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Futebol Generifi cado como processo educativo empoderador

O jogo de Futebol Generifi cado foi desenvolvido a partir de minhas refl exões sobre a Educação Física escolar e os Estudos de Gênero e consiste em um jogo de futebol/futsal adaptado que serve de pano de fundo para refl exões sobre as relações de gênero. A descrição do jogo apresentada a seguir foi esboçada originalmente no artigo Algunas posibilidades para pro-

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Osmar Moreira de Souza Júnior

blematizar la cuestión de género em las clases de Educación Física (SOUZA

JÚNIOR; MILANI; DARIDO, 2016) da edição de número 54 da revista

Tándem: didáctica de la Educación Física.

O Futebol Generifi cado, basicamente é um jogo de futebol adapta- do, de forma que as áreas de meta da quadra de futsal são interditadas aos meninos que se enfrentam em um jogo muito similar ao convencional no restante da quadra de jogo com o objetivo de acertar os inúmeros alvos (podem ser garrafas ou cones) espalhados pela linha de fundo da quadra defendida pela equipe adversária. Já as meninas (em número de uma ou duas por equipe) não podem sair de sua área defensiva e tem a obrigação exclusiva de proteger os alvos usando apenas os pés.

Para tornar a pontuação mais dinâmica, sugere-se distribuir os alvos na linha de fundo como se fossem pinos de boliche, viabilizando a possibi- lidade de múltiplos pontos a cada ataque. Cada alvo derrubado contabiliza um ponto para a equipe atacante e as meninas fi cam obrigadas a repor a bola em jogo antes de reorganizar os alvos derrubados, sendo que caso mais alvos sejam derrubados nesse intervalo de reorganização, a pontuação é dobrada para ‘punir’ sua demora.

O jogo segue durante um tempo com essas regras até que se acrescen- ta a possibilidade das meninas saírem da área de defesa para participarem do ataque, com a restrição de que apenas elas podem proteger os alvos defensivos, além disso, a pontuação das meninas vale apenas metade da obtida pelos meninos, ou seja, cada alvo que elas acertam contabiliza 0,5 ponto para a equipe.

Após mais algum tempo altera-se novamente uma regra, determinan- do que as meninas não têm mais a escolha de participar do ataque quando decidirem, elas serão obrigadas a sair da área e participar do ataque quando suas equipes estiverem de posse da bola e a retornar para a área defensiva toda vez que o time perder a bola.

Este é o desenho do jogo e após a sua realização acontece uma roda de conversa que é o foco principal da atividade. Para mediar a conversa nessa roda, após uma rodada na qual os alunos e as alunas apresentam suas percepções gerais sobre o jogo, o/a professor/a pode provocar a turma por meio de alguns questionamentos tais como:

• Como os meninos e as meninas se sentiram jogando com as regras pré-estabelecidas?

• Quais as semelhanças entre os papéis/funções desempenhados por meninas e meninos no jogo e os papéis que costumam desempe- nhar na sociedade de forma geral?

Capítulo 3 – Gênero, educação física escolar e pedagogia do esporte: construindo processos educativos empoderadores

• Como poderíamos comparar as delimitações dos espaços de atua- ção de meninos e meninas no jogo de Futebol Generifi cado e a circulação de homens e mulheres nos espaços públicos e privados da sociedade como um todo?

• Consideram justo que os gols marcados pelas meninas valham me- tade dos pontos em relação aos dos meninos? Por quê? Como vocês se sentiram ao tomar conhecimento dessa regra?

• O que pode ser mudado nessa regra para valorizar a igualdade entre meninos e meninas? Em nossa sociedade, como são as opor- tunidades de homens e mulheres em relação à prática do futebol profi ssional e como opção de lazer?

É possível tecer uma série de interpretações sobre relações de gêne- ro a partir das regras pré-estabelecidas para o Futebol Generifi cado e dos desdobramentos dessa vivência na aula. Alguns pontos que colocamos em destaque por terem sido explorados com êxito nas experiências em que desenvolvemos o Futebol Generifi cado são:

• Comparação entre o papel dos meninos que fazem os gols com o papel social do ‘homem provedor’, valorizado socialmente por exercer o trabalho assalariado e, em contrapartida, a desvalorização do trabalho defensivo das meninas no jogo, análogo ao papel de ‘mulher cuidadora’, responsável pelo trabalho doméstico, invisível e desvalorizado socialmente.

• Reconhecimento da dupla jornada de trabalho em comparação com o momento em que as meninas têm a permissão para parti- cipar da área de enfrentamento. Em experiências já desenvolvidas com o jogo observamos que muitas vezes na mudança dessa regra as meninas chegavam a sofrer pressão por parte dos meninos para não abandonarem a área defensiva, pois, segundo as falas deles, elas pouco acrescentariam participando do ataque, ainda mais conside- rando que seus pontos valeriam metade. Cabe uma analogia com situações em que mulheres abrem mão de oportunidades de em- prego por pressões de seus companheiros e da sociedade patriarcal. • Identifi cação das difi culdades impostas às meninas quando a obri-

gação da participação no ataque e a concomitante manutenção da responsabilidade exclusiva pela defesa, torna-se exaustiva e muitas vezes pouco valorizada. Nesse cenário cabe a comparação com si- tuações nas quais as jornadas duplas ou triplas não são opções, mas sim necessidade para as mulheres.

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• Refl exão sobre as diferenças entre os gêneros em relação às oportu- nidades, condições de exercício profi ssional, salários, premiações, acesso ao lazer esportivo etc.

Enfi m, nossas experiências com o Futebol Generifi cado têm evi- denciado uma necessidade de se abrir o diálogo sobre temas correlatos às relações de gênero como forma inclusive de empoderamento de meninas e tomada de consciência de meninos sobre a urgência de rever atitudes e normas socialmente ‘naturalizadas’ e convencionadas que alimentam a lógica androcêntrica estabelecida.

Faz-se importante ainda o reconhecimento da perspectiva intersec- cional nessas discussões, problematizando, por exemplo, o modelo familiar heteronormativo adotado em primeira análise e a sobreposição de outros marcadores de diferença como classe e raça.