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Sentindo/ tornando-se/ livres e selvagens? (Podem os cavalos nos fornecer esta conexão?)

Que fi zemos, eu e o cavalo, nós os que trotam no inferno da alegria de vampiro? Ele, o cavalo do Rei, me chama. Tenho resistido em crise de suor e não vou. Da última vez em que desci de sua sela de prata, era tão grande a minha tristeza humana por eu ter sido o que não devia ser, que jurei que nunca mais. O trote, porém, continua em mim. Converso, arrumo a casa, sorrio, mas sei que o trote está em mim. Sinto falta dele como quem morre.

Clarice Lispector

Walter Putnam, um historiador cuja pesquisa “gira em torno de como os animais fi guram em nossos sistemas humanos de signifi cação e como en- tram nos recintos mais profundos de nossas paisagens culturais” percebe que desde a antiguidade até os tempos modernos, os outros animais ocupam um lugar proeminente na construção de mitos colonialistas sobre o selvagem, os quais, à sua vez, se utilizam para justifi car projetos modernos de expansão e colonização (citado por DEMELLO, 2012, p. 82). Sua abordagem pos- sui fortes pontos de convergência com estudos feministas que, envolvidos em trabalho interdisciplinar sobre poder, transgressão e a subjetividade de mulheres, procuram as rotas para a subversão das forças de ‘domesticação’ e disciplinamento. Ha neste movimento correntes diversas, incluindo o popular romantismo New Age (como o bestseller de Estes, Women who

run with wolves (1996), a crítica pioneira da ‘segunda onda’ (BORDO,

1999; BROWNMILLER, 1986), o feminismo pós-colonial que se conecta diretamente com a crítica do império que Putnam (citado por DEMELLO, 2012) promove, e o queering muito atual de Jack Halberstam (2005; 2014).

Halberstam, que em um momento anterior já nos conduziu por terrenos pouco mapeados como as sexualidades dissidentes e vidas transgê- neras do Oeste rural da América do Norte (2005), dá agora um novo passo adiante, propondo que repensemos nossas metáforas do ‹selvagem› (the

wild). Assim, num recente texto que leva o título Wildness, loss and death,

Halberstam tece conexões entre “raça, anarquia, punk, sexualidade, desejo, animais/pets/crianças, música, ‘alta’ e ‘baixa’ teoría, o selvagem como novo termo para a vitalidade queer e o selvagem como um tipo de empreitada queer-ecocrítica” (HALBERSTAM, 2014, p. 138, tradução minha). Na mesma época, numa conferência incisiva proferida no Goldsmith’s College (UK), explicou o sentido destes entrecruzamentos. “O selvagem seria um conceito que, dado seu “contexto colonialista”4- tornou-se signifi cante de

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Miriam Adelman

um “Outro colonial”, o par inferior do Oeste “civilizado,” e assim foi aplica- do a pessoas, lugares e animais não humanos. Porém, segundo Halberstam, hoje o conceito pode ser repensado subversivamente, para nos guiar na construção de novas formas de (inter)subjetividade e política. Assinala que a conexão entre humanos e outros animais é uma parte intrínseca desta empreitada, inicialmente como metáfora (animais/ o selvagem/a liberdade se opondo a humanos/ encarceramento/ (meras) fantasias de liberdade), mas demandando ser empurrado para além do meramente metafórico. Assim, Halberstam pergunta se os animais não humanos podem ser alguma coi- sa “além de uma alegoria da nossa relação com o mundo, se podem, na provocação e na práxis, nos levar além de “lógicas que nos prendem e não nos permitem pensar diferente”, em direção a novos espaços/lugares, talvez aprendendo a “fazer hierarquia de maneira diferente”, para enveredarmos por caminhos políticos nos quais a vulnerabilidade e a força não sejam vistas como termos diametralmente opostos.

Cavalos, como acabo de argumentar, têm ocupado um lugar singular como signifi cante do aprimoramento da liberdade humana, no sentido metafórico e físico, já que sua parceria com os humanos, a partir de carac- terísticas singulares de velocidade, agilidade e mobilidade − é histórica e biosocialmente sem igual. Contudo, há um paradoxo presente no fato de que as mulheres – e os homens – procurem recuperar “o selvagem perdido” (lost wildness) através de uma relação com um animal domesticado que é um elemento chave da construção humana do social e do cultural há milhares de anos. Ao mesmo tempo, na medida em que a sociedade ocidental moderna não poupou esforços na construção e reforço de um abismo entre nossa ‘humanidade’ e nossa ‘animalidade’ (denegada, reprimida), também parece fazer sentido olhar para os equinos como mediadores que tem a capacidade de nos ‘devolver’, mesmo de forma parcial, algo que foi tão tragicamente perdido ou desconectado da vida social no ocidente moderno. Este para- doxo está claramente expresso no esporte-espetáculo do rodeio, visto por Arluke e Bogdan como particularmente revelador das contradições da “in- congruente postura com os animais” (2014, p. 15) das sociedades modernas e constituído como ritual “de domesticação cujo sentido e apelo toma seu folego da luta humana para defi nir nosso lugar na natureza” (2014, p. 16,

tradução minha). Estes autores se dirigem também à “generifi cação desta

simbologia do domado e do selvagem” apontando que historicamente, entre as gerações pioneiras de participantes e estrela de rodeio havia não poucas mulheres. Estas eram frequentemente representadas como competentes po- rém glamorosas, “tanto cooperativas quanto combativas” na relação com o gado bovino e os equinos (2014, p. 27). Contudo, conforme o esporte

Capítulo 8 – Mulheres, cavalos, vidas cruzadas: domadxs, domesticadxs, selvagens?

do rodeio evoluía no sentido de se tornar uma forma de espetáculo cada vez mais popular, as mulheres foram gradativamente afastadas dos aspec- tos, facetas e sentidos “selvagens” para fi carem alocadas claramente do lado “domado” do binarismo, em uma espécie de reconciliação com as normas e as expectativas sociais.

Ellen Singleton é outra estudiosa que refl ete sobre a importante pre- sença do cavalo em narrativas de mulheres acerca de liberdade e aventura. Em um texto no qual foca principalmente a literatura infanto-juvenil, ar- gumenta que apesar de uma certa ambivalência na mesma em relação à ca- pacidade das meninas de confrontar e superar desafi os físicos exitosamente, para meninas e meninos, os equinos

viraram um meio através do qual o protagonista podia mostrar sua coragem e sua proeza física. Com um equino como parceiro, um herói ou uma heroína podia chegar a um lugar (ou ir embora) de maneira dramática, conduzir uma perseguição até perder o fôlego, viajar longas distâncias e ainda reter energia sufi ciente para lutar contra o mal na chegada, salvar um amigo ou ser salvo no último momento através da lealdade e bravura de seu cavalo. Com parceiros tão poderosos e aliados de quem as meninas pudessem buscar apoio ou ajuda, muitas das sutis preocupações levantadas por suas atividades pouco convencio- nais (e o obvio prazer que obtinham ao praticá-las) podiam esquivar-se

(SINGLETON, 2013, p. 97, tradução minha).

Fazendo interface com questões de gênero, a extensa pesquisa feita por Chevalier sobre a representação das relações entre humanos e equinos no cinema e na tradição literária das sociedades ocidentais também aponta para a associação do equino com desafi os físicos e aventura. Seu objetivo principal é revelar uma mudança signifi cativa nos padrões culturais: o cavalo é visto mais como facilitador das realizações humanas que como sujeito ou “parceiro”; isto se modifi ca conforme os equinos adquiram um papel cada vez mais psicologizado, como uma espécie de “alter ego” para pessoas que cada vez mais são do sexo feminino. A tese de Chevalier coincide com apercepção de Singleton que, nas histórias contemporâneas sobre meninas e cavalos, o foco passa da “aventura” ao “cuidado”: “a relação com um cavalo que sofre pode ajudar a menina que também sofre, aliviando uma parte do estresse que as meninas vivenciam no cotidiano” (SINGLETON, 2013, p. 108, tradução minha). Assim, o hoje extenso acervo literário, fílmico e até televisivo de horse and pony stories que em várias partes do mundo (as autoras tratam dos universos literários e mediáticos anglo e francófonos) tem como público alvo a juventude de sexo feminino evidencia não apenas

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a feminização das práticas equestres nas sociedades ocidentais contempo- râneas, mas, sob escrutínio, sugere uma certa perda de ‘força subversiva’, no discurso e na prática.

Já no século XXI, é importante considerar como a internet e as for- mas de discurso cultural que a própria internet promove ou favorece per- mitem uma intensifi cada produção e circulação sobre o tema “mulheres e cavalos”, vinculadas também à mercantilização crescente de discursos e práticas do nosso cenário pós-moderno. O mundo digital que rapidamente expandiu e absorveu uma boa parte da produção e disseminação cultural contemporâneas nos fornece redes sociais como Facebook e Instagram para examinar; há muito para desvendar e interpretar nas narrativas que circulam via Internet e que costumam dar centralidade à ‘textualidade’ da imagem. Quando eu iniciei minhas primeiras tentativas de ‘surfar’ a internet para ir em busca de representações atuais da relação entre mulheres e equinos, me rendeu uma pletora de imagens que evocavam a vertente mais convencio- nalmente erotizante como na lenda de Godiva da qual falei no início deste capítulo. Dentro destas, não pouco expressivas foram as muitas jovens que se retrataram com seus cavalos de formas sutil ou abertamente erotizadas. Por outro lado, devemos considerar as difi culdades em traçar uma linha divisória entre a afi rmação de um eu feminino que inclui a expressão de um self erótico e sensual e uma auto-representação que apela fortemente para o que certa literatura feminista clássica chamou do “olhar masculino” – e logo em seguida quis rever (KAPLAN, 1991; MULVEY, 1999). Ha de fato centenas de grupos no Facebook e outras mídias sociais que se destinam às cavaleiras e às culturas equestres femininas (nos últimos tempos, me chamaram a atenção os grupos organizados especifi camente para cavaleiras na terceira idade, e para cavaleiras acima do peso), e o que inicialmente identifi co são duas vertentes que podem ou não incluir elementos de “au- to-objectifi cação”4: uma que enfatiza a conexão entre mulheres e cavalos

como sustentando meninas e mulheres que são fortes, independentes e fi sicamente competentes e outra – em certa medida, complementar – que se centra em noções de afetividade, cuidado, parceria e reciprocidade entre equinos e humanos (‘humanas’, especialmente).

4 Ver Sibilia (2015) para excelente discussão sobre as formas de performatividade e subjetivação da

Capítulo 8 – Mulheres, cavalos, vidas cruzadas: domadxs, domesticadxs, selvagens?