos cavalos nas escolas de equitação e em outros lugares”. Roger, no entanto, estava realizando essas tarefas - interpretando “valores femininos” como afi rmam Birke e Brandt (2009, p. 192) - que, neste caso, talvez não fossem vistos como ‘contaminando a masculinidade de Roger’, pois ele também estava montando e adestrando Nilo, domando a sua selvageria para torná-lo um bom cavalo de adestra- mento. No entanto, havia uma ambiguidade neste relacionamento, pois ao mesmo tempo que o cavalo “simbolizava grandes façanhas de conquista, esses feitos [do torneio de adestramento] dependem do cavalo fi car domado, sua selvageria contida pela domesticação - e implicitamente feminizada” (BIRKE; BRANDT, 2009, p. 193).

A fl uidez ambígua da masculinidade do conjunto Branco & Preto formado por Roger e Nilo começou a fi car clara para mim. À medida que construíram seu relacionamento (“a cada dia passávamos mais tempo juntos, ele me entendia, eu o entendia, já faz seis anos”, diz Roger), Nilo passou de um ‘patinho feio’ para um grande garanhão; e conquistou este grau superior de masculinidade realizando uma dança ‘feminina’ em seu adestramento. Sua fama como um bom garanhão cresceu, assim como o par tornou-se bem conhecido no circuito de competições de adestramento, terminando entre os três primeiros em vários concursos. Claro que não apenas Nilo era reconhecido como um ‘macho melhor’ - um bom garanhão; Roger também subia na hierarquia masculina. Aqui foi a sua coencarnação que os ajudou a

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Jorge Knijnik

se tornarem mais ‘valiosos’ em termos de sua masculinidade. Em sua abor- dagem teórica à coencarnação de cavalos e humanos, Birke e Brandt (2009: 196) afi rmam claramente que são as especifi cidades da corporeidade mútua na relação homem / animal que criam um novo desempenho de gênero:

Mas aqui, ao contrário de muitos dos mundos sociais nos quais fazemos gênero, nos envolvemos em coreografi a com outro - com outro que não é humano. As pessoas e os cavalos criam uma espécie de intimidade quando conectados por meio da incorporação, uma intimidade que é encenada e traz mudanças ao corpo. (…). É também uma corporifi cação que pode carregar uma infi nidade de signifi cados e fl uidez.

É dentro desse contexto fl uido de gênero, onde as fronteiras e os estereótipos femininos e masculinos são misturados e esfacelados e no qual o cavalo e o cavaleiro se modifi cam à medida que se entendem e constroem seu relacionamento, é aqui que Oliva, o ‘verde’ é desafi ado a contribuir com essa fl uidez de gênero. É aqui também onde sua própria masculinidade se torna mais fl uida.