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[...]eu diria: se pudesse ter escolhido queria ter nascido cavalo. Mas – quem sabe – talvez o cavalo ele-mesmo não sinta o grande símbolo da vida livre que nós sentimos nele. Devo então concluir que o cavalo seria sobretudo para ser sentido por mim? O cavalo representa a animalida- de bela e solta do ser humano? O melhor do cavalo o ente humano já tem? Então abdico de ser um cavalo e com glória passo para a minha humanidade. O cavalo me indica o que sou.

Clarice Lispector, Seco estudo de cavalos.

Women

Louise Bogan

Women have no wilderness in them Th ey are provident instead,

Content in the tight hot cell of their hearts To eat dusty bread.

Th ey do not see cattle cropping red winter grass, Th ey do not hear

Snow water going down under culverts Shallow and clear.

Th ey wait, when they should turn to journeys Th ey stiff en, when they should bend.

Th ey use against themselves that benevolence To which no man is friend.

Th ey cannot think of so many crops to a fi eld Or of clean wood cleft by an axe.

Th eir love is an eager meaninglessness Too tense, or too lax.

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Miriam Adelman

Th ey hear in every whisper that speaks to them A shout and a cry.

As like as not, when they take life over their door-sills Th ey should let it go by.

Introdução

Quando, em 1970, a poeta Louise Bogan leu seu poema Women, publicado originalmente em 1923, para um público norte-americano, o introduziu aludindo a todas as mudanças na vida das mulheres que carac- terizaram esse intervalo histórico, dizendo que de fato havia “começado a gostar dos membros deste sexo um pouco mais” (BOGAN, s/d). Dado o conteúdo do poema, fi ca claro que a poeta se referia ao impacto dos novos caminhos e rotas que se abriram às mulheres ao longo do século XX e como estes forjaram novas atitudes e disposições a se engajar na vida. Dentre as fontes desta abertura foi o legado das mulheres ‘aventureiras’ que criaram sua própria liberdade em tempos menos propícios – mulheres que sim tinham

dentro delas ‘a terra selvagem’ – como também o foi o ativismo político das

feministas da “Segunda Onda”. Ambos movimentos, podemos dizer, incen- tivaram a transgressão de normas sociais modernas que haviam construído a feminilidade, como uma vez disse a escritora Susan Brownmiller, como uma ‘estética da limitação’. Evidentemente, as mudanças foram sufi cientes para alertar a poeta Bogan para atitudes e comportamentos que a alegraram. No cerne das minhas questões está o fato que o tropo da mulher livre

e aventureira que desafi a normas sociais − normas que foram colocadas no

lugar por uma cultura vitoriana amplamente disseminada que mantinha no seu centro uma versão da feminilidade altamente doméstica e domesti- cada – é frequentemente representada pela imagem de uma mulher a cava- lo. Trata-se de uma metáfora poderosa que estimula pesquisa acadêmica e narrativas diversas, evocando também muitas identifi cações na vida prática em sociedades da Europa, América do Norte e América Latina (PIERSON, 2001; FORREST, 2012; JORDAN, 1992; SANT’ ANA, 1993). Contudo, o tropo da mulher a cavalo, enunciado que funciona em línguas e culturas diferentes (horsewoman, cavalière, amazona, entre outras palavras e perso- nagens) aparece também em versões diversas, por vezes pacifi cadas – por exemplo, vinculada à venda de produtos do mundo equestre, ou à noção de cuidadores de animais necessitados – ou mesmo em narrativas linguís- ticas ou imagéticas sexualizadas e erotizadas, como nos desdobramentos de uma impactante lenda anglo-saxônica que logo discutirei. Na realidade, isto é de se esperar, pois simplesmente faz parte de uma ampla ambivalência

Capítulo 8 – Mulheres, cavalos, vidas cruzadas: domadxs, domesticadxs, selvagens?

social sobre o que signifi ca ser menina ou mulher (SINGLETON, 2013; BRUMBERG, 1998) que se produz na interface entre movimentos sociais, demandas comerciais e dinâmicas da cultura de massas.

Como pesquisadora, levo mais de 20 anos pensando sobre como en- tender e investigar as representações contraditórias da relação entre mulheres e cavalos. Inicialmente, meu trabalho focou o terreno esportivo, evoluindo posteriormente para incluir debates advindos de um crescente campo de literatura dentro das ciências sociais e as humanidades, o estudo das rela- ções entre os seres humanos e outros animais (DEMELLO, 2012; RITVO, 2007). Neste sentido, meu trabalho se une ao de outras estudiosas que ten- tam decifrar as dinâmicas de um tipo muito singular de “encontro interespé- cies” (DAVIS; MAURSTADT, 2016; BIRKE; THOMPSON, 2017), cap- tado de forma literária pela escritora modernista Clarice Lispector. Lispector identifi ca seu próprio desejo de liberdade e de uma terra – ou talvez coração! - não domesticada com o cavalo, animal que nas suas palavras vira metáfora para tudo aquilo que nós, humanos, desejamos ser de mais livre, forte e verdadeiro, mas provavelmente tenhamos perdido a chance de ‘se tornar’.

A pesquisa à qual me dedico desde 1995 transita entre metáfora, discurso e os encontros muito materiais, isto é, corporifi cados, entre hu- manos – especialmente humanas – e cavalos, em circuitos contínuos que se constroem de práticas e representação simbólica. Ao examinar discursos literários, pesquisas feitas em diferentes partes do mundo e práticas em diversos meios e modalidades equestres no Brasil, chegamos a uma percep- ção mais profunda das ricas realidades e possibilidades destas relações, que por vezes sucumbem ao cliché ou às idealizações compostas de elementos contraditórios. Assim, um paradoxo fundamental emerge da maneira em que a sociedade contemporânea, caracterizada pela centralidade do lazer e do consumo, assim como pela hegemonia cultural e política de espaços e estilos de vida urbanos, se organiza. Como argumenta a estudiosa francesa Chevalier (2017), a atual feminilização dos esportes equestres, uma clara tendência na Europa hoje, incorpora regras e regulamentações que facilitam não apenas a “esportização” de uma ampla gama de atividades (ELIAS; DUNNING, 2009) − neste caso, equestres −, mas também responde a de- mandas crescentes de minimização de riscos. Assim, controles sobre desafi os físicos pensados para garantir segurança podem ter um efeito adicional, constrangendo o prazer e a liberdade dos corpos em movimento, ou seja, promovendo formas de “domesticação”.

Por outro lado, a cultura de massas vem produzindo discursos que idealizam certos aspectos da relação entre mulheres e equinos como ineren- tes ou quase misticamente ‘empoderadores’ (MIDKIFF, 2001), por vezes

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Miriam Adelman

com mensagens subliminais que sugerem que mesmo a mais ousada ou cora- josa das cavaleiras naturalmente aceita defi nições do feminino advindas das tradições normativas burguesas e suas histórias de romance heteronormati- vas. Nessas vertentes, há, por exemplo, uma recorrente preocupação com as meninas que, na infância e na adolescência, direcionam suas paixões para com os cavalos e a vida ativa, menosprezando a cultura convencional que en- sina preocupações com a beleza e a delicadeza. Há, pois, uma cobrança para que cheguem à puberdade dispostas a assumir, pelo menos parcialmente, elementos do ‘papel feminino’ – concretamente falando, devem abrir mão de tão plena dedicação ao cavalo para incluir na vida o parceiro romântico masculino, fi lhos, e lar (SINGLETON, 2013; MC EWEN, 1997). Minha proposta neste capítulo é examinar mais de perto elementos de signifi cação que giram em torno desta tensão específi ca: como a relação de mulheres com os cavalos e o cavalgar rompe ou reproduz constrangimentos norma- tivos, ou talvez ambas coisas ao mesmo tempo. Conecta-se também com uma questão transversal: pode este encontro interespécie singular fornecer algumas pistas para que nos pensemos, como seres humanos, para além de outros binarismos que nos aprisionam − a construção da ‘excepcionalidade humana’ em oposição à ‘natureza’ de todos os outros animais.

Mulheres a cavalo em tradições históricas e literárias: histórias que se